segunda-feira, 28 de abril de 2025

A conquista da felicidade. Bertrand Russel. Nobel de literatura - 1950.

Confesso que não sou muito fã de leituras que envolvam este complicado tema da felicidade. Eu explico o porquê. É que este tema quase sempre é abordado por moralistas ou religiosos. E sobre isso eu tenho uma frase lapidar. É do Eça de Queirós, em O crime do padre Amaro. Nele, o padre Amaro reage ao cônego Dias, que o chamara de traste: "Traste por quê? Diga-me lá! Traste por quê. Temos ambos culpa no cartório, eis aí está. E olhe que eu não fui perguntar, nem peitar a Totó... Foi muito naturalmente ao entrar em casa. E se me vem agora com coisas de moral, isso faz-me rir. A moral é para a escola e para o sermão. Cá na vida eu faço isto, o senhor faz aquilo, os outros fazem o que podem. O padre-mestre que já tem idade agarra-se à velha, eu que sou jovem arranjo-me com a pequena. É triste mas que fazer? É a natureza que manda. Somos homens. E como sacerdotes, para honra da classe, o que temos é que fazer costas!". Está aí. Moralistas e religiosos.

Mas o livro que eu tomei em mãos não é o de um moralista, nem o de um religioso. É de um senhor escritor e de um senhor filósofo: Bertrand Russel. Tenho por ele o maior respeito, respeito que lhe devoto desde a leitura de Por que não sou cristão. O livro em questão é - A conquista da felicidade. A sua primeira publicação data de 1930. Em 1950 o autor foi laureado com o Prêmio Nobel de Literatura. Bertrand Russel (1872-1970) teve uma longa vida. Certamente que uma vida feliz o ajudou a ter toda essa longevidade.

A conquista da felicidade. Bertrand Russel. Ediouro. Tradução: Luiz Guerra. 

Se não aprecio tanto a abordagem do tema, também não nego a sua fundamental importância. Afinal de contas, a busca da felicidade é o objetivo último da vida. Assim, sem sombra de dúvida, ele vale muito de nossa atenção. Reflexões sobre o tema também propiciam ajudas no seu alcance.  O livro tem um belíssimo prefácio, no qual o autor apresenta as razões do livro. Transcrevo-o:

"Este livro não é endereçado aos eruditos nem àqueles que julgam que um problema prático não passa de um tema de conversa. O leitor não encontrará nestas páginas nem filosofias e nem erudição profundas. Pensei em reunir alguns comentários inspirados, segundo acredito, pelo senso comum. O que apenas posso dizer em favor dos conselhos que ofereço ao leitor é que se acham confirmados, por minha própria experiência e observação, e que fizeram aumentar minha felicidade sempre que me conduzi de acordo com eles. Sendo assim, ouso esperar que, entre a multidão de homens e mulheres que sofrem, alguns encontrem aqui o diagnóstico de sua própria situação e sugestões eficientes para resolverem tais questões. Ao escrever este livro, parto da convicção de que muitas pessoas infelizes podem chegar a conquistar a felicidade, se fizerem um esforço bem orientado". Na sequência cita um poema:

"Creio que poderia transformar-me e viver com os animais. Eles são tão calmos e donos de si. // Detenho-me para contemplá-los sem parar. // Não se atarantam nem se queixam da própria sorte, // Não passam a noite em claro, remoendo suas culpas, // Nem me aborrecem falando de suas obrigações para com Deus. // Nenhum deles se mostra insatisfeito, nenhum deles se acha dominado pela mania de possuir coisas. // Nenhum deles fica de joelhos diante de outro, nem diante da recordação de outros da mesma espécie que viveram há milhares de anos. // Nenhum deles é respeitável ou desgraçado em todo o amplo mundo". O poema é de Walt Whitman. Seria este poema uma alegoria ou fonte da qual emanam as causas da infelicidade?

Vamos sublinhar - nem erudição, nem filosofias. Mas vivência. Conselhos confirmados por minha experiência e observação. Ofereço aquilo que deu certo para mim, além de dois princípios fundamentais: esforço e boa orientação. Bem, vamos agora a estruturação básica do livro. Ele está dividido em duas partes: A primeira aponta para as causas da infelicidade e a segunda, o seu oposto, ou seja, as causas que conduzem à felicidade. Um estruturação bem simples.

