quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

1974. Entre Gunnar Myrdal e Friedrich Hayek. Do livro 4. A ditadura encurralada. Elio Gaspari.

Antes de mais nada quero esclarecer o título dado a este post. Entre Gunnar Myrdal e Friedrich Hayek. Cheguei a ele pela leitura do volume IV, da coleção de cinco, de Elio Gaspari, sobre a ditadura militar brasileira A ditadura encurralada - O sacerdote e o feiticeiro. Ainda na primeira parte do livro (a crise de 1975), já no seu segundo capítulo (a ópera de Salzburgo) encontramos os dados para a sua elaboração. É uma abordagem que o autor faz, da relação do governo Geisel com o empresariado brasileiro. Ao longo do livro, Geisel é agraciado com três adjetivações: autoritarismo, estatismo e nacionalismo. Esses adjetivos soam bastante estranhos aos nossos ouvidos, nesses anos de 2022, já há um bom tempo. Observemos bem a data. 1975.


A ditadura encurralada - O sacerdote e o feiticeiro. Elio Gaspari. Intrínseca. 2014. Esta passagem está no quarto volume.

Por uma obsessão de professor, vamos contextualizar a data, mostrando acontecimentos de seu entorno. Crise do petróleo, os petrodólares e a guinada do mundo da economia com as eleições de Thatcher (1979), na Inglaterra, de Reagan (1980), nos EUA e Kohl (1982) na Alemanha.  Friedrich Hayek acaba de vencer Gunnar Myrdal, o economista sueco da social democracia. Os dois haviam empatado no ano de 1974, quando ambos foram agraciados com o Prêmio Nobel de Economia, com pensamentos opostos. Simplificando diríamos, que era um embate entre a social democracia, ou o Estado de bem-estar social versus o neoliberalismo, defendido por Kayek, já desde 1944, com o seu O caminho da servidão. 

De Gunnar Myrdal até comprei, na época, o seu livro Teoria econômica e regiões subdesenvolvidas, mas confesso que não entendi muita coisa. A minha formação superior básica foi a de seminário, numa faculdade de filosofia. Até tínhamos a cadeira de economia política. Mas o tema sempre me interessou muito, especialmente naquilo que dizia respeito à distribuição de renda e a sua aplicação à realidade brasileira. Na época fiz até uma especialização em desenvolvimento econômico e social brasileiro com o professor Hélio Duque, que depois foi brilhante deputado constituinte. Hoje não sei dele.

Mas, um contato mais sistematizado, fui ter apenas no mestrado, no curso nota sete, da PUC/SP. em História e Filosofia da Educação. As políticas públicas para a educação nos fizeram virar o tema até pelo avesso. Gunnar Myrdal já havia sumido do horizonte. Lembro de um livro sobre a social democracia, que até hoje considero a sua melhor referência. Trata-se de Capitalismo e social democracia  de Adam Przeworski, muito próximo de Estado, capitalismo e democracia na América Latina, de Atílio A. Boron. Pelo lado neoliberal, além dos livros de análise, Hayek e Milton Friedman estiveram presentes.

Mas voltemos ao livro de Gasperi. Geisel mudara a orientação triunfalista do milagre de Delfim Netto. Queria a centralização. Isso incomodava o empresariado, que queria a previsibilidade. A economia, sob Geisel se dividia entre Mário Henrique Simonsen e Reis Velloso, do II PND. Geisel estava convencido de que "a iniciativa privada não se interessa pelo real desenvolvimento do país", e, por isso, "o Estado tem que dirigir" (página 57). Nesse sentido tomou uma série de medidas envolvendo siderurgia e  petróleo. Mas vamos ao embate sugerido pelo título do post. Reproduzo a questão na sua quase integralidade. É um dos momentos de inflexão na história econômica mundial, em que são abandonadas as teorias que provocaram a chamada era de ouro do capitalismo e se envereda pelo caminho dos livres mercados da doutrina neoliberal. No Brasil estaremos longe dessas duas vias. Aqui dominava o "primeiro crescer para depois dividir" de Delfim Netto e o estatismo/nacionalismo de Geisel.

"Não houve na mobilização privatista a consistência ideológica que pressupunha conter. Nem oposição ao governo, muito menos ao regime. Eram apenas reclamações. Pena, porque foi entre 1974 e 1975, numa época de refluxo mundial do conservadorismo, que surgiram os primeiros sinas da revolução liberal  que haveria de varrer o final do século XX.

