sexta-feira, 31 de outubro de 2025

DOMÍNIO. O cristianismo e a criação da mentalidade ocidental. Tom Holland.

Nas rodas de conversa que eu frequento o tema da religião sempre é recorrente. Assim, numa delas, veio à tona o livro Domínio - o cristianismo e a criação da mentalidade ocidental, do historiador inglês, especializado no mundo antigo, Tom Holland. Esta mentalidade ocidental moldada pelo cristianismo pode mais ou menos ser assim definida, como a definiu o autor, já quase ao final de seu livro:

Domínio. O cristianismo e a criação da mentalidade ocidental. Tom Holland. Record. 2022.

"... O humanismo (presente no mundo ocidental) deriva, no fim das contas, de alegações feitas na Bíblia: os seres humanos são feitos à imagem de Deus; seu Filho morreu igualmente por todos; não existem judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher. Repetidamente, como um grande terremoto, o cristianismo enviou reverberações pelo mundo. Primeiro houve a revolução primal, pregada por São Paulo. Então vieram os tremores secundários: a revolução do século XI que colocou a cristandade latina em seu curso momentoso, a revolução comemorada como Reforma, a revolução que matou Deus. Todas com a mesma estampa: a aspiração de incluir em si mesma toda outra forma de ver o mundo e a reivindicação de um universalismo que era culturalmente específico. Que os seres humanos possuem direitos, nascem iguais e devem obter sustento, abrigo e proteção contra a perseguição nunca foram verdades autoevidentes". Em suma, o mundo ocidental foi tomando as formas de pensar do mundo cristão (Página 535).

No belo prefácio do livro encontramos a pergunta fundamental que o autor busca responder: "Como um culto inspirado pela execução de um criminoso obscuro em um império há muito desaparecido pôde exercer uma influência tão transformadora e duradoura no mundo?" (página 24). Logo adiante, o autor dá as marcas  do mundo cunhadas pela morte desse criminoso. "Dois mil anos após o nascimento de Cristo, não é preciso acreditar que ele se ergueu dos mortos para ser marcado pela formidável - de fato, inescapável - influência do cristianismo. Seja a convicção de que os mecanismos da consciência são os mais seguros determinantes das boas leis, de que a Igreja e o Estado existem como entidades distintas ou de que a poligamia é inaceitável, seus elementos podem ser encontrados em todo o ocidente. Mesmo escrever em uma língua ocidental é usar palavras permeadas de conotações cristãs. 'Religião', 'secular', 'ateu, - nenhuma dessas palavras é neutra. Todas elas, embora derivem do passado clássico, trazem consigo o legado da cristandade. Falhar em entender isso é correr o risco de anacronismo. Por mais vazios que estejam os bancos das igrejas, o Ocidente permanece firmemente atracado a seu passado cristão" (página 25). O termo criminoso, usado pelo autor, é uma referência à morte na cruz, reservada no Império Romano, aos piores criminosos. Vai por aí o teor do longo livro de Tom Holland. Ele tem também três grandes divisões: Antiguidade, Cristandade e Modernistas.

Acima de tudo o livro do historiador é um livro de história, um longo livro de história. São 642 páginas, divididas em prefácio, vinte e um capítulos, notas e bibliografia. E três epígrafes notáveis. Eu as apresento: Ame e faça o que quiser. Santo Agostinho. // Que você sinta haver algo certo pode se dever ao fato de jamais ter pensado muito a respeito de si mesmo e ter aceitado cegamente os rótulos que recebeu desde a infância. Friedrich Nietzsche. // Tudo de que você precisa é amor. John Lennon e Paul McCartney. Os autores estão muito presentes nas análises do livro, que é, aliás, o sentido do emprego de boas epígrafes.

