terça-feira, 29 de julho de 2025

Suave é a noite. F. Scott Fitzgerald.

O meu contato com a obra de Francis Scott Fitzgerald, se deu por uma indicação de livros de Luís Fernando Veríssimo, provavelmente feita numa das feiras de livro da cidade de Paraty, no Rio de Janeiro. Na ocasião, lhe foi solicitada a lista de seus dez livros preferidos. Entre eles estavam os dois de Scott: O grande Gatsby e Suave é a noite. O comentário de um leitor no post do blog de 2012sobre os livros indicados, me fez retomar a leitura dos dois. Desta vez o fiz pela ordem de sua escrita. Primeiro O grande Gatsby, escrito em 1925 e Suave é a noite, em 1934.

Suave é a noite. Scott Fitzgerald. BestBolso. 2008. Tradução: Lígia Junqueira.

O cenário do primeiro romance é o dos arredores luxuosos de Nova York, enquanto que o do segundo é o da Riviera Francesa. Em comum, os dois tem como protagonistas pessoas riquíssimas que vivem em ambientes de muito luxo e de poucos momentos felizes, em meio às suas graves crises existenciais. Em comum, os dois tem também a década de 1920, década em que os Estados Unidos decolam ruma a maior potência econômica e mergulham em profundas contradições morais, em meio ao puritanismo da Lei Seca (1920- 1933) e a rápida ascensão econômica proporcionada por meios ilegais de atividades comerciais duvidosas. É também a década da geração perdida, a era do jazz, em que muitos escritores norte americanos foram viver em Paris, entre eles, Scott.

Suave é a noite tem uma outra característica peculiar ao seu tempo. Os tempos da psicanálise. Dick Diver é um psiquiatra que, em clínicas suíças, envereda por esses campos. Dick e Nicole serão os protagonistas do romance. Eles são, respectivamente, o médico e a paciente. Outra característica particular deste romance é o seu caráter autobiográfico. Vejamos o fato na descrição de Roberto Muggiati, no prefácio:

"Se o perfil social foi inspirado em Gerald e Sara Murphy (inspiradores do cenário, na Riviera), o perfil psicológico do casal protagonista de Suave é a noite acabaria ganhando os contornos de Scott e Zelda neste que é o mais autobiográfico dos textos de Fitzgerald. Scott e Zelda casaram-se no Sábado de Aleluia de 1920, na catedral de São Patrício, em Nova York. Ele tinha 24 anos, ela 20. Um ano depois nasceu a única filha, Scottie. Jovens na primeira década transgressora do século XX, gostavam de passear de táxi (sentados no capô, é claro), de dançar e de beber. Eram os anos turbulentos que Scott batizou de 'A Era do jazz': a América vivia sob a Lei Seca, proliferavam os bares clandestinos, a bebida falsificada; a trilha sonora da década era o jazz e as metralhadoras dos gângsteres. [...] Espírito inquieto e crítico, Zelda antecipou de certa forma o feminismo e a guerra dos sexos. [...] Ela e Scott defendiam um casamento mais aberto e menos hipócrita do que os da geração de seus pais. Em 1924, na praia de Garoupe - enquanto Scott passava o dia inteiro escrevendo O grande Gatsby -, Zelda conheceu um jovem aviador francês. [...] O caso não durou muito, mas levou Zelda a uma tentativa de suicídio e criou uma chaga viva no casal". E já que enveredamos nos dados biográficos, vamos ao seu final:

"Seria o último romance escrito por Fitzgerald (Suave é a noite) - ele morreu de um ataque do coração em 1940, aos 44 anos, deixando inacabado O último magnata. Zelda continuaria a perambular pelos asilos - em meio a lampejos de lucidez - até morrer em 1948 no incêndio do hospital Asheville. Tinha 47 anos e foi identificada por um chinelo debaixo do corpo carbonizado".