Um, simbólico, viera de Estocolmo, com a divisão do Prêmio Nobel de Economia entre o austríaco Friedrich von Hayek e o sueco Gunnar Myrdal. Este, socialista, era um dos pais da teoria do desenvolvimento econômico, e seu livro fora editado pelo ISEB em 1963. Em 1967 o Itamaraty desaconselhara a presença dele no Brasil para uma série de conferências. Hayek era um adorador da liberdade de mercado e considerava o planejamento econômico um "caminho para a servidão" (título do livro que publicara em 1944). Julgava-se subestimado pela comunidade acadêmica do pós-guerra. Vivia em Salzburgo, numa pequena casa que comprara com o dinheiro da venda de sua biblioteca. Tinha por vizinhos um bombeiro e um ferreiro aposentados. Myrdal era fava contada para o Nobel. A novidade estivera no reconhecimento de Hayek e na divisão da láurea entre duas concepções praticamente antagônicas. Ele e Myrdal mal se falaram durante a cerimônia de entrega do prêmio" (página 62).

A partir daí iniciam as ofensivas liberais contra "trinta anos de moda socialista", tanto na Inglaterra, quanto nos Estados Unidos. Enquanto isso "o empresariado e o conservadorismo brasileiros estavam noutra, a de atração de capitais e empréstimos externos. A campanha contra a estatização foi afogada num lance teatral. Chamou-se I Seminário Internacional sobre Investimentos no Brasil, ou Salzburg-75. Um sucesso. No final de maio baixaram na pequena cidade austríaca de Salzburgo 2 mil empresários e banqueiros americanos, europeus e japoneses. Um casal Matarazzo não achou quarto nos hotéis lotados e dormiu na casa do motorista. O maestro Herbert von Karajan teve de interromper seus ensaios da Filarmônica de Viena para liberar a sala da Konzerthaus. Todas as grandes casas bancárias do mundo mandaram diretores. Vieram os presidentes da Volkswagen, da Mercedes, da Brown Bovery e um Agnelli da Fiat. Mais o presidente da  agência de investimentos do Kuwait, e os ministros da economia  da Alemanha e de Finanças da Áustria. A conta foi rateada entre noventa entidades das classes produtoras brasileiras. A delegação nacional tinha três ministros e trezentas pessoas. O Banco do Brasil enviara onze representantes. A caravana incluía 33 jornalistas.

A ideia, a montagem e o espetáculo foram produto da imaginação e da agilidade do novo presidente da Associação Nacional de Fabricantes de Automóveis, a Anfavea. Aos 37 anos, Mário Garnero chegara a posição pelo casamento com uma herdeira da família Monteiro de Carvalho, acionista da Volkswagen. Tinha vocação de palaciano, o gosto por eventos e a aparência dos grã-finos que sempre parecem ter saído do barbeiro... ". 

Na contramão da austeridade dos gastos públicos, o Brasil vive a farra dos empréstimos forjados com o endividamento externo. O texto continua: "Nada adiantaria que o ex-ministro Octávio Gouveia de Bulhões escrevesse a Geisel advertindo-o do 'endividamento da economia brasileira que impede acelerar o desenvolvimento e cria obstáculos ao desaceleramento inflacionário, com reflexos negativos sobre o equilíbrio do balanço de pagamentos'". E Gaspari conclui o seu texto: "Entre 1973 e 1975 a América Latina e o caribe duplicaram seu endividamento. O Brasil também" (Páginas 62 a 65). O preço que pagamos foi alto. 

Na América Latina e no Brasil a hegemonia neoliberal só se concretizou na década de 1990, após os ensaios de Collor e da consolidação sob Fernando Henrique Cardoso. O neoliberalismo é um sistema extremamente eficaz para produzir desigualdades sociais. Quando no Brasil, o governo assume a responsabilidade de estabelecer políticas públicas para combater estas desigualdades, vem os golpes de Estado, tão frequentes, como vimos ainda recentemente em 2016.

Acho que esse tema que estuda a política econômica e os investimentos públicos um tema fascinante e de repercussões fundamentais para o encaminhamento dos destinos da Nação. Até hoje assistimos, em nível mundial, essa briga de 1974, entre a social democracia de Gunnar Myrdal e o neoliberalismo de Hayek, com ampla vantagem para os neoliberais. No Brasil, a rigor, nem mesmo uma política de bem-estar social um dia tivemos. E... se tem tanto medo do comunismo. Que elite! 

Para melhor contextualização, deixo três links relativos ao tema. O primeiro sobre o liberalismo clássico, o segundo sobre a social democracia e o terceiro sobre o  neoliberalismo:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2018/11/temas-em-debate-i-o-liberalismo-uma.html

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2018/11/temas-em-debate-ii-social-democracia.html?m=1

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2018/11/temas-em-debate-iii-o-neoliberalismo.html


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