Vamos aos títulos dos capítulos: ANTIGUIDADE: I. Atenas (Até chegar à filosofia grega); II. Jerusalém (Antigo testamento - domínio romano); III. Missão (As cartas de Paulo - Roma e o legado de Pedro); IV. Crença (Expansão da doutrina, mártires, Cartago, heresias, Constantino e Niceia); V. Caridade (Juliano, Partilhando e cuidando, o voltar-se aos pobres. Agostinho); VI. Paraíso (A invenção do demônio, o bem contra o mal, usinas de orações); VII. Êxodo (Judeus, muçulmanos, choque de civilizações, Carlos Magno).

CRISTANDADE: VIII. Conversão (modelo carolíngio, Bonifácio, as fundações da ordem cristã, bávaros, húngaros, fragmentação do império franco); IX. Revolução (ressurgem os donatistas, um exército de peregrinos, universidades, o direito humano, Abelardo e Heloísa, a racionalidade da ordem divina); X. Perseguição (o julgamento dos hereges, a instituição da confissão, guerra santa, remover feridas à faca, os dominicanos contra as heresias, a perseguição aos judeus); XI. Carne (a era do Espírito Santo, uma era feminina, Catarina de Sena, a continência da carne, a liberdade de escolha do casamento e a negação do Pater familias, Madalena e a precedência, a igreja e a prostituição, sodomia; XII. Apocalipse (O monte Tabor, os reformistas sociais, ovelhas entre lobos - o colonialismo e a escravidão, Bartolomeu de las Casas, Lutero e a consciência); XIII. Reforma (Carlos V. Lutero e a tradução da Bíblia, a adesão dos príncipes, a justiça como dever dos príncipes, Müntzer, Henrique VIII, Calvino e a reforma moral, o papismo, os puritanos); XIV. Leiden (Leiden e Praga, Plymouth e a comunidade devota, os passageiros do Myflower - sua procedência, uma nova aliança, o morticínio indígena, Copérnico e o heliocentrismo).

MODERNISTAS: XV. Espírito (a propriedade, os presbiterianos, Cromwell, a liberdade religiosa, Maryland, Filadélfia - a cidade do amor fraterno, Spinoza, os huguenotes); XVI. Iluminismo (Diderot, Voltaire, a Vendeia, Robespierre e o terror, Napoleão, o marquês de Sade); XVII. Religião (A Inglaterra e os judeus, Colônia e os judeus, a Inglaterra e a abolição); XVIIII. Ciência (Os fósseis de Montana, uma teologia natural, Darwin,, as leis da evolução, Marx e os primeiros cristãos); XIX. Sombra (Nietzsche e o triunfo da vontade, Rússia - 1917, fascismo e nazismo, o sentimentalismo misericordioso, Tolkien); XX. Amor (All You Need Is Love, Beatles, o pós 2ª Guerra, Luther King, John Lennon, África e o gerenciamento da selvageria, Frantz Fanon e o colonialismo. Bush, o 11 de setembro e o Iraque); XXI. Woke - desperto (Ângela Merkel e os imigrantes, Orbán e a Hungria, Charlie Hebdo, o cristianismo e a transformação do mundo).

Eu assinalei pelo menos três destaques do livro: o significado da morte pela crucificação entre os romanos e o caráter de rebeldia de Jesus; a contextualização das cartas de Paulo e a escrita temática para cada povo ao qual ele se dirige e o posicionamento do autor frente ao tema. Ele claramente se posiciona como um cristão, mas não se omite e muito menos assume posições de neutralidade diante do mundo de contradições que permeiam  todo o cristianismo. Eu destaquei uma passagem: "Em um país tão saturado de suposições cristãs quanto os Estados Unidos, não havia como escapar de sua influência, mesmo para aqueles que imaginavam ter escapado. As guerras culturais norte-americanas eram menos uma guerra contra o cristianismo que uma guerra civil entre facções cristãs". (página 526).

Deixo também a orelha da capa do livro: "Os romanos acreditavam que a crucificação era o pior destino imaginável, uma punição reservada aos ladrões e aos escravos. Foi surpreendente, então, quando as pessoas passaram a acreditar que uma vítima em particular da crucificação - um desconhecido que atendia pelo nome de Jesus - deveria ser adorado como Deus.