A primeira parte, qual seja, as causas da infelicidade, tem nove capítulos. É o que devemos evitar. Vou nominá-los: 1. O que torna as pessoas infelizes; 2. Infelicidade byroniana; 3. Competição; 4. Tédio e excitação; 5. Fadiga; 6. Inveja; 7. Sentimento de pecado (remorso, culpa); 8. Mania de perseguição; 9 Medo da opinião pública. Esses sentimentos ou situações estão muito presentes, ou profundamente impregnados na cultura, na civilização ocidental, praticamente como valores dominantes. São, portanto, os fundamentos de uma cultura que contém em si, as causas da infelicidade. O avesso das virtudes. Simples assim. Quanta literatura não existe sobre o tema!...

A segunda parte, qual seja, as causas da felicidade, tem oito capítulos. É o que devemos buscar. Eis a relação: 10. A felicidade é ainda possível?; 11. Entusiasmo; 12. Afeição; 13. Família; 14. Trabalho; 15. Interesses impessoais; 16. Esforço e resignação; 17. O homem feliz. Recomendações daquilo que deve ser buscado. O livro não é longo. São 210 páginas.

Do capítulo final tomo algumas reflexões; Nele, Russel afirma que, para o alcance da felicidade, devemos estar atentos aos fatores externos e internos a nós. Os externos são os da cultura dominante, à qual devemos nos inserir (ou adaptar?) e os internos são as nossas atitudes frente a essa situação. Tomar consciência desses fatores é de fundamental importância. Do capítulo fiz uma anotação especial: 

"Quando as circunstâncias externas não são francamente adversas, a felicidade deveria estar ao alcance de qualquer um, sempre que suas paixões e seus interesses se dirijam para o exterior e não para seu interior. Assim, deveríamos nos propor, tanto na educação quanto em nossa intenção de nos adaptarmos ao mundo, evitar paixões egoístas e adquirir afetos e interesses que impeçam que nossos pensamentos girem perpetuamente em torno de nós próprios. A rigor, ninguém pode ser feliz atrás das grades, e as paixões que nos encerram dentro de nós mesmos constituem um dos piores tipos de cárcere. As mais comuns entre essas paixões são o medo, a inveja, o sentimento de culpa, a auto-compaixão e a auto-admiração. Em todas elas, nossos desejos se encontram em nós mesmos: não existe um interesse genuíno pelo mundo exterior, só a preocupação de que possa nos causar mal ou deixar de alimentar nosso ego. É em virtude do medo que a pessoa resiste a admitir os fatos e se predispõe a encapsular-se num protetor abrigo de mitos. Mas os incidentes desagradáveis penetram no abrigo e aqueles que estavam habituados a ficar protegidos sofrem mais do que os que se temperaram, enfrentando as agruras da vida. Além disso, os que se iludem costumam saber que, no fundo, estão errados, e vivem em um estado de apreensão, temendo que algum acontecimento funesto os obrigue a aceitar realidades desagradáveis" (Página 206).

Enfim, viver é algo muito complexo. A cultura dominante ajuda a torná-los ainda mais complexos e opostos ao que chamamos de princípios humanos, de uma vida em convívios harmoniosos com a natureza e com a sociedade. O comum e a sua prevalência sobre o individual... Valores de solidariedade e sua prevalência sobre a competição... Creio que o tema nos remete a outra questão fundamental que é a questão da alteridade. Sobre ela deixo uma bela reflexão:

 http://www.blogdopedroeloi.com.br/2016/01/alteridade-albert-jacquard.html

Junto com a indicação da leitura, deixo a recomendação contida na contracapa: "Muito antes de ser laureado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1950, o filósofo e matemático Bertrand Russel já dava mostras de seu talento e sensibilidade nas letras. A conquista da felicidade, escrito em 1930, aborda um tema comum aos homens de todas as épocas e classes sociais. Que o leitor não espere, como o autor adverte, nem filosofia nem erudição profundas. O que move Russel nesta obra é a convicção de que, com um pouco de esforço bem-orientado, é possível chegar à felicidade".

quarta-feira, 16 de abril de 2025

O Apanhador no campo de centeio. J.D. Salinger. 1951.