Mas vamos ao romance, identificando os principais personagens. Dick e Nicole formam o casal protagonista (médico e paciente). Rosemary Hoyt e Tommy Barban rodearão o casal. Rosemary é bela e jovem, do mundo cinema. Já Tommy seria o "jovem aviador francês"? Os personagens periféricos seriam Abe North, amigo de Dick, Baby Warren, a irmã e tutora de Nicole e rica herdeira de uma imensurável fortuna. e a senhora Speers, mãe de Rosemary. Estão aí os personagens para a envolvente trama que se passa nas clínicas, nos bares e nas calorosas recepções oferecidas na Riviera Francesa. Muito luxo, paixões ardentes e o penetrar nos mais recônditos refúgios de seres humanos envolvidos em seus mistérios mais profundos. O livro é dividido em três partes, que ocupam 445 páginas 

Vejamos a contracapa: "Ambientado na Riviera Francesa em fins da década de 1920, este livro narra a história de Dick Diver, brilhante psiquiatra que se casa com a paciente Nicole Warren. A vida do casal não é mais do que uma farsa: dominados pelo tédio, incapazes de dialogar, entre interessantes coquetéis, recepções e dinheiro, vivem numa atmosfera de falsa euforia. Fitzgerald foi o autor que melhor captou a aura da riqueza e seu efeito sobre a alma humana, mostrando a rotina dos privilegiados numa época em que a América decolava num binômio de prosperidade e hipocrisia. Obra marcante da Geração Perdida, Suave é a noite, em tom marcadamente autobiográfico, revela personagens com uma excepcional carga de realismo".

Vamos ainda ao último parágrafo do prefácio de Roberto Muggiati, sobre a permanência da obra. "Suave é a noite permanece como testemunho da arte de um escritor que teve a coragem de enfrentar a selva das relações afetivas e de estudar a fundo o amor numa época em que a sensação imperou sobre o sentimento. Melhor do que qualquer outro romancista do século XX, Scott Fitzgerald soube navegar  por águas turvas no seu empenho de traçar a cartografia do desejo humano".

Deixo também a resenha de O grande Gatsby. 

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/07/o-grande-gatsby-f-scott-fitzgerald.html



 

quarta-feira, 23 de julho de 2025

O grande Gatsby. F. Scott Fitzgerald.

Ainda em 2012, ano em que eu comecei este blog, publiquei os dez livros preferidos de Luís Fernando Veríssimo. Ele manifestou esta sua preferência provavelmente numa das Feiras Literárias de Paraty. Para não vou deixar vocês curiosos, eu apresento a lista:

O grande Gatsby. Scott Fitzgerald. Penguin & Companhia. 2011. Tradução: Vanessa Barbara.


Tarzan dos macacos. Edgar Rice Burroughs.

O grande Gatsby. Francis Scott Fitzgerald.

O tempo e o vento. Érico Veríssimo.

Lolita. Vladimir Nobokov.

USA. John dos Passos.

O encontro marcado. Fernando Sabino.

Ulisses. James Joyce.

Put out More Flags. Evelyn Waugh.

Suave é a noite. Francis Scott Fitzgerald.

Fim de caso. Graham Greene.

Apresento esta lista porque ela despertou a minha curiosidade e me fez procurar estes livros. Alguns eu nem mesmo encontrei. Outros eu li. Entre eles O grande Gatsby. Agora, lendo alguns livros da literatura norte americana, me decidi a fazer a sua releitura.

Um dos últimos livros dessa literatura foi Babbitt, de Sinclair Lewis, publicado em 1922. Embora o livro de Scott Fitzgerald aparecesse apenas em 1925, ele foi escrito no início da década. e, de uma forma ou de outra, existe uma semelhança entre eles, ao menos quanto a abordagem do tema. Foi o tempo em que imperou a Lei Seca (1920-1933), um período de muitas transgressões e um tempo em que se fizeram grandes fortunas. É óbvio que isso não passaria despercebido pelos escritores desse período. Literatura rica e farta.

