terça-feira, 18 de março de 2025

A PELE. Curzio Malaparte. 1949.

Em julho de 2012 eu, definitivamente, me aposentei da sala de aula. Foi uma decisão muito difícil deixar este local onde sempre me senti muito bem. Junto com a aposentadoria, eu mesmo me presenteei com uma viagem de trinta dias pelos locais fundadores da cultura ocidental. Assim me vi em Roma, em Delfos, em Atenas, na Sicília, em Nápoles e Pompeia. Estive na Ponte Vechio e percorri os trajetos de Dante na sua amada Florença, vi a poderosa Milão e, em Gênova, saí do porto, assim como milhares de emigrantes em busca de novos destinos. Em Verona fiz uma visita a Romeu e Julieta, andei de gôndola na Sereníssima República de Veneza, fui a Assis e na estrangeira República de San Marino. De volta a Roma, ainda com tempo para pedir uma bênção ao papa, voltamos ao Brasil.

A pele. Curzio Malaparte. Abril. 1972. Tradução: Alexandre O'Neill.

Mas, por que estou contando isso? Por um motivo muito simples. Estando em Nápoles, fomos visitar a famosa ilha de Capri, onde moram as sereias. Lá fizemos uma viagem de barco ao redor da bela ilha. E, me lembro bem, que o guia que nos acompanhava nos apresentou uma casa. Era a casa do escritor Curzio Malaparte. Ele nos falava da maravilha dessa casa e dos grandes encontros que nela se realizavam. Lembro que fiquei bastante intrigado com essa apresentação. Mas ficou por isso, diante de tantos encantos que as paradisíacas paisagem nos ofereciam.

Agora a ligação dos fatos. Tenho em casa, em minha modesta biblioteca, a coleção de Livros da Abril - Os imortais da literatura universal. Entre eles, o de número 46, A pele, de Curzio Malaparte. Me impus a tarefa de ler os que ainda não lera e reler os maiores clássicos. Assim tomei em mãos, tanto o livro, quanto o livro de biografias e contextualizações, que acompanha a coleção. Fui à biografia, antes da leitura do livro. Ele me encheu de curiosidades e com uma imensa vontade de ler uma biografia melhor trabalhada sobre o autor. Uma vida cheia de conturbações e de mudança de posições. Dou alguns dados, mas antes quero dizer que Curzio Malaparte é o pseudônimo de Kurt Erich Suckert. O Malaparte é em oposição a Napoleão, que era Bonaparte.

Do livro de biografias tomo a apresentação do escritor: "Ilha de Capri, 1943. Kurt Erich Suckert (1898 - 1957), escritor e jornalista, volta as costas para a Europa de chamas e ruínas, e olha para o mar.

Ondas e gaivotas. Estranhos os sons semi-sonolentos do oceano a contrastarem com os ruídos incisivos que haviam acompanhado Suckert nos últimos quatro anos: palavras, gritos de homens irados, eco de passos marciais sobre o asfalto, uivo de obuses, próximos e distantes, latir nervoso de armas automáticas, riso cruel de metralhadoras, botas apressadas sobre a lama. E o som do sangue, alto e agudo, sangrando lento das veias do continente moribundo.

Quatro anos de guerra. A Europa tuberculosa expectora balas de ferro. Mas os canhões cansados já denunciam a agonia do paciente. Esmagado, arruinado, destruído.

Como político, como correspondente de guerra, como ser humano, Kurt Erich Suckert esteve nas várias frentes de decisões: Alpes franceses, Polônia, Rússia, Finlândia, Alemanha, Itália.

Escombros e ruínas de cidades e homens. Assim Suckert viu a Europa. E, se na ilha de Capri, lhe volta as costas, não há nesse ato indiferença. Era como o filho único de um camponês doente e solitário, que abandona o leito paterno para observar a estrada por onde deve vir o socorro. 

Os olhos no mar perscrutam ao longe. Esperam a frota anglo-americana de invasão que iria libertar a Itália e a Europa do terror nazi-fascista.

Na guerra, na invasão, o remédio para a guerra, para as invasões. E Suckert, antigo ideólogo do Partido Fascista Italiano, espera tropas estranhas, vindas de outro continente, para a elas juntar-se na luta contra seus antigos amigos.

