quinta-feira, 11 de junho de 2015

Um rio chamado tempo - Uma casa chamada terra. Mia Couto.

Ler Mia Couto é sempre desafiador. A sua leitura não é uma tarefa tão simples e exige uma atenção redobrada. A sua literatura, seja no conto, seja no romance vai sempre muito além da narrativa. A sua linguagem é poética, mística e envolvida de mistérios. Cada frase sua é uma provocação, a exigir reflexão. É impressionante a sua capacidade de trabalhar com as palavras e lhes criar significados. Sempre é um grande ato de prazer, a sua leitura.
O espetacular romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. Mia Couto.

Desta vez a leitura recaiu sobre um romance. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. Já no título o significado e as suas vinculações, o rio com o tempo e a terra como a casa ou a moradia. Para lê-lo é fundamental saber que Mia Couto é natural de Moçambique, pois, os temas africanos estão onipresentes em sua obra. Assim ocorre com suas raízes e tradições, lutas e frustrações, bem como as inquietações futuras. É um escritor comprometido com a sua origem tempo/espaço e preocupado com o futuro de seu povo, numa perspectiva coletiva. Hoje é um ativista da questão ambiental. Nada melhor do que o título do livro para explicar a sua militante preocupação.

"Meu neto, 
Agora sabe onde me visitar. Já não necessito de lhe escrever por caligrafada palavra. Falaremos aqui, nesta sombra onde ganho dimensão, corpo renascendo em outro corpo. Você, meu neto, cumpriu o ciclo das visitas. E visitou casa, terra, homem, rio: o mesmo ser, só diferindo em nome. Há um rio que nasce dentro de nós, corre por dentro da casa e desagua não no mar, mas na terra. Esse rio uns chamam de vida". Esse texto explicativo você encontra ao final do livro, quando as páginas já rolaram até o último capítulo, o de número 22. Aí você encontra ainda outras explicações.

"Lhe contei tudo sobre a sua família, desfiei histórias, desfiz o laço da mentira. Agora, já não arrisco ser emboscado por segredo. O caçador lança fogo no capim por onde vai caminhando. Eu faço o mesmo com o passado. O tempo para trás eu o vou matando. Não quero isso atrás de mim, sei de criaturas que se alojam lá, nos tempos já revirados". E um pouco mais adiante, ainda no mesmo capítulo final, o desvendar por completo, junto com o que você já colheu pelo caminho.
Mio Couto, o grande escritor moçambicano.

"Chamo-o assim de "meu neto" mas é uma fraqueza de expressão. Você é meu filho. Meu maior filho pois nasceu de um amor sem medida. Por isso, não o escolhi para cerimoniar a minha passagem para a outra margem. Você se escolheu sozinho, a vida escreveu  no seu nome o meu próprio nome". Efetivamente, o romance gira em torno de dois personagens, ambos chamados de Mariano. O avô e o neto. A ambientação da história se dá na ilha Luar do Chão. O enredo envolve o tempo da família do avô Mariano, a quem o neto, depois de longa ausência da ilha, vem para a realização de seu funeral.
Mia Couto em minha casa.


A história também envolve o seu pai, Fulano Malta e a sua mãe, Mariavilhosa. O pai fora um guerreiro revolucionário. Lutara pela independência e estava decepcionado A mãe se fez água, suicidando-se no rio. Envolve ainda a avó Dulcineusa e os tios Abstinêncio, Ultímio e a tia Admirança. Destaque especial é dado ao tio Ultímio. Uma frase o sintetiza, "uns possuem, outros são possuídos pelo dinheiro". Ou ainda: "Porque esse meu tio, sua mulher e seus filhos se guiavam por pressas e cobiças. Queriam muito e depressa". Ultímio se rendera à ganância. Ao seu redor só grassavam desgraças e desavenças na família. Tudo queria comprar.

A fortuna de Ultímio é envolta em mistério, especialmente a origem de sua fortuna. Um pó branco que envenenara a terra. A terra que se transforma em rocha dura e se fecha como sepultura do avô Mariano. As chuvas também haviam cessado e o Dr. Amílcar Mascarenha, o único médico do local, não lhe prescreve o óbito. O mistério se avoluma com as misteriosas cartas que o dito defunto avô escreve para o neto, que na verdade eram ditadas pelo avô para o neto que as caligrafava. Estas cartas é que vão revelando a verdadeira história. Avô Mariano se recusava a partir antes da mulher de número cem e do desvendar de toda a história, cujo final, em essência, já transcrevemos. O resto está escondido nas curvas do rio e nos cantos da casa.
Frase de epígrafe do último capítulo.


Além da beleza e da provocação de cada frase, o livro é também uma bela história de amor. Esta ganha força, como podemos ver na simbolização de uma relação amorosa entre o neto e Nyembeti, "Não há quente como o da boca. Não há incêndio que chegue à febre dos corpos se amando", e quando descobre que Nyembete era a terra de Luar do Chão, a sua ilha natal. E... na minha linha linha do tempo futuro descortino novos livros e novas leituras de Mia Couto, o grande nome da literatura africana e da língua portuguesa.

2 comentários:

  1. Mia Couto é poesia e poesia se sente. Não tem resumo. Muito obrigado wary neko pela sua atenção.

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