Não se trata de um livro tão simples e de leitura fácil e fluente. Não é tão simples aguentar o mau humor do jovem Holden Caulfield, de dezessete anos, ao longo de vinte e seis capítulos que ocupam 206 páginas. Estou falando de um livro famoso, de um dos maiores best-sellers, de muitas polêmicas e proibições, O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger. A primeira publicação data do ano de 1951. O cenário é a cidade de Nova York. Anos posteriores à Segunda Guerra Mundial. O livro é escrito em primeira pessoa. Portanto, Holden narra a sua própria história.


O apanhador no campo de centeio. J.D. Salinger. Tradução: Álvaro Alencar, Antônio Rocha e Jório Dauster. Editora do autor. 13ª edição.

Quem está em busca de um final da história, já a encontrará no primeiro parágrafo do primeiro capítulo: "Só vou contar esse negócio de doido que me aconteceu no último Natal, pouco antes de sofrer um esgotamento e de me mandarem para aqui, onde estou me recuperando". E diz mais, que talvez no mês seguinte, o seu irmão o levará à casa dos pais num jaguar de cerca de quatro mil dólares. Diz que ele está podre de rico, se "prostituindo" em Hollywood, isto é, no cinema. Percebem a crítica, uma das principais características do livro.

Daí começa a contar efetivamente a sua história. O acontecimento do Natal fora mais uma expulsão sua de colégio, agora, do famoso Internato Pensey, na Pennsylvania. Ele reprovara em quatro matérias, de cinco. Neste colégio professores e alunos viviam em mundos diferentes, a começar pela grande diferença de idade e as consequências daí decorrentes. O seu gosto pela leitura o salvara apenas na disciplina de inglês. Em grande parte dos primeiros capítulos Holden descreve o cotidiano do internato: seus colegas, os hábitos, as chatices, as intrigas, os esportes e as dificuldades nos relacionamentos. 

Depois começa a narrativa de sua saída. Isso ocorre num final de semana. Como as férias de Natal começariam apenas na quarta feira, ele não quer chegar em casa, antes desse dia. Assim fica vagando por Nova York. Gasta o tempo no hotel, com telefonemas, em boates e em bebedeiras, mesmo não tendo idade para beber. Mas tendo dinheiro... E por falar em dinheiro, gasta tudo o que lhe sobrara. O tempo do - nada a fazer - é o grande causador de suas angústias e tormentos. Inventa maneiras para fazê-lo passar. É o grande momento do livro. É o tempo das reflexões suas ou com colegas seus, ou com quem encontrasse e lhe desse atenção, sobre os mais diversos temas, entre eles, obviamente, a questão sexual.

No capítulo 16, ele fala de um disco -, Litle Shirley Beans. Sai em sua procura, pois quer dá-lo de presente para a sua irmãzinha, Phoebe, com a idade de dez anos. Holden a adora. Encontra o disco e o compra. Mas, lá pelas tantas, ele cai e quebra em pedaços. Ponho esse fato na resenha em função do significado de Phoebe em sua vida. Ela é praticamente a única pessoa que lhe faz bem. Voltaremos a falar dela. No mesmo capítulo também aparece o título do livro. Holden vê uma família andando pela rua. Um menino cantarolava, junto aos pais, que não lhe davam muita atenção. Ele cantarolava: "Se alguém agarra alguém atravessando o campo de centeio".

Essa música volta no capítulo 22. Nela encontraremos Holden e Phoebe, na casa dos pais, mas estes estavam ausentes, tinham saído. Conversam por um bom tempo. Vejamos uma parte desse diálogo: " - Você sabe o que eu quero ser? - perguntei a ela. - Sabe o que eu queria ser? Se pudesse fazer a merda da escolha? 

- O que? para de dizer nome feio.

- Você conhece aquela cantiga: 'Se alguém agarra alguém atravessando o campo de centeio'? Eu queria..

