terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

4. A ditadura encurralada. O sacerdote e o feiticeiro. Elio Gaspari.

Este volume IV, da coleção de cinco, de Elio Gaspari sobre a Ditadura Militar é uma radiografia profunda do que foi o governo do general Ernesto Geisel. Ele tem por título A ditadura encurralada - O sacerdote e o feiticeiro. Então a pergunta óbvia a se fazer é: quem a encurralou? A resposta é longa e ocupa todas as 527 páginas do livro. Geisel não tem nenhum alívio ao longo de seus cinco anos de governo (1974-1979), a começar pela Opinião Pública, que se manifesta de forma devastadora com as eleições de 1974. Este fato reascende a "linha dura" e a "anarquia militar" que busca endurecer o governo contra os "comunistas" que atentam permanentemente contra a ordem. Só que eles, como organização, já haviam sido praticamente exterminados.

A ditadura encurralada - O sacerdote e o feiticeiro. Elio Gaspari. Intrínseca . 2014. O quarto volume da trilogia.

Se observarmos bem, na apresentação que Elio Gaspari faz de seus livros, ele nos conta que começou a escrever um ensaio que inicialmente deveria ter em torno de cem páginas. O tema central seria a atuação de Golbery e Geisel em 1964 e à frente do governo entre os anos de 1974 a 1979). O ensaio tinha até título O sacerdote (Geisel) e o feiticeiro (Golbery). Enquanto o volume III mostrou a ascensão da dupla ao poder, este volume IV mostra os dois, no exercício do poder. Creio que a principal observação a fazer é a de que Geisel efetivamente assumiu o poder, ele governou. Pouco deixou se influenciar. É, se o foi, por muito poucas pessoas. Muitos foram os seus adversários, pessoas poderosas, a começar pelo irmão Orlando e, especialmente, os promotores da "anarquia militar", que queriam endurecer o regime para nele se perpetuar. Geisel tinha a percepção clara de que teria que redemocratizar o país, pelo jogo do endurece e afrouxa, da sístole e da diástole, da forma lenta, gradual e segura com que se faria esse processo. Geisel, em seu governo, não abriu mão de governar sem os poderes conferidos pelo AI-5.

Quem mais atormentou o seu governo foi a "anarquia militar" e o "porão", que teve em Sylvio Frota, ministro do exército, o seu principal nome. A tortura como método de investigação, a tortura até a morte e a força de nomes de triste memória ganharam muita força, nomes como Brilhante Ustra, Fleury, Curió, Erasmo Dias, entre outros. No período existe um endurecimento das ditaduras militares na América Latina, onde, pela Operação Condor, se forma uma espécie de "esquadrão internacional da morte". Apontaria ainda dois momentos da conjuntura que mudaram bastante o cenário. No nível internacional, a eleição de Jimmy Carter e a sua defesa dos direitos humanos, enquanto que no cenário nacional, os partidos comunistas perdem a hegemonia nos movimentos populares. É o surgimento de um novo sindicalismo no ABC paulista. Também no meio estudantil as siglas comunistas perdem muito de sua influência. Mas a grande conclusão a que Elio Gaspari chega é a de que "Ernesto Geisel restabelecera a autoridade constitucional do presidente da República sobre as Forças Armadas". É esta a frase de encerramento do livro.

Mais uma vez, o livro é longo. São 527 páginas, divididas em quatro partes, a saber: Parte I. A crise de 1975; Parte II. O murro na mesa; Parte III. A cama de Alice; Parte IV. A hora de Ernesto Geisel. Embora eu tenha vivido intensamente esses fatos, devo reconhecer o quanto deles a gente estava afastado. Eram tempos de muita censura e cerceamento da liberdade de expressão. É impressionante o nível de fofocas que tomava conta das nossas Forças Armadas. O livro termina com uma breve nomenclatura militar, uma cronologia, fontes e bibliografia, créditos das imagens e agradecimentos. E mais uma vez, dois blocos de fotografias históricas aparecem em encartes.

A parte I, A crise de 1975, tem nove capítulos: 1. Recuo, rápido, gradual e seguro. É uma referência a uma trégua com a imprensa liberal, pelo abrandamento da censura prévia. Por outro lado, Sylvio Frota adota a posição de "patrono do porão". Esse fantasma acompanha todo o seu governo; 2. A ópera de Salzburgo. É um dos mais belos capítulos. Mostra a relação entre governo e empresários. Há mudanças na política econômica. Delfim será contido. Geisel mostra suas inclinações econômicas pró estatização. Há aqui uma bela referência às teorias econômicas internacionais, às quais dedicarei um post especial. Uma disputa entre a social democracia de Gunnar Myrdal (Nobel de economia - 1974, dividido com Hayek) e o neoliberalismo emergente de Friedrich Hayek. Salzburgo é uma referência a um encontro de empresários na cidade de Mozart, no país de Hayek. 3. O deslocamento de Golbery. É lançada a "novela da traição", que seria encabeçada por Golbery em favor do "comunismo internacional", numa trama da "turma do porão", contra a abertura política; 4. Uma zona de sombra. Golbery enfrenta sérios problemas de visão. Faz tratamento em Barcelona e perde uma das vistas. A "turma do porão" trama a sua morte. Geisel o mantém no Poder; 5. A comunidade da indisciplina. É uma relação à comunidade das informações que se transforma num sistema policialesco de controle interno. Impera a desordem e a indisciplina; 6. Com as tropas de Fidel. Aborda as relações internacionais no governo Geisel. Acordo nuclear com a Alemanha, a relação com as ex-colônias portuguesas na África, especialmente a complicada relação com o MPLA (Angola); 7. Mataram o Vlado. Uma referência ao jornalista Vladimir Herzog e seu suposto suicídio no DOI, do II Exército, ao ato ecumênico da Praça da Sé, ao discurso de Leite Chaves e a promessa de caça aos comunistas pelo coronel Erasmo Dias. Situação tensa. Vejam a frase do Senador paranaense "...Hitler, quando desejava praticar atos tão ignominiosos como os que estamos presenciando, não se utilizava do Exército, mas sim das forças da SS"; 8. "Merda! Merda!" Geisel reage a Sylvio Frota, que, em festa, recebe vivas ao futuro presidente. "Merda"! é a reação de Geisel ao seu ministro. 9. Mágica besta. Frota estará para Geisel, assim como Costa e Silva estivera para Castello Branco, um obstáculo para a abertura política. Ocorre uma outra morte no DOI do II Exército, o operário Manoel Fiel Filho, também acusado de suicídio. Haveria reações.