O cristianismo é o legado mais longevo e influente do mundo antigo, e seu surgimento foi o episódio mais transformador da história do Ocidente. Mesmo aqueles que abandonaram a fé de seus pais, julgando a religião uma superstição sem sentido, permanecem inegavelmente seus herdeiros. De perto, a divisão entre os que creem e os que não creem pode parecer irreconciliável. No entanto, basta se afastar um pouco para perceber que o impacto duradouro do cristianismo no Ocidente pode ser observado em muito do que é tradicionalmente visto como seu oposto: a ciência, o secularismo e, sim, até mesmo o ateísmo.

Domínio explora as consequências desta crença e seus efeitos ao longo da história mundial. Hoje, o Ocidente está completamente saturado das crenças cristãs: como demonstra Tom Holland, nossa moral e nossa ética não são universais, e sim fruto de uma civilização muito específica. Conceitos como secularismo, liberalismo, ciência e homossexualidade são profundamente enraizados em fundamentos cristãos. Da Babilônia aos Beatles, de São Miguel ao movimento #MeToo, Domínio conta a história de como o cristianismo transformou o mundo moderno".

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

A Revolução Chinesa. Wladimir Pomar.

Quem é que não se interessa pelo que está ocorrendo na China? Me refiro ao seu fabuloso crescimento econômico, fenômeno que, inclusive, está alterando a geopolítica mundial. Recentemente li um livro sobre Mao Tsé-Tung. Foi ótimo para saber sobre a Revolução Chinesa, que emergiu de uma série de guerras civis, no ano de 1949, quando foi instituída a República Popular da China. Mas parava por aí. Agora revendo meus livros deparei com A Revolução Chinesa, de Wladimir Pomar. O livro integra a coleção Revoluções do Século XX, da editora da UNESP. O seu limite é o ano de 2003, o ano de sua publicação.

A Revolução Chinesa. Wladimir Pomar. UNESP. 2003.

Na contracapa temos uma pequena nota, que apresento como uma introdução: "A revolução chinesa, bem como o país que a abrigou, intriga o Ocidente. A extrema complexidade de seus antecedentes, a rica trajetória cumprida entre os anos 50 e 70, e, finalmente, as reformas promovidas pelo regime a partir de fins do século XX impõem sobre simpatizantes e detratores, a tarefa sempre renovada de esclarecer o perfil dessa epopeia ainda não terminada".

Creio que sejam estes os dois temas centrais da obra. O período que vai de 1950 a 1970, ou seja, os primeiros tempos da Revolução e as profundas reformas, feitas a partir dos anos 1980, que alçaram a China a sua condição de grande potência, possivelmente, no rumo de ser a primeira potência do mundo. O fato bem singular é o de que a China não copiou modelos prontos. Não copiou o modelo soviético, embora com ele tivesse a mesma inspiração nos princípios marxistas e nem os modelos dos países capitalistas e suas posições de submissão aos princípios da dominação imperialista.

Mas não são estes os temas únicos do, podemos dizer, pequeno livrinho. Ele tem 180 páginas, divididas em dez capítulos. Eles são precedidos por uma apresentação da coleção - Revoluções do Século XX, escrito pela professora Emília Viotti da Costa, que nos apresenta as revoluções liberais do século XIX e das socialistas do século XX e nos lança a pergunta sobre o teor das revoluções do século XXI. Ela termina o seu texto da seguinte forma: "A Revolução chinesa, em 1949, e a Cubana, dez anos mais tarde, ampliaram o bloco socialista e forneceram novos modelos para revolucionários em várias partes do mundo.

