sábado, 6 de junho de 2015

O Irmão Alemão. Chico Buarque.

Assombros familiares já fizeram muita literatura. E que literatura! De primeiríssima qualidade. Estamos diante de mais uma situação dessas. Chico Buarque de Holanda escreve sobre a sua família em O irmão alemão. O livro é uma fantástica mistura de realidade e ficção, de memória e de imaginação. Os dados, tanto os da memória, quanto os da ficção são maravilhosos. Chico nos dá uma oportunidade de penetrar no seu universo familiar, quando se lança em busca de seu irmão alemão. A busca também abrange o seu irmão brasileiro.
O Irmão Alemão. - O mais novo livro de Chico Buarque.

A orelha do livro nos dá a origem da busca de Chico pelo irmão alemão. Ele soube da existência desse seu irmão, aos 22 anos, numa conversa com Vinícius de Moraes e Tom Jobim, na casa de Manuel Bandeira. (Olha as companhias!) Sérgio Buarque de Holanda, ou o Sérgio Hollander viveu na Alemanha nos anos de 1929 e 1930, mais precisamente, em Berlim, onde, numa aventura amorosa teve um filho que nem sequer chegou a conhecer. O nome do irmão alemão do Chico foi Sérgio Ernst, nascido em 1930. Ernst era o sobrenome da mãe do menino. O livro tem a seguinte dedicatória: Para Sergios.

A busca pelo irmão desvenda o universo familiar da família Buarque de Holanda. O pai era um ser impenetrável. Uma carta vinda da Alemanha o define muito bem. Esta carta está em meio aos seus inúmeros livros. Ela diz assim: "Pelo teu silêncio adivinho que estás como sempre nos teus livros imerso". A carta parece ser da mãe de Sergio, como tudo indicava, mas não era. Era de Walter Benjamin, que lhe escreve para desejar um feliz ano de 1932. Na verdade, isso procede da imaginação, pois, a carta é mesmo de Anne, como pode ser visto nas páginas iniciais do livro. Sérgio morou em Berlim, onde foi correspondente de órgãos da imprensa brasileira, além de entrevistar Thomas Mann.
Foto de Chico na orelha do livro. A sua apresentação como escritor.

Os muros da casa eram feitos de livros, nos conta Chico, ou o narrador, que também passo a chamar de Chico. Eram mais de 20.000, passando ao final, para mais de 25.000. Era a maior biblioteca particular do estado de São Paulo. Sérgio também era um bibliófilo. Salários e herança foram gastos com a aquisição de livros, muitos deles raridades, com belas encadernações e, primeiras edições. O pai, pela descrição do Chico, era uma figura inacessível, trancafiado em sua biblioteca. Apenas a mãe tinha acesso, para lhe por em mãos os livros solicitados.
A preciosidade dos livros da biblioteca de Sergio Buarque de Holanda.

Depois de sabido do ocorrido com o pai na Alemanha, Chico inicia a busca do irmão, começando pelas furtivas entradas na biblioteca do pai. Entre as páginas dos livros encontrou algo a mais do que cinzas dos inúmeros cigarros fumados. Havia também cartas, que, ao menos no início se constituíam nas únicas pistas. Por essa correspondência, Chico soube que o irmão foi entregue aos cuidados do Estado, que o pai procurou pelo filho, que quis trazê-lo ao Brasil ou lhe mandar uma pensão, se esse fosse o desejo da mãe. Também soube que a mãe arrumou um outro namorado e aí é que a mistura entre a realidade e a ficção passa a pender mais para o lado da ficção. O namorado da mãe de Sérgio Ernst era músico, pianista famoso. Chico o encontra no Brasil, frequenta a sua família e depois de muita insistência fica sabendo que ele era realmente o namorado, mas que a mulher com quem vivia não era a mãe de Sérgio. Porém, Chico fica muito amigo de Christian, o filho do casal.

A busca pelo irmão alemão também aproxima Chico de seu irmão brasileiro, também sempre distante. Dois fatos vão ganhando consistência no não encontro ou desencontro com os irmãos. O irmão alemão pode ter sido vítima do regime nazista alemão e o irmão brasileiro pode ter desaparecido sob a ditadura militar brasileira, instaurada em 1964 e que recrudesceu em 1968. Um campo enorme se abre assim, para a imaginação.
A troca de cartas, pistas em busca do irmão alemão.


No último capítulo, Chico parte para a Alemanha, na busca mais efetiva do irmão. Segue todas as pistas, bancando um verdadeiro detetive. A mais consistente das pistas virá de um taxista, que ouve música e ao ouvi-la chama atenção do  Chico investigador e assim vão se revelando novos detalhes, mas sem um desfecho. Este só vem por nova nota explicativa ao final do livro. Eis o seu teor:

"Sergio Günther, filho de Sérgio Buarque de Holanda e Anne Ernst (...), nasceu em Berlim, em 21 de dezembro de 1930. Em 1931 ou em 1932, foi entregue pela mãe à Secretaria de Infância e da Juventude do distrito de Tiergarten, Berlim. Em 193?, Arthur Erich Willy Günther e sua mulher, Pauline Anna, adotaram o menino Sérgio Ernst, que seria criado com o nome de Horst Günther. Por volta dos 22 anos, Horst veio a saber da identidade de seus pais naturais, optando por retomar  o prenome Sergio. Entrou para o exército da RDA em 194? e no fim dos anos 50 foi admitido na televisão do Estado, onde desenvolveu múltiplas atividades. Gravou um número incerto de discos, hoje fora de circulação. Morreu de câncer em 12 de setembro de 1981".
Uma foto do arquivo familiar.


Em outra nota Chico diz que esteve em Berlim, com a filha Sílvia Buarque, em 2013 para as entrevistas com a filha de Sergio, Kerstin Prügel, a neta, Josepha Prügel, a ex-mulher, Monika Knebel, e os amigos Werner Reinhardt e Manfred Schmitz. Também dá o nome das pessoas responsáveis pelo desvendar de toda a história. O livro obviamente transcende a mera linha da busca do irmão e entra na construção de uma refinada obra literária.
Olhe para a marcado cigarro. Sergio era um fumante inveterado.


Quero destacar duas passagens do livro. A primeira está relacionada com o imenso amor que o pai tinha para com os livros. Chico diz que o velho ateu, até relativizaria este seu conceito com uma possível visão do inferno. "Contudo, posso até conceber que ao se ver à beira do inferno, que em seus pesadelos talvez fosse uma eternidade sem livros, ou uma livraria infinita com livros em brasa, ele fraquejasse". A outra demonstra erudição e mostra como se faz literatura com literatura. É uma citação de Victor Hugo sobre o significado da vida. "A vida não passa de uma longa perda de tudo o que amamos".


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