O livro que eu li pertence a coleção clássicos, da Penguin & Companhia, 2011. Nele tem uma longa introdução em  que o crítico literário inglês Antony Tanner, nos apresenta a obra. Dela eu tomo o primeiro parágrafo e um pedaço do segundo, como uma introdução ao tema:

"De início, não era para se chamar O grande Gatsby. Numa carta a Maxwell Perkins, Fitzgerald escreveu: 'Decidi que vou insistir com o título que dei ao livro, Trimalchio em West Egg'. Trimálquio é o novo-rico vulgar e de imensa fortuna do Satyricon, de Petrônio; um mestre das alegrias gastronômicas e sexuais que oferece um banquete de luxo inimaginável, do qual indiscutivelmente participa - ao contrário de Gatsby, que é um espectador sóbrio e isolado das próprias festas. É um verdadeiro glutão, ao passo que Gatsby mantém uma curiosa distância de tudo o que possui e exibe, tanto que às vezes recua do próprio discurso e o submete à avaliação, como se fossem palavras alheias, e tanto que ostenta camisas que nunca usou, livros que nunca leu e convites para nadar na piscina que nunca utilizou.

Se Fitzgerald concebia Gatsby como uma espécie de Trimálquio americano urdido pela licenciosidade desenfreada dos anos 1920, por certo o sujeitara a uma notável metamorfose. (Gatsby é chamado de Trimálquio apenas uma vez no romance.) Mas há alguns claros traços genealógicos do remoto ancestral de Gatsby". E uma pergunta incômoda paira no ar . O sonho americano é uma aspiração ou uma privação? Gatsby alimenta uma enorme paixão por Daisy, mas quando eles se encontram permanecem desajeitados e com os "olhos tensos e infelizes".

Mas vamos aos personagens desses afortunados. Ou seriam desafortunados? Nick Carraway é o narrador. Jay Gatsby, por óbvio, é o personagem central. Gatsby entra em cena pela primeira vez apenas no terceiro capítulo, quando Nick veio morar no estreito de Long Island, um paraíso terrestre dos novos ricos, nas proximidades de Nova York. Nick será vizinho de Gatsby, sempre observando e, mais tarde, participando de suas enormes festas. Nas proximidades, mas do outro lado da casa de Gatsby, morava um casal. Daisy e Tom Buchanan, amigos de Nick e de Jordan Baker, uma atleta, amiga de todos. Existem ainda outros dois personagens centrais na trama. Myrtle Wilson, esposa de um pacato e apaixonado marido, dono de uma oficina mecânica, mas amante de Tom e Meyer Wolsheim, um homem em permanente "estado de negócios" e mentor de Gatsby. Bem, eu paro por aí, mas não sem antes dizer duas coisas: Gatsby sempre fora apaixonada por Daisy e tudo fez para dela se aproximar. Essa era a razão das grandes festas, uma tentativa de aproximação. E a segunda, que tudo acaba numa grande tragédia. O romance busca desvendar quem era efetivamente Jay Gatsby e qual teria sido a origem de sua enorme fortuna. 

Ao final Nick fala do casal Tom e Daisy: "Tudo decorrera de forma descuidada e confusa. Eles eram todos descuidados e confusos. Eram descuidados, Tom e Daisy - esmagavam coisas e criaturas e depois se protegiam por trás da riqueza ou de sua vasta falta de consideração, ou o que quer que os mantivesse juntos, e deixavam para os outros limparem a bagunça eles haviam feito" (página 239). Também já eram os tempos da psicanálise. Deixo ainda as anotações da contracapa:

"Seus pais eram fazendeiros preguiçosos e fracassados - sua imaginação nunca os reconhecera como pais. A verdade era que Jay Gatsby de West Egg, Long Island, havia saído da própria concepção platônica de si mesmo. Ele era um filho de Deus".

