Em julho de 2012 eu, definitivamente, me aposentei da sala de aula. Foi uma decisão muito difícil deixar este local onde sempre me senti muito bem. Junto com a aposentadoria, eu mesmo me presenteei com uma viagem de trinta dias pelos locais fundadores da cultura ocidental. Assim me vi em Roma, em Delfos, em Atenas, na Sicília, em Nápoles e Pompeia. Estive na Ponte Vechio e percorri os trajetos de Dante na sua amada Florença, vi a poderosa Milão e, em Gênova, saí do porto, assim como milhares de emigrantes em busca de novos destinos. Em Verona fiz uma visita a Romeu e Julieta, andei de gôndola na Sereníssima República de Veneza, fui a Assis e na estrangeira República de San Marino. De volta a Roma, ainda com tempo para pedir uma bênção ao papa, voltamos ao Brasil.
A pele. Curzio Malaparte. Abril. 1972. Tradução: Alexandre O'Neill.Mas, por que estou contando isso? Por um motivo muito simples. Estando em Nápoles, fomos visitar a famosa ilha de Capri, onde moram as sereias. Lá fizemos uma viagem de barco ao redor da bela ilha. E, me lembro bem, que o guia que nos acompanhava nos apresentou uma casa. Era a casa do escritor Curzio Malaparte. Ele nos falava da maravilha dessa casa e dos grandes encontros que nela se realizavam. Lembro que fiquei bastante intrigado com essa apresentação. Mas ficou por isso, diante de tantos encantos que as paradisíacas paisagem nos ofereciam.
Agora a ligação dos fatos. Tenho em casa, em minha modesta biblioteca, a coleção de Livros da Abril - Os imortais da literatura universal. Entre eles, o de número 46, A pele, de Curzio Malaparte. Me impus a tarefa de ler os que ainda não lera e reler os maiores clássicos. Assim tomei em mãos, tanto o livro, quanto o livro de biografias e contextualizações, que acompanha a coleção. Fui à biografia, antes da leitura do livro. Ele me encheu de curiosidades e com uma imensa vontade de ler uma biografia melhor trabalhada sobre o autor. Uma vida cheia de conturbações e de mudança de posições. Dou alguns dados, mas antes quero dizer que Curzio Malaparte é o pseudônimo de Kurt Erich Suckert. O Malaparte é em oposição a Napoleão, que era Bonaparte.
Do livro de biografias tomo a apresentação do escritor: "Ilha de Capri, 1943. Kurt Erich Suckert (1898 - 1957), escritor e jornalista, volta as costas para a Europa de chamas e ruínas, e olha para o mar.
Ondas e gaivotas. Estranhos os sons semi-sonolentos do oceano a contrastarem com os ruídos incisivos que haviam acompanhado Suckert nos últimos quatro anos: palavras, gritos de homens irados, eco de passos marciais sobre o asfalto, uivo de obuses, próximos e distantes, latir nervoso de armas automáticas, riso cruel de metralhadoras, botas apressadas sobre a lama. E o som do sangue, alto e agudo, sangrando lento das veias do continente moribundo.
Quatro anos de guerra. A Europa tuberculosa expectora balas de ferro. Mas os canhões cansados já denunciam a agonia do paciente. Esmagado, arruinado, destruído.
Como político, como correspondente de guerra, como ser humano, Kurt Erich Suckert esteve nas várias frentes de decisões: Alpes franceses, Polônia, Rússia, Finlândia, Alemanha, Itália.
Escombros e ruínas de cidades e homens. Assim Suckert viu a Europa. E, se na ilha de Capri, lhe volta as costas, não há nesse ato indiferença. Era como o filho único de um camponês doente e solitário, que abandona o leito paterno para observar a estrada por onde deve vir o socorro.
Os olhos no mar perscrutam ao longe. Esperam a frota anglo-americana de invasão que iria libertar a Itália e a Europa do terror nazi-fascista.
Na guerra, na invasão, o remédio para a guerra, para as invasões. E Suckert, antigo ideólogo do Partido Fascista Italiano, espera tropas estranhas, vindas de outro continente, para a elas juntar-se na luta contra seus antigos amigos.