- A cantiga é 'Se alguém encontra alguém atravessando o campo de centeio'! - ela disse. É dum poema do Robert Burns.

- Eu sei que é dum poema do Robert Burns.

Mas ela tinha razão. É mesmo 'Se alguém encontra alguém atravessando o campo de centeio'. Mas eu não sabia direito.

- Pensei que era 'Se alguém agarra alguém' - falei. - Seja lá como for, fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num baita campo de centeio e tudo. Milhares de garotinhos e ninguém por perto - quer dizer, ninguém grande - a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o quê que eu tenho de fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer. Sei que é maluquice". Página 168. É o livro!

Holden está decidido a ir para o oeste. Não quer um reencontro com os pais. Mas quer se despedir de Phoebe e lhe devolver os poucos dólares que ela lhe emprestara. Ela empaca e quer ir junto. É o momento em que também Holden decide ficar. Agora... é retomar o começo do post.

Mensagem..., fama do livro... Interrogações! O encanto e a doçura de Phoebe. E, por falar em canção, numa rápida procura no Google sobre o livro, encontro - sob o título inglês do livro - The Catcher in the Rye, ser ele também uma canção. Do Guns N'Roses. E segue a seguinte explicação: "A referência ao The Catcher in the Rye, um clássico da literatura americana, é central para entender a mensagem da canção.  Este livro é frequentemente associado à alienação e à luta contra a falsidade percebida na sociedade. A letra expressa um sentimento de descontentamento e confusão em relação ao mundo". Um mundo que, observem a data da publicação do livro, 1951. O mundo acabara de sair de uma Segunda... De uma Segunda Guerra Mundial...

E uma reflexão em que Holden entra na subjetividade de seu irmão, aquele de Hollywood. É sobre a guerra e sobre o exército: "Meu irmão D.B. ficou no exército quatro anos. Esteve na guerra mesmo - participou do desembarque do dia D e tudo - mas acho que ele detestava mais o exército do que a própria guerra" (Página 137). 







quarta-feira, 9 de abril de 2025

"A PRAGA DO PARÁ". Origens e crescimento do pentecostalismo assembleiano - 1911-1931. Rafael da Gama.

Numa de nossas habituais conversas no restaurante São Francisco, o mais antigo de Curitiba (1955), meu amigo Valdemar falava do livro Seja feita a Vossa Vontade - Nelson Rockfeller e o evangelismo na idade do petróleo, de Gerard Colby e Charlotte Dennet (Record, 1998 - 1060 páginas). O livro está disponível na Amazon, a um custo de R$ 1.000,00. Na sua apresentação se lê que Rockefeller juntou-se a Cameron Townsend, um líder evangélico, para, além das finalidades econômicas, combaterem o comunismo e evangelizarem os indígenas da amazônia. A apresentação termina assim. O empreendimento "resultou num dos episódios mais escandalosos da política imperialista americana com ataques à natureza, patrocínio de ditaduras, genocídios, exploração predatória de riquezas naturais e espionagem". 

Por óbvio, o livro me interessou. Mas, como estamos num período em que o governador do Paraná (Rato Júnior), usa as reposições salariais do funcionalismo público como poupança para investimentos..., fazendo despencar os nossos salários, acrescido ao elevado preço do livro, nem me passou pela cabeça a ideia de sua compra. Mas as buscas do livro nas pesquisas da Internet, me sugeriram outros títulos. Entre eles: "A praga do Pará" - origens e crescimento do pentecostalismo assembleiano (1911-1931), de autoria de Rafael da Gama, uma edição da Pluralidades, 2ª edição, 2024. Este eu comprei.

"A praga do Pará". Rafael da Gama. Pluralidades. 2024. 132 páginas.