Desde então, milhares de pessoas pereceram em conflitos entre o mundo capitalista e o mundo socialista. Em ambos os lados, a historiografia foi profundamente afetada pelas paixões políticas suscitadas pela guerra fria e deturpada pela propaganda. Agora, com o fim da guerra fria, o desaparecimento da União Soviética e a participação da China em instituições até recentemente controladas pelos países capitalistas, talvez seja possível dar início a uma reavaliação mais serena desses acontecimentos.

Esperamos que a leitura dos livros desta coleção seja, para os leitores, o primeiro passo numa longa caminhada em busca de um futuro, em que liberdade e igualdade sejam compatíveis e a democracia seja a sua expressão". De acordo com o texto de Pomar, este é o ideal perseguido pelas reformas chinesas, em curso a partir da década de 1980.

O livro tem introdução e dez capítulos. Na introdução, um pequeno prospecto da obra nos é apresentado. Os capítulos tem como títulos: I. As sementes revolucionárias: Um mergulho pela história antiga dos chineses, num paralelo com a história grega. A China é apresentada como um dos berços da civilização. Quando o Ocidente se abre para o mundo, a China se recolhe na permanência de sua economia agrícola e é submetida ao colonialismo estrangeiro. II Uma só faísca. A raiz de sua economia na agricultura nos indica um país dominado pelas oligarquias agrárias, em que uma faísca facilmente provocaria grandes incêndios. A sua história começa a se modificar com o 1917 da Revolução Russa e com a criação do Partido Comunista Chinês em 1921 e a adesão à Terceira Internacional. A China mergulha em uma Guerra Civil de três etapas.

III. Frente única bem chinesa. O Guomindang. Uma aliança entre a burguesia nacional e os proprietários de terras com os comunistas, na luta contra a dominação estrangeira e na Guerra para derrotar as invasões japonesas. Um período bem complicado, passando pela Segunda Guerra Mundial e pela Guerra Fria. IV. Ainda sob fogo. A Guerra civil entra em sua fase mais aguda. A burguesia e os comunistas não conseguem mais a convivência. Chiang Kai-chek e Mao. Chiang fica com a China Nacionalista e Mao proclama a República Popular da China. Mao inicia os esforços para a modernização da República Popular da China.

V. Em busca da modernidade. Duas décadas de muitas dificuldades. A China era uma economia fechada e atrasada, fato que em tudo dificultou a sua modernização. A solução encontrada foi o uso das armas e a propaganda, a chamada Revolução Cultural, que se encerra em 1976. Ela foi acompanhada de um culto à personalidade de Mao. Com o fim da Revolução Cultural se inicia um vasto programa de novas reformas. VI. Novas combinações estratégicas. Sob quatro princípios cardeais: Fidelidade aos princípios marxistas e maoístas; força ao Partido Comunista;  Respeito aos cientistas; Planejamento, mercado e propriedade. A base para as reformas. Abertura de mercados e ingresso na OMC. A estruturação de sua economia em bases novas. Sua estruturação.

VII. Estratégias de orientação. A prioridade agrícola. A conjuntura de sua agricultura. Tecnologia, modernização e produtividade. Contenção do inchaço urbano. Educação (Em 1949 - 80% da população era analfabeta). Dois princípios: pensamento crítico e solução de problemas práticos. Seguridade social. VIII. Estabilidade social e política. Por desenvolvimento social e cultural e melhorias no padrão de vida. Interligação entre as reformas econômicas e políticas. Esquecer a Revolução Cultural. A necessidade do crescimento econômico para sustentar o plano político. Grande desenvolvimento cultural. Meios de comunicação de massa.

IX. Abertura internacional. Em 1971 os USA suspendem o Bloqueio Econômico. A partir de 1979, grande abertura econômica e modernização de padrão internacional. Desenvolvimento em todos os setores. Nova formatação de empresas. Grande foco no turismo. Aproximações com a América Latina e com os países em desenvolvimento. A busca por uma multipolaridade. Imunes às crises capitalistas. Uma bela análise de todos os fatores de seu desenvolvimento. O limite do tempo analisado é o tempo do livro, publicado em 2003. Ainda não se fala em BRICS. X. A China no século XXI. Os efeitos do crescimento acelerado. A crise ambiental. A elevação da renda, os baixos salários. Boa capacidade de poupança interna e investimentos. Desafios.