"Se Scott Fitzgerald (1896-1940) foi o escritor da Era do Jazz, nenhum de seus livros foi capaz de captar o espírito da época como O grande Gatsby. Entre a música e a vida extravagante da década de 1920, a saga de Jay Gatsby reproduz uma ideia comum a toda a sua obra: o sonho americano, mais do que uma realização, pode ser frustrante.

Fitzgerald escreveu este romance durante sua estadia em Paris, para onde, na mesma época, se mudaram Ernest Hemingway e Gertrud Stein, a 'geração perdida' da literatura americana. Egresso da classe média alta, Fitzgerald usou a própria experiência para fazer um alerta sobre o materialismo. Ainda que o narrador Nick Carraway não seja um alter ego do autor, ambos compartilham conclusões amargas a respeito da falsidade e do dinheiro. O grande Gatsby é uma obra que valoriza os ideais e a força do desencanto por trás de uma aparente narrativa".

Deixo aqui o post de Babbitt, também um termo para designar o novo-rico.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/05/babbitt-harry-sinclair-lewis-1922-nobel.html

E é impossível compreender os Estados Unidos sem o livro de Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/01/a-etica-protestante-e-o-espirito-do.html



terça-feira, 15 de julho de 2025

Minhas viagens com Heródoto. Ryszard Kapuscinski.

Depois de uma série de leituras que envolveram história, a busca por origens, me lembrei de um livro cuja leitura me impressionou muito quando o li. Isso foi lá no ano de 2007. Resolvi retomá-lo. Trata-se de Minhas viagens com Heródoto - Entre a história e o jornalismo. O autor é o polonês Ryszard Kapuscinski, um jornalista a recordar as suas primeiras reportagens, quando fora destacado pela sua agência, a fazer reportagens mundo afora, para muito além de sua pátria. Ele próprio conta que sempre fora movido pelo desejo de conhecer o outro lado, o lado de fora, o lado diferente. Uma curiosidade infinita.

Minhas viagens com Heródoto. Ryszard Kapuscinski. Companhia das Letras. 2006. Tradução: Tomasz Barcinski.

Na contracapa temos a explicação de sua situação, o contexto do surgimento de sua obra: "Criado numa Polônia ocupada primeiro pelos nazistas e depois pelos soviéticos, Ryszard Kapuscinski cresceu com a obsessão de conhecer o que havia 'do outro lado da fronteira'. Essa motivação, que o transformaria num dos mais importantes jornalistas internacionais de nosso tempo, foi confirmada e iluminada pela leitura do clássico História, escrito no século V antes de Cristo pelo grego Heródoto de Halincarnasso".

Ryszard ou Richard frequentava os bancos escolares da universidade quando tem os seus primeiros contatos com os gregos. Ele mesmo nos conta, logo no primeiro capítulo de seu livro: "A guerra terminara cinco anos antes (Devia ser então o ano de 1950), a cidade jazia em ruínas, as bibliotecas haviam sido consumidas pelo fogo. Diante disso, não tínhamos compêndios, faltavam-nos livros". Richard ainda nos informa que História começou a circular na Polônia apenas no ano de 1955, dois anos após a morte de Stálin. Foi também nesse período que Richard começou a trabalhar, num jornal chamado "Estandarte dos Jovens'. Seus primeiros trabalhos chamaram a atenção de sua diretora, da qual, num certo dia, recebeu a notícia para o seu primeiro grande trabalho: "Vamos enviá-lo para a Índia".

Richard nos informa a sequência daquela conversa: "Ao término daquela conversa, durante a qual fui informado de que partiria para o mundo, a senhora Tarlowska foi até um armário, tirou de lá um livro e, entregando-o a mim, disse: 'Um presente meu para a sua viagem'. Era um livro grosso, cuja capa dura estava coberta por um pano amarelado. Nela, em letras douradas, pude ler o nome do autor e o título: Heródoto. História". Assim começa a missão do grande repórter internacional que ele viria a ser. Parte para a Índia, para a China, para o Congo e outros países africanos convulsionados após a conquista de suas independências, para o Irã... Haja mundo diferente e, quantas diferenças. Ao longo da descrição dessas viagens, ele sempre as intercala com a leitura de Heródoto. Com o livro de Richard, você praticamente tem dois livros. O livro História de Heródoto e Minhas viagens com Heródoto, de Kapuscinski.