A primeira coisa que eu tenho a dizer, é que Rafael Gama é historiador. E, na orelha da capa, ele se apresenta como "sempre, e principalmente, servo e amigo de Cristo". O livro historia fatos, historia as polêmicas geradas pelos fatos. O seu livro tem origem acadêmica e obedece aos ditames da metodologia científica. Um livro com toda a seriedade de um pesquisador. Notem que o título "A praga do Pará", está entre aspas. Ele está explicitado no capítulo quatro: "A heresia pentecostal": diálogos e tensões entre pentecostais e protestantes. É uma referência ao tratamento dado aos pentecostais pelos próprios protestantes em seus órgãos de imprensa. Vejamos um trecho da página 76: "São constantes as difamações em relação ao pentecostalismo, ao mesmo tempo que notamos a sua crescente expansão. Logo alguns anos após o início do movimento pentecostal na cidade, já percebemos periódicos batistas e presbiterianos opinando sobre "A heresia pentecostal" (1923), com nominações jocosas como "espírito de fogo" (1916), "A praga que veio do Pará" (1916), entre outras nomenclaturas que eram comuns nesses jornais".

Explicitado isso, vamos a algumas considerações sobre o livro. Com ele, você fica sabendo muito mais do que apenas a questão específica da chegada dos pentecostais à Belém, mas também sobre a religiosidade tradicional na cidade, de sua economia, estrutura social e econômica, crises de saúde e sanitárias, entre outros tantos temas. Observem a delimitação das datas - 1911-1931. Já somos um país republicano. Já instituímos a liberdade religiosa e separamos a Igreja e o Estado. Já estamos no final do ciclo da borracha, do final do século XIX e da primeira década do XX, que provocou, na região, a chamada Belle Époque. O pentecostalismo chega a Belém, portanto, numa época de profundas crises. 

Outro ponto notável do livro é a sua busca por fundamentos históricos, como o surgimento do protestantismo, sua expansão e as formas como ele se estabeleceu nos diferentes países, especialmente nos Estados Unidos. Este país divergiu do anglicanismo inglês e fez surgir novas denominações, entre as quais o autor destaca os metodistas, batistas e presbiterianos, denominações já presentes em Belém, quando da chegada dos adeptos do pentecostalismo. Outro ponto forte do livro é a forma como os Estados Unidos conceberam ou imaginaram a sua religiosidade, como povo eleito, ou como nação eleita e o espírito evangelizador e missionário decorrente. É um protestantismo fundamentalmente calvinista, ligado à prosperidade. Tem muito de Max Weber nas análises do autor. Sim, também tem toda a história da festa de Nossa Senhora de Nazaré.

O livro é estruturado em prefácio, introdução e seis capítulos, assim titulados: 1. Belém do Pará: catolicismo e hegemonia social; 2. "A verdadeira fé": o protestantismo no Pará; 3. De Los Angeles a Belém do Pará: o surgimento do movimento pentecostal; 4. "A heresia pentecostal": diálogos e tensões entre pentecostais e protestantes; 5."A cura para os leigos": diálogos entre o pentecostalismo e a cidade; 6. "Da violência simbólica à física: diálogos e conflitos entre católicos e pentecostais; Considerações finais e uma rica indicação de referências bibliográficas.

O prefácio, assinado por Gedeão Alencar, destaca a Primeira Missa do 21 de abril de 1500 para oficializar o descobrimento e a oração pentecostal, de 24 de outubro de 2018, após o TSE proclamar o resultado das eleições presidenciais, anunciando Jair Bolsonaro como presidente. Observação bem de acordo com o tema do livro. Momentos históricos diferentes. Disputas do imaginário religioso.

Na Introdução são apresentadas as razões do livro e a sua estruturação básica. Ele é uma decorrência de suas pesquisas de doutorado na PUC/SP. Chama a atenção dos fatos históricos mais importantes do período e o vertiginoso crescimento do pentecostalismo, sendo a Assembleia de Deus, a denominação de maior número de adeptos no Brasil de hoje, num total de mais de 12 milhões de seguidores. "Assembleia de Deus", foi a denominação da primeira igreja fundada pelos pentecostais em Belém.

No primeiro capítulo o autor explicita princípios da doutrina católica, a origem histórica de Santa Maria de Belém do Grão Pará, o sincretismo das religiões dos povos que ali se encontraram, índios, negros e colonizadores brancos, a centralização da fé em Nossa Senhora de Nazaré e a sua história e a economia gomífera (ascensão e declínio). O catolicismo como religião hegemônica sob o comando dos padres barnabitas, ordem religiosa que fora banida na França. Seus órgãos de imprensa e o combate ao protestantismo.

