quinta-feira, 3 de abril de 2025

A RELIGIÃO NO ELDORADO OU NA TERRA SEM MALES. A partir de Cândido - Voltaire.

Voltaire é extraordinário. Termino de ler dois de seus assim chamados - contos filosóficos. A sua forma de conhecer a realidade do mundo é bem inventiva ou criativa. Em Cândido, os personagens viajam pelo mundo, entrando assim em contato com diferentes realidades. Já em O Ingênuo será um índio da América do Norte que exporá a realidade de seu mundo, ao chegar na França e entrar em choque com a civilização do ocidente cristão. Uma forma bem original para expor as suas concepções de mundo e de as confrontar com os seus adversários.

Contos. Voltaire. Cândido ou o otimismo. Abril. 1972. Páginas 149-238. Tradução: Mário Quintana.

Voltaire é um crítico mordaz da cultura ocidental, especialmente no que se refere a sua parte religiosa, qual seja o cristianismo e o comportamento dos mandatários de suas estruturas. Uma dissonância e um distanciamento enorme entre a teoria e a prática. (Ao escrever este post, estou vestindo uma camiseta, com uma estampa de Paulo Freire e um dito seu: "É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática"). Uma questão de coerência.

Neste post eu quero destacar um diálogo que Cândido teve quando ele, após ter passado por Buenos Aires, onde forçosamente tem que se separar de sua Amada Cunegundes e de passar pelas missões jesuíticas do Paraguai, ele chega ao Eldorado, onde o seu hospedeiro o coloca em contato com o homem mais sábio do reino. Eles versam sobre muitos temas, mas o mais impressionante é a sua exposição sobre a religião que era praticada no antigo império inca. Vejamos o relato do encontro:

"A conversação foi longa; versou sobre a forma de governo, os costumes, as mulheres, os espetáculos públicos, as artes. Afinal Cândido, que sempre tivera gosto pela metafísica, indagou, por intermédio de Cacambo, se no país não havia uma religião.

O velho enrubesceu um pouco.

Como pode o senhor duvidar de tal coisa? - perguntou ele. - Será que nos toma por ingratos?

Cacambo perguntou humildemente qual era a religião de Eldorado.

O velho corou de novo.

- Acaso pode haver duas religiões? disse ele. - Temos, creio eu, a religião de todo mundo: adoramos a Deus dia e noite.

- Não adoram senão a um único Deus? - interrogou Cacambo, sempre servindo de intérprete às dúvidas de Cândido.

- Quer-me parecer - tornou o velho, formalizado - que não há nem dois, nem três, nem quatro deuses. Francamente, fazem cada pergunta!

Cândido não se cansava de interrogar o bom velho; quis saber como rezavam a Deus em Eldorado.

- Não lhe rezamos - disse o bom e respeitável sábio. - Nada temos que lhe pedir; ele nos deu tudo o que precisamos; nós lhe agradecemos sem cessar.

Cândido teve curiosidade de ver os sacerdotes; e perguntou onde estavam.

O bom velho sorriu.

- Meus amigos - disse ele -, nós todos somos sacerdotes; cada manhã, o rei e todos os chefes de família entoam, solenemente, cânticos de  ações de graça; e cinco ou seis mil músicos os acompanham.

- Como, os senhores não tem padres que ensinam, que disputam, que governam, que cabalam, e que mandam queimar as pessoas que não são de sua opinião?

- Só se fôssemos loucos - disse o velho. - Aqui somos todos da mesma opinião, e não entendemos o que quer o senhor dizer com os seus padres.

Cândido, a cada uma dessas palavras, caía em êxtase e dizia consigo: 'Como tudo isto é diferente da Vestfália e do castelo do senhor barão! Se o nosso amigo Pangloss visse Eldorado, não diria mais que o Castelo de Thunder-ten-tronckh era o que havia de melhor sobre a face da terra; não há dúvida de que é preciso viajar'". Páginas 194-195.

Por aí dá para ver que não era por nada que Voltaire era tão radicalmente anticlerical. Deixo a resenha de Cândido, ou o otimismo. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/03/candido-ou-o-otimismo-voltaire-1759.html   e também O Ingênuo.  http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/03/o-ingenuo-voltaire-1767.html

Mas - permitam-me falar um pouco de Voltaire. Da parte final de sua vida. Se antes ele não levava uma vida exemplar, ao menos cristãmente falando, o final dela foi coroado de virtudes incontestáveis. Vejamos o livro de dados biográficos que acompanha a coleção da Abril. Esta parte final o tornou famoso como o filósofo pregador da tolerância. Vejamos:

"E teria continuado nessas atividades (distribuição de justiça, irrigação de áreas rurais, lutas contra epidemias de gado, abertura de uma fábrica de relógios e de escolas) se não tivesse recebido, num dia incerto de 1761, a visita de uma família aterrorizada, contando uma fúnebre estória de perseguição. Um jovem suicidara-se em Toulouse. Existia, contudo, uma lei pela qual o corpo dos suicidas devia ser arrastado pelas ruas e, depois, enforcado em público. O pai do rapaz, Jean Calas, arranjara tudo para que o suicídio parecesse morte natural e o corpo do filho fosse respeitado. Mas Calas era protestante, e acabou sendo acusado de ter assassinado o filho para que não se convertesse ao catolicismo. Foi preso, torturado e condenado à morte.

Enquanto Voltaire defendia a família e a memória de Jean Calas, o corpo de Elisabeth Sirven foi encontrado num poço. A família também era protestante e o juiz acusou os pais de terem matado a jovem. Voltaire, indignado, lançou uma campanha, contratou advogados, redigiu defesas e enviou-as para os tribunais. Concomitantemente escreveu seu famoso Tratado sobre a tolerância.

Esses casos ainda estavam na ordem do dia quando, em 1767, o jovem La Barre, de família protestante, foi acusado de mutilar crucifixos. Ao ser preso, encontraram em seu poder um exemplar do Dicionário filosófico, escrito com a intenção explícita de ridicularizar o fanatismo católico.

O livro obtivera um êxito fantástico. 'Punham-no debaixo das portas, penduravam-no nos cordões das campainhas, os bancos dos passeios públicos andavam repletos dele. Nos lugares de ensino religioso substituía, como por encanto, os catecismos'. [...] Do caso La Barre em diante, a atividade de Voltaire assemelha-se à erupção de um vulcão. O escritor torna-se sério. 'Durante todo esse tempo', diria depois, 'não me escapou um sorriso que não me parecesse um crime'.

[...] Voltaire inundou o país de panfletos, livros, ironias, apelos. Todas as suas cartas terminavam com um veemente apelo: Écrassez l'infâme - Esmagai o infame. No início, seus inimigos tentaram barrar essa avalancha. Os livros eram queimados em praça pública. Inútil. Cidadãos desconhecidos, admiradores do autor, faziam reimpressões clandestinas, algumas das quais atingiram 300.000 exemplares. Madame Pompadour lembrou-se de que ele era sensível a títulos e dinheiro, e ofereceu-lhe o cargo de cardeal e a reconciliação com a corte. Voltaire nem sequer respondeu".

[...] "Em Paris recusaram-lhe sepultura cristã. Os amigos colocaram o corpo numa carruagem, fazendo-o passar por vivo, e levaram-no até Salier, onde foi enterrado. Doze anos depois, a Assembleia Nacional da Revolução obrigou Luís XVI a transladar o corpo para o Panteão de Paris. Setenta mil pessoas seguiram o cortejo.

Sobre seu túmulo Voltaire pedira que escrevessem apenas uma frase: 'ELE DEFENDEU CALAS'.


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