Na Parte II, O murro na mesa, temos cinco capítulos: 1. Uma noite de cão. É a noite passada por Geisel, após ficar ciente de nova morte sob a responsabilidade do II Exército. Teria que tomar providências. Ocorre a demissão do comandante do II Exército e do CIE, generais Ednardo Mello e Confúcio Avelino. Geisel encarava a situação, não pela violação dos direitos humanos mas como violação da disciplina militar. Muito triste; 2. A campanha do regresso. Embora Geisel estivesse comprometido com Figueiredo na sucessão presidencial, "o porão", insistia com a candidatura de Sylvio Frota. Pesam contra Figueiredo a sua saúde e a falta de uma estrela; 3. O terror de casa. É o recrudescimento da "direita explosiva". Os remanescentes dos tempos de Costa e Sila se insurgem e  tornam "o porão" extremamente agressivo, com bombas na OAB, ABI e novas agressões, sequestros e torturas. A indisciplina grassa solta nos quarteis e provocam o terrorismo militar de 1976; 4. O buraco negro. Diante da economia, Geisel realiza viagens internacionais (França e Inglaterra) e obtém financiamentos fáceis. Geisel promove uma centralização absurda em seu governo, se preparando para enfrentar novas eleições; 5. Abaixo a ditadura. A morte de expressivas personagens da política brasileira faz a população brasileira voltar a aspirar a democracia. São as mortes e os enterros de JK e Jango. É lançada a campanha da ANISTIA.

Na parte III, a cama de Alice, tem sete capítulos: 1. A surpresa de Alice. A partir do romance de Lewis Carroll, uma pergunta pela identidade. As oposições lançam o "Biotônico Vitalidade", que "não deve ser ministrado àqueles que propõem a morte como única forma de vida". Ocorrem significativas mudanças no mundo estudantil e operário brasileiro. Os partidos comunistas deixam de ser a bússola que os orientava. Surge um novo sindicalismo. Esta parte também merecerá um post à parte: 2. A tortura da pessoa jurídica. Também um belo capítulo, que por óbvio, pela força do título, mostra as relações do governo com o empresariado. São apresentadas três fortes características de Geisel: autoritarismo, estatismo e nacionalismo; 3. Um país empacotado. É o terrível "pacote de abril" de 1977, com a emergente figura do "senador biônico"; 4. Bye, bye, brother. Ao mesmo tempo em que recrudescem as ditaduras militares na América Latina, com a formação de um "esquadrão internacional da morte", com a Operação Condor, Jimmy Carter se elege presidente dos USA, com a bandeira da defesa dos direitos humanos. Carter manda sua mulher, Rosalynn, discutir política com Geisel. Imaginem a cena, qualificada como "70 minutos de desentendimentos"; 5. A rachadura do Planalto. A crise sucessória se agrava. Hugo Abreu se aproxima de Frota; 6. A geração de 1977 vai para a rua. São os novos movimentos estudantis nas universidades brasileiras. Geisel não usa o decreto-lei 477, o AI-5 da educação; 7. O jogo da tensão. Ela tem vários focos: a organização da campanha de Sylvio Frota e a divisão nas Forças Armadas, o reaparecimento do movimento estudantil e o áspero discurso e a cassação do deputado Alencar Furtado (as viúvas do talvez). Geisel, mais uma vez promete demitir o ministro.

Na parte IV, temos quatro capítulos: 1. Figa mostra um rosto. Sobre o "primitivo" general Figueiredo é construída uma imagem palatável de presidente da República; 2. Habeas Faoro. A "turma do porão" radicaliza a política na perseguição aos estudantes (PUC/SP). Faoro aparece para, em nome da OAB negociar a volta à democracia. 3. "Um dos dois vai ter que sair". E saiu o Sylvio Frota. Foi a forma de barrar o avanço de sua candidatura; 4. Um saiu. Foi no dia 12 de outubro de 1977. Em menos de cinco minutos de audiência a questão estava consumada. Frota não reagiu. A ele permaneceram fiéis apenas Brilhante Ustra e Curió). O caminho do general "primitivo" para a presidência estava aberto. É o que veremos no quinto e último livro da série.

Vejamos a resenha dos três volumes anteriores:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/02/1-ditadura-envergonhada-as-ilusoes.html

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/02/a-ditadura-escancarada-as-ilusoes.html

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/02/3-ditadura-derrotada-o-sacerdote-e-o.html

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