Na sua atitude não há, porém, traição ou contradição. As posições que defende são conhecidas; rompeu com o fascismo oito anos antes de Hitler (1889-1945) invadir a Polônia. Quanto à guerra, considera-a não um mal em si mesmo, mas a consequência do impasse, da decadência a que chegara a velha civilização. Acha preferível lutar, destruir, a aceitar passivamente o mundo paralítico da década de 30. Por isso escreveu: 'Saiba-se que prefiro esta Europa destruída à Europa de ontem, e à de há vinte, de há trinta anos. Prefiro que tudo esteja por refazer a ter de aceitar tudo como herança imutável'".
É o livro. Não só A pele, mas também Kaputt. São os seus dois livros sobre os horrores da Segunda Guerra Mundial. Em Kaputt a guerra e em A pele, o pós-guerra.
O cenário de A pele, é a cidade de Nápoles (próxima a ilha de Capri e do Vesúvio). O ano é o de 1943. O fato é a chegada dos exércitos aliados para a libertação da Itália e da Europa. O livro é um constante diálogo entre o escritor e os comandantes do exército dos Estados Unidos. Como recebê-los, como tratá-los. um encontro entre vencidos e vencedores. Ou dos vencidos à espera dos vencedores, em nome da liberdade. As descrições são muito vivas, fortes e algumas até inspiram asco, o asco das consequências de uma guerra, da ausência de qualquer dignidade na busca pela sobrevivência. Vidas ao sabor dos soldados do exército dos vencedores, inclusive o da prostituição das mulheres e das crianças, em troca de um dólar ou de um pedaço de pão.
Salvar a alma ou salvar a pele? Eis a grande questão. Nos diálogos há o encontro da história, dos valores culturais, da arte com a riqueza de um novo continente. O encontro de Malaparte com os oficiais vencedores se dá num tom de cordialidade, entremeada de muita sutileza e fina ironia. A ingenuidade dos oficiais é exposta. O livro é, inclusive, dedicado aos vencedores Vejamos a dedicatória: "A memória afetuosa do Coronel Henry H. Cumming, da Universidade de Virgínia, e de todos os bravos, os bons, os honestos soldados americanos, meus companheiros de armas de 1943 a 1945, mortos inutilmente pela liberdade da Europa".
Deixo as frase finais do livro (de doze capítulos e 369 páginas), um dialogo entre o escritor e Jimmy, um alto oficial do exército vencedor:
"Estou cansado de viver entre os mortos - tornou Jimmy. - Sinto-me contente por voltar para casa, por voltar à América, por voltar a viver entre os homens vivos. Porque não vens tu também para a América? és um homem vivo. A América é um país rico e feliz.
- Sei muito bem, Jimmy, que a América é um país rico e feliz. Mas não irei, devo ficar aqui. Não sou um covarde, Jimmy. E depois, também a miséria, a fome, o medo, a esperança são coisas maravilhosas. Mais que a riqueza, mais que a felicidade.
- A Europa é um monte de lixo - disse Jimmy, um pobre país vencido. Vem conosco. A América é um país livre.
- Não posso abandonar os meus mortos, Jimmy. Vocês levam os seus mortos para a América. Todos os dias partem para a América navios carregados de mortos. Morreram ricos e felizes, livres. mas os meus mortos não podem pagar o bilhete para a América, são pobres demais. Nunca chegarão a saber o que é a riqueza, a felicidade, a liberdade. Viveram sempre na escravidão; sofreram sempre a fome e o medo. Serão sempre a fome e o medo. Serão sempre escravos, sofrerão sempre a fome e o medo, mesmo mortos. É o destino que lhes coube, Jimmy. Se soubesses que Cristo jaz entre eles, entre esses mortos, ias abandoná-lo?
Não queres com certeza que eu acredite - ponderou Jimmy - que também Cristo perdeu a guerra.
- É uma vergonha ganhar a guerra - disse eu em voz baixa".
O livro de biografias nos conta sobre o final de sua vida. Nela permaneceram as contradições que o acompanharam ao longo de toda a vida. Ao visitar a China, tornou-se comunista e ao final converteu-se ao catolicismo. Morre em Roma (19 de julho - 1957) e nos deixa uma espécie de pequeno testamento: "Que os tempos novos sejam tempos de liberdade e de respeito para todos; inclusive para os escritores (os seus livros figuraram no Índice de livros proibidos, o famoso Index) É que só a liberdade e o respeito à cultura poderão salvar a Itália e a Europa daqueles dias cruéis de que fala Montesquieu: 'Assim, no tempo das fábulas, após inundações e dilúvios, saíram da terra homens armados que se exterminaram'".
"Saíram da terra homens armados que se exterminaram". Uma definição do que é uma guerra.
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