O livro tem 28 capítulos, tendo cada um em torno de dez páginas. Sempre, numa alternância entre os locais visitados e as histórias dos povos visitados por Heródoto e a sua forma de contar o diferente. Verdadeiras aulas, tanto de história, quanto de jornalismo, especialmente de reportagem. História é considerado como o primeiro grande livro reportagem, detalhando como Heródoto as fazia. Riquíssimo. São, ao todo, 305 páginas de um magistral aprendizado. Na contracapa temos a continuação da apresentação do livro:

"Em Minhas viagens com Heródoto, Kapuscinski relata de modo caloroso e bem humorado seus primeiros tempos de repórter, quando recém saído da universidade, foi enviado a países remotos e indecifráveis como a Índia, a China e o Congo para contar a seus compatriotas o que se passava por lá. Felizmente, o jovem aprendiz de jornalista levava na bagagem o livro de Heródoto, que ele considera 'a primeira grande reportagem da literatura mundial'. Ao ler sobre a expansão do império persa ou a batalha de Salamina, mais do que técnicas de coleta e organização de informações, Kapuscinski aprendeu a lição essencial de que conhecer e buscar compreender outras culturas é um exercício de tolerância e autocrítica".

Sublinhei muitas passagens. Entre elas esta, já ao final da obra: "Heródoto viaja para poder responder a uma pergunta formulada na infância: de onde vêm os navios que vemos no horizonte? Eles surgem de onde? Qual sua procedência? Quer dizer que o que vemos com nossos olhos ainda não é a fronteira do mundo? Existem outros mundos? Quais? Quando crescer, vai querer conhecê-los. Mas é melhor que não cresça por completo, que permaneça algo de criança em sua alma, pois só elas fazem perguntas importantes e querem, realmente, aprender.

E, com entusiasmo e encantamento infantis, Heródoto se lança à descoberta de seus mundos. Eis sua maior descoberta: eles são muitos, diferentes entre si, mas importantes cada um à sua maneira.

É preciso conhecê-los porque esses mundos e essas culturas são espelhos nos quais nos miramos - nós e a nossa cultura - e nos quais ela se reflete. Graças a eles, entendemos melhor a nós mesmos, já que não podemos definir a nossa singularidade se não a confrontarmos com outras.

Tendo feito essa descoberta - a descoberta de que as outras culturas são espelhos nos quais podemos nos olhar para compreender melhor quem somos -, Heródoto, a cada manhã, infatigavelmente, de novo e mais uma vez, parte em viagem" (Páginas 292- 3).Que lição maravilhosa. Compreensão de mundo. E também uma concepção de educação: trabalhar a curiosidade da criança. E, que vontade de viajar...

E para terminar, uma historinha. É sobre os trausos e sobre um costume seu: "[...] são em tudo semelhantes (os seus costumes) aos dos outros Trácios, exceto com relação aos recém nascidos e aos mortos. Quando nasce, entre eles uma criança, os parentes, sentados em torno dela, enumeram os males a que está sujeita a natureza humana e lamentam, com gemidos, a sorte ingrata que fatalmente a acompanhará enquanto viver; mas, quando morre um deles, enterram-no alegremente, regozijando-se com a felicidade desse que acaba de libertar-se de tantos males" (páginas 172-3).

quarta-feira, 9 de julho de 2025

História universal da destruição dos livros. Das tábuas sumérias à guerra do Iraque. Fernando Báez.