No segundo capítulo são apresentados os protestantes e seus fundamentos religiosos que os diferenciaram do catolicismo, com destaque de uma ligação direta com Deus, sem as mediações típicas e próprias do catolicismo. Se dedicam ao expansionismo, e dividem a América, com a ocupação de sua área norte. A sua consideração como "povo eleito", a "nova Israel". A fé que se impregna num modelo econômico e social. Se elegem como uma "nação modelo", uma referência à prosperidade. De acordo com a finalidade do livro, destaca a presença de missionários suecos nos Estados Unidos. Serão esses suecos que chegarão mais tarde a Belém. o destaque vai para as denominações dos metodistas, batistas e presbiterianos.

O terceiro capítulo é um dos centrais do livro. Ele retrata a origem do pentecostalismo nos Estados Unidos, na cidade de Los Angeles. Dá até o endereço da rua Azusa. Apresenta o "batismo com o Espírito Santo", êxtases, falar línguas, visões e avivamentos, como suas grandes inovações. Vejam uma descrição do "Los Angeles Daily Times", que mostra, tanto as inovações trazidas, quanto a sua recepção nada favorável: "Respirando palavras de estranhos e pronunciando um credo que parece que nenhum mortal poderia entender, a mais nova seita religiosa começou em Los Angeles [...] a estranha doutrina pratica os ritos mais fanáticos [...] Pessoas de cor e uns poucos brancos compõem a congregação, e a noite se torna horrível na vizinhança pelos uivos adoradores, que passam horas se balançando para frente e para trás em uma atitude de oração e súplicas enervantes. Eles alegam ter 'o dom de línguas' e serem capazes de compreender a babel [...] Então é que o pandemônio se solta [...] em uma exaltação de zelo religioso". Nada lisonjeiro. A referência às pessoas de cor se deve a um filho de ex-escravizados, Willian Seymour, entre os fundadores. Entre os seus primeiros adeptos também figuravam os suecos Daniel Berg e Gunnar Vingren. Estes trouxeram a doutrina a Belém (página 63-64).

O quarto capítulo é dedicado às primeiras atividades dos dois missionários, a sua acolhida pelos batistas e metodistas e as desavenças. Foram expulsos de um local onde faziam as suas celebrações e, já em um novo local, os dois e mais dezessete seguidores, lançaram a sua nova denominação, primeiramente como Missão de fé apostólica e depois lhe deram a designação pela qual ficaram denominados no Brasil: Assembleia de Deus. (página 72). No capítulo ainda é mostrada a sua rápida expansão e as causas para esta expansão. Uma religião que prima pelo testemunho e não pela razão.

Aí já entramos no quinto capítulo, uma análise da recepção dessa nova denominação. Ela se assenta em uma sociedade em profunda crise, crise econômica e social e crise de epidemias como a malária, a lepra, a febre amarela, a cólera e a tuberculose. Testemunhos de cura, caem bem em meio a esta realidade. Glossolalia, curas e ampla participação popular impulsionaram a expansão.

O sexto capítulo versa sobre a relação com os católicos. É fácil de entender. O catolicismo era a religião hegemônica e que tudo fez para não perdê-la. Era a religião do poder e este foi usado a seu serviço. Da violência simbólica partiu-se para a violência física da atuação policial. São retratadas cenas dessas violências, especialmente as da cidade de Bragança. 

Das considerações finais tomo o último parágrafo: "Essa reação violenta do catolicismo diante do pentecostalismo mostra mais um estranhamento em relação à ameaça de perda de sua hegemonia. Mostra um processo que se desenrola até os dias de hoje, com um pentecostalismo diverso e pulverizado, atuando fortemente nas periferias do país, em ascensão desde a sua chegada no Brasil através da região amazônica. Estudar o pentecostalismo em sua origem, expansão e consolidação nas primeiras décadas de sua formação no Norte do país, nos faz entender melhor a religiosidade brasileira não apenas no Pará, mas em todo o território nacional no período republicano, trazendo também reflexões sobre o crescimento do pentecostalismo que seguem até os dias atuais. Entender o movimento pentecostal é, assim, procurar entender toda a complexidade do cenário religioso brasileiro, em suas diferentes nuances e manifestações".