Na sua atitude não há, porém, traição ou contradição. As posições que defende são conhecidas; rompeu com o fascismo oito anos antes de Hitler (1889-1945) invadir a Polônia. Quanto à guerra, considera-a não um mal em si mesmo, mas a consequência do impasse, da decadência a que chegara a velha civilização. Acha preferível lutar, destruir, a aceitar passivamente o mundo paralítico da década de 30. Por isso escreveu: 'Saiba-se que prefiro esta Europa destruída à Europa de ontem, e à de há vinte, de há trinta anos. Prefiro que tudo esteja por refazer a ter de aceitar tudo como herança imutável'".

É o livro. Não só A pele, mas também Kaputt. São os seus dois livros sobre os horrores da Segunda Guerra Mundial. Em Kaputt a guerra e em A pele, o pós-guerra.

O cenário de A pele, é a cidade de Nápoles (próxima a ilha de Capri e do Vesúvio). O ano é o de 1943. O fato é a chegada dos exércitos aliados para a libertação da Itália e da Europa. O livro é um constante diálogo entre o escritor e os comandantes do exército dos Estados Unidos. Como recebê-los, como tratá-los. um encontro entre vencidos e vencedores.  Ou dos vencidos à espera dos vencedores, em nome da liberdade. As descrições são muito vivas, fortes e algumas até inspiram asco, o asco das consequências de uma guerra, da ausência de qualquer dignidade na busca pela sobrevivência. Vidas ao sabor dos soldados do exército dos vencedores, inclusive o da prostituição das mulheres e das crianças, em troca de um dólar ou de um pedaço de pão.

Salvar a alma ou salvar a pele? Eis a grande questão. Nos diálogos há o encontro da história, dos valores culturais, da arte com a riqueza de um novo continente. O encontro de Malaparte com os oficiais vencedores se dá num tom de cordialidade, entremeada de muita sutileza e fina ironia. A ingenuidade dos oficiais é exposta. O livro é, inclusive, dedicado aos vencedores Vejamos a dedicatória: "A memória afetuosa do Coronel Henry H. Cumming, da Universidade de Virgínia, e de todos os bravos, os bons, os honestos soldados americanos, meus companheiros de armas de 1943 a 1945, mortos inutilmente pela liberdade da Europa". 

Deixo as frase finais do livro (de doze capítulos e 369 páginas), um dialogo entre o escritor e Jimmy, um alto oficial do exército vencedor:

"Estou cansado de viver entre os mortos - tornou Jimmy. - Sinto-me contente por voltar para casa, por voltar à América, por voltar a viver entre os homens vivos. Porque não vens tu também para a América? és um homem vivo. A América é um país rico e feliz.

- Sei muito bem, Jimmy, que a América é um país rico e feliz. Mas não irei, devo ficar aqui. Não sou um covarde, Jimmy. E depois, também a miséria, a fome, o medo, a esperança são coisas maravilhosas. Mais que a riqueza, mais que a felicidade.

- A Europa é um monte de lixo - disse Jimmy, um pobre país vencido. Vem conosco. A América é um país livre.

- Não posso abandonar os meus mortos, Jimmy. Vocês levam os seus mortos para a América. Todos os dias partem para a América navios carregados de mortos. Morreram ricos e felizes, livres. mas os meus mortos não podem pagar o bilhete para a América, são pobres demais. Nunca chegarão a saber o que é a riqueza, a felicidade, a liberdade. Viveram sempre na escravidão; sofreram sempre a fome e o medo. Serão sempre a fome e o medo. Serão sempre escravos, sofrerão sempre a fome e o medo, mesmo mortos. É o destino que lhes coube, Jimmy. Se soubesses que Cristo jaz entre eles, entre esses mortos, ias abandoná-lo?

Não queres com certeza que eu acredite  - ponderou Jimmy - que também Cristo perdeu a guerra.

- É uma vergonha ganhar a guerra - disse eu em voz baixa".

O livro de biografias nos conta sobre o final de sua vida. Nela permaneceram as contradições que o acompanharam ao longo de toda a vida. Ao visitar a China, tornou-se comunista e ao final converteu-se ao catolicismo. Morre em Roma (19 de julho - 1957) e nos deixa uma espécie de pequeno testamento: "Que os tempos novos sejam tempos de liberdade e de respeito para todos; inclusive para os escritores (os seus livros figuraram no Índice de livros proibidos, o famoso Index) É que só a liberdade e o respeito à cultura poderão salvar a  Itália e a Europa daqueles dias cruéis de que fala Montesquieu: 'Assim, no tempo das fábulas, após inundações e dilúvios, saíram da terra homens armados que se exterminaram'".

"Saíram da terra homens armados que se exterminaram". Uma definição do que é uma guerra.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo comentário. Depois de moderado ele será liberado.