Um livro maravilhoso e de nível elevado. Vejam a edição do livro. Uma editora universitária e de uma boa universidade. A UNESP.  Para satisfazer ainda mais a minha curiosidade, duas propostas: Novas leituras, que englobassem o século XXI. A literatura é farta. A outra seria uma visita à China. Esta eu descarto. Acabei de completar oitenta anos e as dificuldades com a língua. E para satisfazer a curiosidade minha e de muitos, eu busquei os dez maiores PIBs do mundo e a população dos respectivos países. 2025. Pesquisa Google.

Estados Unidos: U$ 30,34 trilhões. 340 milhões de habitantes.

China: U$ 19,53 trilhões. 1.049 milhões.

Alemanha: U$ 4,92 trilhões. 83 milhões.

Japão: U$ 4,39 trilhões. 124 milhões.

Índia: U$ 4,27 trilhões. 1.451 milhões.

Reino Unido: U$ 3.73 trilhões. 69 milhões. 

França: U$ 3,28 trilhões. 68 milhões.

Itália; U$ 2,46 trilhões. 59 milhões.

Brasil: U$ 2.17 trilhões. 212 milhões.

Canadá: 2,11 trilhões. 41 milhões.

E, ainda, sobre a revolução de Mao. 1949.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/05/pro-e-contra-mao-organizacao-do-texto-m.html


 

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

AS REFORMAS DE BASE. As razões da queda de João Goulart.

Acabo de ler o fantástico livro A oligarquia brasileira - Visão histórica, de Fábio Konder Comparato. Na contracapa do livro aparece uma frase, que representa uma espécie de síntese do livro e define quem compôs, ao longo de nossa história, esta oligarquia. "Não se trata, porém, daquela oligarquia tradicional, em que o poder supremo pertence exclusivamente à minoria de abastados, mas sim de uma coligação oligárquica, típica do capitalismo, na qual a classe rica permanece sempre unida aos principais agentes do Estado, ficando o povo à margem de todas as decisões".

A oligarquia brasileira. Visão histórica. Fábio Konder Comparato. Contracorrente. 2018.

Portanto, ao longo de toda a história do nosso Brasil, proprietários e agentes do Estado (governantes, instituição jurídica, Igreja (padroado), militares), sempre estiveram unidos na salvaguarda de seus interesses privados, em detrimento do bem coletivo. Nas raras vezes em que se rompeu esta aliança, as reações sempre foram rápidas, através dos golpes. As aspirações populares sempre foram sufocadas, especialmente pela força das armas.

A partir de 1930 ocorreram no Brasil mudanças bastante significativas, mesmo sem afetar esta permanente aliança. Por isso mesmo este período é de  grande instabilidade política. O período contém uma ditadura, a de Vargas sob o Estado Novo, e vai culminar em 1964 com o golpe empresarial-militar de interminável tempo de 21 anos (1964-1985), passando pelo suicídio de Vargas e pela instituição do regime parlamentar contra a posse de João Goulart, sob o regime presidencialista, em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros.

A finalidade deste post não é a de apresentar as causas, ou uma análise conjuntural que levaram ao golpe de 1964, mas sim, o de apresentar a intervenção das forças da aliança da oligarquia brasileira, exatamente para salvaguardar os seus interesses. Estes estavam ameaçados, quando um plebiscito popular restaurou o regime presidencialista, e Jango, agora governaria com os poderes de presidente restituídos. Antes de apresentar o texto de Fábio Konder Comparato, deixo um post sobre as reformas de base do presidente João Goulart. 