Estão abertos os debates.

Deixo ainda dois livros, um deles muito presente nas análises do autor. A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/01/a-etica-protestante-e-o-espirito-do.html e outro, numa visão bem crítica, Os demônios descem do norte, de Délcio Monteiro de Lima. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2016/12/os-demonios-descem-do-norte-delcio.html

quinta-feira, 3 de abril de 2025

A RELIGIÃO NO ELDORADO OU NA TERRA SEM MALES. A partir de Cândido - Voltaire.

Voltaire é extraordinário. Termino de ler dois de seus assim chamados - contos filosóficos. A sua forma de conhecer a realidade do mundo é bem inventiva ou criativa. Em Cândido, os personagens viajam pelo mundo, entrando assim em contato com diferentes realidades. Já em O Ingênuo será um índio da América do Norte que exporá a realidade de seu mundo, ao chegar na França e entrar em choque com a civilização do ocidente cristão. Uma forma bem original para expor as suas concepções de mundo e de as confrontar com os seus adversários.

Contos. Voltaire. Cândido ou o otimismo. Abril. 1972. Páginas 149-238. Tradução: Mário Quintana.

Voltaire é um crítico mordaz da cultura ocidental, especialmente no que se refere a sua parte religiosa, qual seja o cristianismo e o comportamento dos mandatários de suas estruturas. Uma dissonância e um distanciamento enorme entre a teoria e a prática. (Ao escrever este post, estou vestindo uma camiseta, com uma estampa de Paulo Freire e um dito seu: "É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática"). Uma questão de coerência.

Neste post eu quero destacar um diálogo que Cândido teve quando ele, após ter passado por Buenos Aires, onde forçosamente tem que se separar de sua Amada Cunegundes e de passar pelas missões jesuíticas do Paraguai, ele chega ao Eldorado, onde o seu hospedeiro o coloca em contato com o homem mais sábio do reino. Eles versam sobre muitos temas, mas o mais impressionante é a sua exposição sobre a religião que era praticada no antigo império inca. Vejamos o relato do encontro:

"A conversação foi longa; versou sobre a forma de governo, os costumes, as mulheres, os espetáculos públicos, as artes. Afinal Cândido, que sempre tivera gosto pela metafísica, indagou, por intermédio de Cacambo, se no país não havia uma religião.

O velho enrubesceu um pouco.

Como pode o senhor duvidar de tal coisa? - perguntou ele. - Será que nos toma por ingratos?

Cacambo perguntou humildemente qual era a religião de Eldorado.

O velho corou de novo.

- Acaso pode haver duas religiões? disse ele. - Temos, creio eu, a religião de todo mundo: adoramos a Deus dia e noite.

- Não adoram senão a um único Deus? - interrogou Cacambo, sempre servindo de intérprete às dúvidas de Cândido.

- Quer-me parecer - tornou o velho, formalizado - que não há nem dois, nem três, nem quatro deuses. Francamente, fazem cada pergunta!

Cândido não se cansava de interrogar o bom velho; quis saber como rezavam a Deus em Eldorado.

- Não lhe rezamos - disse o bom e respeitável sábio. - Nada temos que lhe pedir; ele nos deu tudo o que precisamos; nós lhe agradecemos sem cessar.

Cândido teve curiosidade de ver os sacerdotes; e perguntou onde estavam.

O bom velho sorriu.

- Meus amigos - disse ele -, nós todos somos sacerdotes; cada manhã, o rei e todos os chefes de família entoam, solenemente, cânticos de  ações de graça; e cinco ou seis mil músicos os acompanham.

- Como, os senhores não tem padres que ensinam, que disputam, que governam, que cabalam, e que mandam queimar as pessoas que não são de sua opinião?

- Só se fôssemos loucos - disse o velho. - Aqui somos todos da mesma opinião, e não entendemos o que quer o senhor dizer com os seus padres.