Uma série de leituras em sequência. Uma história da leitura, de Alberto Manguel, O infinito em um junco - A invenção dos livros no mundo antigo, livro maravilhoso de Irene Vallejo, e agora, História universal da destruição dos livros - Das tábuas sumérias à guerra do Iraque, do venezuelano Fernando Báez. Essas leituras proporcionam uma ampla visão sobre o tema dos livros, especialmente sobre a sua importância e muito mais ainda, sobre o verdadeiro pavor que eles provocam em determinadas mentes. Sobre este pavor, História universal da destruição dos livros é absolutamente insubstituível.

História universal da destruição dos livros. Fernando Báez. Ediouro. 2006. Tradução: Léo Schlafman.

Não houve um único momento ao longo da história em que não se tenha buscado a sua não chegada aos leitores, seja pela censura ou pela sua radical destruição. O fogo foi sempre o principal meio utilizado. Por outro lado, a censura e a destruição, também sempre provocaram a curiosidade e o aumento do desejo das chamadas leituras proibidas. Deixo inicialmente as duas frases em epígrafe do livro. Pelo seu poder de síntese, eu aprecio muito epígrafes bem postas. Vejamos:

"Onde queimam livros, acabam queimando homens". Heinrich Heine, Almansor, 1821.

"...cada livro queimado ilumina o mundo...". Ralf Waldo Emerson, Essays, First series, 1841. A realidade contida nessas epígrafes são facilmente constatadas ao longo do livro. Vejamos a  sua apresentação, contida na contracapa:

"Desde que surgiram as primeiras formas de livro na Suméria, o homem empreendeu uma verdadeira saga que reduziria em cinzas um número incalculável de obras. Medo, ódio, soberba, intolerância e sede de poder são o que sempre motivaram os biblioclastas, cuja intenção na verdade nunca foi simplesmente destruir o objeto em si, mas, o que este representava: o vínculo com a memória, o patrimônio de ideias de toda uma civilização.

História universal da destruição dos livros é o resultado de um estudo de 12 anos, em que Báez nos oferece uma visão aterradora da devastação sistemática, que se inicia no Mundo Antigo, passando pela Inquisição e tempo de conquistas, até a catástrofe mais recente: a destruição de um milhão de livros no Iraque como consequência de uma guerra absurda. Para o autor, trata-se de mais uma manifestação da inexorável necessidade de impor uma cultura sobre a outra.

Mais do que um levantamento minucioso dos prejuízos, esta obra denuncia os crimes cuja maior vítima é a própria humanidade, pois 'onde se queimam livros, acabam queimando homens', assim disse o poeta alemão Heinrich Heine". Na mesma contracapa se lê um elogio mais do que grandioso; pela sua origem; de Noam Chomsky: "Impressionante. O maior livro escrito sobre este tema". Báez nos conta sobre a origem, sobre os motivos que o levaram a esta escrita:

"E assim começou esta pesquisa, por um erro, como todas as coisas importantes. Munido com esse livro em ruínas como único amuleto, descobri que, além de centenas de milhares de mortos, a Guerra Civil Espanhola provocou um desastre cultural oculto durante décadas". Ele dá detalhes. Ele se encontrava num sebo em Madri, em busca de um livro de Unamuno. Não o encontrou, mas em compensação, encontrou um livro em frangalhos. Ele narra: "A duras penas, reconheci entre os fragmentos uma antologia de poemas de Federico García Lorca. Li, fascinado, um dos textos e, enquanto segurava as páginas, pedaços inteiros caíram no chão. O livro não tinha índice e faltavam as páginas finais, arrancadas com pouco cuidado. Havia uma nota oficial de algum censor: 'Livro proibido. Astúrias, El Infierno.'. Intrigado, corri para perguntar o preço e o implacável dono me pediu que o levasse, visivelmente incomodado. Diante de minha perturbação, o homem disse: 'Leve-o, não sei quem pôde trazer até aqui o livro desse comunista'". Eis a provocação da qual saiu este livro e um dos motivos - sempre entre os mais presentes - na obra da destruição.