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2017/01/jango-conversa-com-joao-vicente-12-1.html

Agora vamos ao texto. "Entrementes, no curso de 1962, o Governo João Goulart divulgou o Plano Trienal, elaborado pelo economista Celso Furtado para combater a inflação e promover o desenvolvimento econômico. O plano incluía as chamadas reformas de base, a saber:

- Reforma agrária, incluindo a desapropriação das áreas rurais inexploradas ou exploradas contrariamente ao princípio da função social da propriedade, notadamente aquelas situadas às margens dos grandes eixos rodoviários e ferroviários, recebendo os proprietários expropriados, a título de indenização, títulos da dívida pública;

- Reforma educacional, visando a valorização do ensino público em todos os níveis e do combate ao analfabetismo, com aplicação do método idealizado por Paulo Freire;

- Reforma fiscal, com fundamento no princípio da tributação proporcional ao valor da base de cálculo; além da limitação da remessa de lucros ao exterior;

- Reforma eleitoral, mediante extensão do direito de voto aos analfabetos e aos militares de baixa patente;

- Reforma política, compreendendo a legalização do Partido Comunista Brasileiro;

- Reforma urbana, 'visando à justa utilização do solo urbano, à ordenação e ao equipamento das aglomerações urbanas e ao fornecimento de habitação condigna a todas as famílias';

- Reforma bancária, mediante ampliação do acesso ao crédito em favor dos produtores de bens;

- Nacionalização dos setores industriais de energia elétrica e químico-farmacêutico, bem como do refino de petróleo".

Cito um momento anterior. A abolição do regime monárquico após a abolição do regime da escravidão. Um golpe militar que derrubou a monarquia, em atendimento à elite cafeeira. Uma República nada pública. 

Cito também o momento presente. Há quanto tempo está tramitando na Câmara dos Deputados a isenção do Imposto de Renda para quem ganha até cinco mil reais. Em compensação, os super ricos, que integram a aliança oligárquica, devem arcar com a compensação da perda dessa arrecadação. Protelações e chantagens, é o que estamos vendo. E até hoje (29.09.2025), o projeto não foi votado.

Deixo também a resenha de um outro livro, que envolve o tema dos golpes contra a democracia. Trata-se de Utopia autoritária brasileira - Como os militares ameaçam a democracia brasileira desde o nascimento da República até hoje, de Carlos Fico.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/09/utopia-autoritaria-brasileira-carlos.html

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

A OLIGARQUIA BRASILEIRA. Visão histórica. Fábio Konder Comparato.

Com toda certeza, este livro eu comprei por causa de seu autor. Fábio Konder Comparato é um dos meus santos. Um santo leigo, por óbvio. Também por óbvio, que o tema é de interesse fundamental, o tema da oligarquia, sempre tão presente em nossa história. Estou falando de A oligarquia brasileira - Visão histórica, de Fábio Konder Comparato. A idolatria ao meu santo leigo tem origem em outro livro seu.  Ética - Direito, moral e religião no mundo moderno.

A oligarquia brasileira - Visão histórica. Fábio Konder Comparato. Contracorrente. 2018.

Na brevíssima introdução ao livro lemos que, - para conhecer a nós mesmos,  bem como a sociedade em que vivemos, - precisamos conhecer as forças sociais dominantes que nos moldaram. Este é o teor do livro. Estudar as forças sociais dominantes, sempre presentes na formação da sociedade brasileira. Desde já podemos afirmar que elas sempre foram o entrelaçamento dos interesses dos grandes proprietários e os agentes do Estado. Isto nos é apresentado ao longo de 236 páginas, divididas em: Introdução, cinco capítulos e conclusão. Da conclusão eu tomo uma ideia mais precisa do livro:

"O objetivo do presente livro é (ou foi) demonstrar que este princípio fundamental da convivência humana (A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 - 'Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos') foi muito pouco respeitado na sociedade brasileira. Desde os primórdios da colonização portuguesa até hoje, nossos aborígenes têm sido tratados como seres inferiores, podendo ser escravizados, mortos e desalojados impunemente. Durante os três séculos e meio em que vigorou legalmente a escravidão no Brasil, os africanos para aqui trazidos foram considerados oficialmente como coisas e não como pessoas: não tendo, portanto, direito algum e sendo objeto de propriedade e posse. Embora abolida oficialmente em 1888, e em seguida definida como um crime, a escravidão continua a ser praticada ocultamente ainda hoje.

