sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

A RESISTÊNCIA. Ernesto Sábato. Cinco cartas.

Em 2008 eu comprei o livro A resistência, do escritor argentino Ernesto Sábato. A edição argentina foi lançada no ano de 2000 e a edição brasileira apenas em 2008. O livro está escrito sob a forma de cartas, cinco no total, e são um lancinante grito contra a avassaladora desumanização, que a sensibilidade do escritor constatou já na fase final de sua centenária existência (1911-2011). Vejam o seu estado de espírito, refletido já no primeiro parágrafo de sua primeira carta:

A resistência. Ernesto Sabato. Companhia das Letras. 2008. Tradução Sérgio Molina.

"Há certos dias em que acordo com uma esperança demencial, momentos em que sinto que as possibilidades de uma vida mais humana estão ao alcance de nossas mãos. Hoje é um desses dias.

E então me ponho a escrever quase às apalpadelas na madrugada, com urgência, como alguém que saísse para a rua pedindo ajuda diante de uma ameaça de incêndio, ou como um navio que, a ponto de afundar, mandasse um último e fervoroso sinal para um porto que sabe próximo mas ensurdecido pelo barulho da cidade e pela infinidade de letreiros que confundem o olhar".

Vejamos a apresentação do livro nas suas orelhas: "Ao se aproximar dos cem anos de idade, Ernesto Sábato concebeu este livro como uma espécie de mensagem na garrafa, destinada a encontrar outros seres tão perplexos quanto ele diante da desumanização do homem em nosso tempo.

Na forma de seis cartas ao leitor, o escritor passa em revista as transformações operadas nas últimas décadas no cotidiano, nos valores e na sensibilidade dos indivíduos e dos povos. A solidão nas grandes cidades; o medo da violência; a apatia e o isolamento suscitados por meios como a televisão, a internet e os telefones celulares; a destruição da natureza; a mercantilização da arte; as novas formas de opressão social - tudo isso é abordado com lúcido desespero por alguém que se recusa a aceitar passivamente a degradação da espécie humana.

O olhar de Sábato é isento de nostalgia, mas sua lucidez está solidamente ancorada na tradição humanista e no estudo crítico da história. Como defesa contra a barbárie ameaçadora, o escritor resgata velhos e infalíveis antídotos: o afeto interpessoal, o respeito à diferença, a solidariedade com aquele que sofre, o aperfeiçoamento pessoal por meio da arte e da liberdade de pensamento.

Nessas reflexões está presente, de modo explícito ou implícito, a múltipla formação de um intelectual permanentemente inquieto e inconformado. Cientista que questiona a frieza asséptica da ciência moderna, comunista e companheiro de viagem dos surrealistas na juventude, escritor outsider  que criou alguns dos romances mais perturbadores de nossa época, ativo militante contra a tortura em seu país e no mundo, Sabato plasma toda a sua existência nestas 'cartas' muito pessoais aos leitores".

As seis cartas, na verdade cinco, mais o epílogo, são mais ou menos temáticas. Elas tem os seguintes títulos: Primeira carta. O pequeno e o grande: os valores do espírito, a necessidade do diálogo e a sua atrofia pelo mundo virtual, a necessidade do silêncio ante as conversas aos gritos, a ida a feiras, a busca do outro, a vida de abertura para o outro como uma inclinação natural. E uma frase fantástica: "Com a idade que tenho hoje, posso dizer, dolorosamente, que toda vez que perdemos um encontro humano uma coisa se atrofiou em nós, ou se quebrou" (Página 19). 

Segunda carta. Os antigos valores: Os valores transcendentais e comunitários, não avaliáveis em dinheiro, as antigas festas comemorativas, o tempo utilitário e o "matar o tempo", a perda da vergonha, a corrupção que já não envergonha mais. E - uma frase: "Nas brincadeiras das crianças às vezes percebo os vestígios de rituais e valores que parecem perdidos para sempre, mas que tantas vezes reencontro em cidadezinhas remotas e inóspitas: a dignidade, o desinteresse, a grandeza diante da adversidade, as alegrias simples, a coragem física e a integridade moral" (Página 34).

Terceira carta. Entre o bem e o mal: reminiscências familiares e da infância, o contar de histórias, a convivência com os idosos e o deixar de lado quem já não produz, os alicerces de uma educação, a busca da verdadeira satisfação, os significados da arte. E a frase: "É urgente encararmos uma educação diferente, ensinarmos que vivemos numa terra da qual devemos cuidar, que dependemos da água, do ar, das árvores, dos pássaros e de todos os seres vivos, e que qualquer dano que causemos a este universo grandioso prejudicará a vida futura e pode destruí-la. Que coisa ótima poderia ser o ensino, se, em vez de despejar uma imensidão de informações que ninguém nunca conseguiu reter, fosse vinculado à luta das espécies, à necessidade urgente de preservar os mares e oceanos" (Páginas 55-6). E a fantástica ideia de que só o encontro humano é um luxo verdadeiro.

Quarta carta. Os valores comunitários: Não estamos assistindo apenas a uma crise do capitalismo, mas sim, a falência de toda a cultura ocidental. A globalização e a concentração de poder. Sobre a competição, a corrupção e o individualismo. E a notável frase: "Esta crise não é a crise do sistema capitalista, como muitos imaginam: é a crise de toda uma concepção de mundo e da vida baseada na idolatria da técnica e na exploração do homem. para acumular dinheiro, todos os meios foram válidos. Essa busca da riqueza  não foi levada adiante em benefício de todos, como país, como comunidade; não se trabalhou com um sentimento histórico e de fidelidade à terra. Não, infelizmente isto mais parece o atropelo que se segue a um terremoto, quando, em meio ao caos, cada um tenta saquear tudo o que pode. É inegável que esta sociedade cresceu tendo como meta a conquista, em que ter poder significa apropriar-se do alheio, e a exploração se estendeu a todas as regiões do mundo" (Página 71). E a memorável ideia de que "é na mulher que se encontra o desejo de proteger, absolutamente".

Quinta carta. A resistência: duas frases curtas: "Os homens encontram nas próprias crises a força para sua superação" (Página 90). E "O mundo nada pode contra um homem que canta na miséria" (Página 91).

Epílogo. A decisão e a morte: Dois parágrafos: "Assim como a vida dos homens, as culturas atravessam períodos fecundos em que as horas de dor e de alegria se alternam sob o mesmo céu; os povos seguem o curso da vida com um olhar legado por gerações e incorporam as mudanças a um sentido que os transcende.

Este não é um desses momentos. Pelo contrário, é um tempo angustiante e decisivo, como foi a passagem dos dias imperiais de Roma ao feudalismo, ou da Idade Média ao capitalismo. Mas eu ousaria dizer que é mais grave porque absoluto, pois está em jogo a própria vida do planeta". Página 99).

O livro, muito para além das cartas, é uma poesia anunciadora e benfazeja. Termino com a visão que Sabato tem da criança: "Toda a criança é um artista que canta, dança, pinta, conta histórias e constrói castelos". Página 78.

2 comentários:

  1. Muito obrigado pelo texto, preciso deste livro!
    Grande abraço

    Carlos A

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    1. Carlos, este livro é um verdadeiro grito por socorro, socorro por humanidade. Muito obrigado pela sua manifestação.

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