Cândido, a cada uma dessas palavras, caía em êxtase e dizia consigo: 'Como tudo isto é diferente da Vestfália e do castelo do senhor barão! Se o nosso amigo Pangloss visse Eldorado, não diria mais que o Castelo de Thunder-ten-tronckh era o que havia de melhor sobre a face da terra; não há dúvida de que é preciso viajar'". Páginas 194-195.

Por aí dá para ver que não era por nada que Voltaire era tão radicalmente anticlerical. Deixo a resenha de Cândido, ou o otimismo. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/03/candido-ou-o-otimismo-voltaire-1759.html   e também O Ingênuo.  http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/03/o-ingenuo-voltaire-1767.html

Mas - permitam-me falar um pouco de Voltaire. Da parte final de sua vida. Se antes ele não levava uma vida exemplar, ao menos cristãmente falando, o final dela foi coroado de virtudes incontestáveis. Vejamos o livro de dados biográficos que acompanha a coleção da Abril. Esta parte final o tornou famoso como o filósofo pregador da tolerância. Vejamos:

"E teria continuado nessas atividades (distribuição de justiça, irrigação de áreas rurais, lutas contra epidemias de gado, abertura de uma fábrica de relógios e de escolas) se não tivesse recebido, num dia incerto de 1761, a visita de uma família aterrorizada, contando uma fúnebre estória de perseguição. Um jovem suicidara-se em Toulouse. Existia, contudo, uma lei pela qual o corpo dos suicidas devia ser arrastado pelas ruas e, depois, enforcado em público. O pai do rapaz, Jean Calas, arranjara tudo para que o suicídio parecesse morte natural e o corpo do filho fosse respeitado. Mas Calas era protestante, e acabou sendo acusado de ter assassinado o filho para que não se convertesse ao catolicismo. Foi preso, torturado e condenado à morte.

Enquanto Voltaire defendia a família e a memória de Jean Calas, o corpo de Elisabeth Sirven foi encontrado num poço. A família também era protestante e o juiz acusou os pais de terem matado a jovem. Voltaire, indignado, lançou uma campanha, contratou advogados, redigiu defesas e enviou-as para os tribunais. Concomitantemente escreveu seu famoso Tratado sobre a tolerância.

Esses casos ainda estavam na ordem do dia quando, em 1767, o jovem La Barre, de família protestante, foi acusado de mutilar crucifixos. Ao ser preso, encontraram em seu poder um exemplar do Dicionário filosófico, escrito com a intenção explícita de ridicularizar o fanatismo católico.

O livro obtivera um êxito fantástico. 'Punham-no debaixo das portas, penduravam-no nos cordões das campainhas, os bancos dos passeios públicos andavam repletos dele. Nos lugares de ensino religioso substituía, como por encanto, os catecismos'. [...] Do caso La Barre em diante, a atividade de Voltaire assemelha-se à erupção de um vulcão. O escritor torna-se sério. 'Durante todo esse tempo', diria depois, 'não me escapou um sorriso que não me parecesse um crime'.

[...] Voltaire inundou o país de panfletos, livros, ironias, apelos. Todas as suas cartas terminavam com um veemente apelo: Écrassez l'infâme - Esmagai o infame. No início, seus inimigos tentaram barrar essa avalancha. Os livros eram queimados em praça pública. Inútil. Cidadãos desconhecidos, admiradores do autor, faziam reimpressões clandestinas, algumas das quais atingiram 300.000 exemplares. Madame Pompadour lembrou-se de que ele era sensível a títulos e dinheiro, e ofereceu-lhe o cargo de cardeal e a reconciliação com a corte. Voltaire nem sequer respondeu".

[...] "Em Paris recusaram-lhe sepultura cristã. Os amigos colocaram o corpo numa carruagem, fazendo-o passar por vivo, e levaram-no até Salier, onde foi enterrado. Doze anos depois, a Assembleia Nacional da Revolução obrigou Luís XVI a transladar o corpo para o Panteão de Paris. Setenta mil pessoas seguiram o cortejo.

Sobre seu túmulo Voltaire pedira que escrevessem apenas uma frase: 'ELE DEFENDEU CALAS'.