Da mesma sorte, a instituição não oficial dos latifúndios agrícolas como senhorios, atribuindo-se aos respectivos senhores poderes absolutos sobre todos os que neles viviam, inclusive os membros da família senhorial, perdurou no grande sertão até o século XX.

Tais práticas acabaram por consolidar na mentalidade coletiva a convicção, que continuamos a manter oculta, de que no Brasil nunca existiu uma sociedade una, mas a divisão permanente entre uma minoria que manda e tudo decide, e uma imensa maioria dos que 'nasceram para mandados e não para mandar', segundo a expressão camoniana.

Eis a razão pela qual o regime oligárquico sempre existiu entre nós como um fato natural, embora nunca reconhecido oficialmente. Não se trata, porém, daquela oligarquia tradicional em que o poder supremo pertence exclusivamente à minoria de abastados, mas sim de uma coligação oligárquica, típica do capitalismo, na qual a classe rica permanece sempre unida aos principais agentes do Estado, ficando o povo à margem de todas as decisões" (Páginas 227-228). Vamos agora aos capítulos:

Capítulo I. Os fatores estruturantes da sociedade brasileira. Uma verdadeira aula de introdução à teoria política: Relações de poder, a classificação histórica dos regime políticos a partir dos gregos, as relações de poder na sociedade brasileira expressos na mentalidade e nos costumes sociais. Essa mentalidade e os costumes sociais são apresentados em suas características: O privatismo, o personalismo, o predomínio dos sentimentos sobre as convicções racionais, a dissimulação de caráter e a duplicidade das instituições e o multissecular costume da corrupção no nível oligárquico.

Capítulo II. A herança lusitana. Outra impressionante aula sobre a análise dessa herança, com um fantástico poder de síntese. Eis as heranças: A. Concentração dos poderes de comando, com a ruptura das tradições feudo-vassálicas. O soberano absoluto. B. Precoce ascensão social da burguesia e acentuado espírito mercantil da aristocracia, do clero e do próprio monarca. Com as navegações, a rápida ascensão dos comerciantes. Em vez de nobres, clientes do Estado. C. Estreita aliança da monarquia com a igreja católica nos empreendimentos coloniais. A instituição do padroado e a legitimação da escravização. D. Cultura da personalidade e tibieza das formas de organização social. A absoluta prevalência dos interesses pessoais sobre os coletivos. E. Permanente supremacia do interesse privado sobre o bem público. A privatização do poder, especialmente, as instituições jurídicas. Estes dados são fundamentais para a explicitação dos capítulos seguintes. Eles formam a mentalidade dominante, impregnados nos costumes.

Capítulo III. A oligarquia colonial. A formação do poder oligárquico com o entrelaçamento entre os proprietários (capitanias e sesmarias) e os administradores do Estado. Esse entrelaçamento não mais será desfeito. O tráfico e o trabalho escravo. Caracterização dos agentes do Estado e do clero. A corporação militar.

Capítulo IV. O poder oligárquico no período imperial. A preservação da oligarquia colonial. 1824 e a Constituição liberal da Casa Grande. A formação da Guarda Nacional. A aliança entre fazendeiros e o imperador. Mauá e a contenção do desejo de industrialização. As medidas protelatórias da abolição do tráfico e da escravidão. A abolição e o fim do regime monárquico.

Capítulo V. A oligarquia republicana. O mais longo dos capítulos. Ele tem as seguintes subdivisões: A. A adoção de um falso regime republicano. Uma democracia sem povo. Soberania nacional e nunca a soberania popular. Um golpe militar. O positivismo. A questão social. As rebeliões e o fim da República velha. B. A "Era Vargas". Um forte capitalismo de Estado. Uma sociedade de massas, o rádio e as comunicações. O populismo. O Estado Novo. O sindicalismo sob controle do Estado. Leis trabalhistas que não afetam os interesses do latifúndio. As transformações provocadas pela 2ª Guerra Mundial. C. A reconstitucionalização do Estado e o interregno do governo Dutra. Um governo de empresários e o alinhamento aos Estados Unidos. Bipolaridade e Guerra Fria. D. O novo governo Vargas. Três bases: Nacionalismo; direitos trabalhistas e política externa independente. Planejamento das atividades econômicas. Petrobras - Eletrobras - BNDE. Turbulência militar - Ideologia da Segurança Nacional. E. O governo JK, ponto alto da eficiência oligárquica. Consenso. Plano de Metas: Energia, transporte, alimentação, indústrias de base, educação e construção de Brasília. Criação de conselhos para abrigar as oligarquias. A hostilidade da aeronáutica (Jacareacanga e Aragarças). 50 anos em 5. F. Os governos imediatamente posteriores a JK. O histrião Jânio Quadros. O populismo demagógico. A renúncia após sete meses. Jango. Brizola. O parlamentarismo. O Plano Trienal. As reformas de base. Cisões. O clima da Guerra Fria. G. O Golpe de Estado de 1964 e a instauração do regime empresarial-militar.  Empresários abraçam as Forças Armadas. Adesões da sociedade civil. Os Estados Unidos. AI-5. As mutilações da democracia. O milagre econômico.  Anistia. Os crimes conexos. H. O período posterior ao regime empresarial-militar. Sarney e a restauração oligárquica. Inflação e Planos Econômicos. Collor de Mello. Corrupção e cassação. Itamar Franco. Plano Real e o controle da inflação. O Governo FHC.  Globalização e privatizações. Consenso de Washington. Lula: um intruso no regime oligárquico. Sem preocupar as oligarquias. Carta aos brasileiros. Dilma e o impedimento pelo golpe parlamentar jurídico. Temer e a restauração da velha aliança com as oligarquias.

Conclusão. Um prognóstico sobre o futuro do Brasil. Uma espécie de proposições para debate. Qual será o futuro do Brasil sob a radicalização do capitalismo, na sua passagem para o capitalismo financeiro que substitui a produção pelo rentismo e a quarta Revolução Industrial, a chamada Revolução 4.0. Termina com uma última questão: Haverá alguma mudança na organização dos poderes em nossa sociedade. O desejo do autor está expresso no último parágrafo:

"Oxalá saibamos organizar, paralelamente aos partidos políticos, movimentos que abram a consciência do povo para a nossa realidade política, que sempre foi avessa aos princípios fundamentais da República, da Democracia e do Estado de Direito".

A parte final merece um destaque todo especial, a parte em que entra em cena o presidente Lula. Uma frase síntese dessa fase está inscrita no livro e sublinhada na contracapa: "Lula foi, efetivamente, o único chefe de Estado no Brasil escolhido fora do esquema oligárquico. Foi esta a única vez em que a coligação oligárquica, notadamente o empresariado e os principais partidos políticos, utilizando-se largamente de seu oligopólio dos meios de comunicação de massa, não souberam manipular o processo eleitoral em favor do candidato que haviam escolhido". 

O livro teve a sua primeira edição em 2017. Ele chega até a operação Lava jato. Não abrange, portanto, o governo Bolsonaro e a retomada do governo pelo presidente Lula, na eleição de 2022. Trata-se de um interessantíssimo livro de história, da história política do Brasil. Deveria ser livro de leitura obrigatória, no mínimo, para os professores da área. Deixo também a resenha de um livro que explica a Utopia autoritária brasileira - como os militares ameaçam a democracia brasileira desde o nascimento da República até hoje. Há inúmeras razões.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/09/utopia-autoritaria-brasileira-carlos.html