O livro é relativamente longo e é também uma viagem na geografia, passando pelos mais diversos lugares do mundo, uma vez que o desejo da destruição dos livros é uma fenômeno universal. Ele tem 438 páginas, divididas em Introdução, três partes e notas com a indicação de suas preciosas fontes, além da bibliografia. As partes tem os seguintes títulos: Primeira parte: O mundo antigo; Segunda parte: Da era de Bizâncio ao século XIX; Terceira parte: O século XX e o início do século XXI.

Convido a uma viagem pelos capítulos das diferentes partes:

Primeira parte: O mundo antigo, com dez capítulos: 1. Oriente médio; 2. Egito; 3. Grécia; 4. Apogeu e fim da biblioteca de Alexandria; 5. Outras antigas bibliotecas destruídas; 6. Israel; 7. China; 8. Roma; 9. As origens radicais do cristianismo; 10. O esquecimento e a fragilidade dos livros.

Segunda parte: Da era de Bizâncio ao século XIX, com 14 capítulos: 1. Os livros perdidos de Constantinopla; 2. Entre monges e bárbaros; 3. O mundo árabe; 4. Um confuso fervor medieval; 5. Espanha muçulmana e outras histórias; 6. Os códices queimados no México; 7. Em pleno Renascimento; 8. A Inquisição; 9. A condenação dos astrólogos. 10. A censura inglesa; 11. Entre incêndios, guerras e erros; 12. De revoluções e provocações; 13. Em busca de pureza; 14. Alguns estudos sobre a destruição de livros.

Terceira parte: O século XX e o início do século XXI, com 11 capítulos: 1. Os livros destruídos durante a Guerra Civil Espanhola; 2. O bibliocausto nazista; 3. As bibliotecas bombardeadas na Segunda Guerra Mundial; 4. Censura e autocensura literárias modernas; 5. Um século de desastres; 6. Os regimes de terror; 7. O ódio étnico; 8. Religião, ideologia, sexo; 9. Entre inimigos naturais e legais; 10. O terrorismo e a guerra eletrônica; 11. Os livros destruídos no Iraque.

Por óbvio, também os clássicos da literatura universal são citados, assim como as maiores e mais famosas bibliotecas. Também os grandes inimigos dos livros são nominados. Da segunda parte o destaque vai para a Inquisição, enquanto que na terceira, o destaque vai para o bibliocausto (um paralelo com o holocausto) nazista e a Guerra Civil Espanhola. Do livro também pincei a minha frase preferida. É de Pascal. Ela data de 1657. Ocorreu em resposta à queima de suas Cartas provinciais, onde ele denunciou desvios morais de jesuítas. Pascal assim se expressou: "Os homens nunca agem mal de maneira tão perfeita e aplaudida como quando o fazem movidos pela convicção religiosa" (Página 202).

Vejamos ainda as orelhas do livro: "Incêndios, enchentes, terremotos, guerras e regimes autoritários causaram a morte de milhões de pessoas . Mas nesta notável obra temos a chance de conhecer uma história nunca antes contada de forma tão minuciosa: a da destruição dos livros. O autor venezuelano Fernando Báez nos leva de volta ao Mundo Antigo para acompanhar, desde o início, a trajetória dessa prática que teve entre seus adeptos não só homens ignorantes ou perversos, mas também grandes filósofos, eruditos e escritores, como Descartes, Platão e Heidegger. Alguns porque acreditavam que, eliminando os vestígios do pensamento de uma determinada época, estariam promovendo a superação do conhecimento humano. Outros, mais modestos, lançavam ao fogo suas obras simplesmente por vergonha do que haviam escrito. No entanto, os principais destruidores de livros sempre tiveram como maior motivação o desejo de aniquilar o pensamento livre. Os conquistadores atribuíam à queima da biblioteca do inimigo a consagração de sua vitória.

E assim o autor nos conduz através dos tempos e pelos mais diversos continentes para refazer o percurso dessa pesquisa dolorosa, mas que ironicamente ameniza o nosso sofrimento. Afinal, ao remontar à perda de incontáveis obras, ideias, conhecimentos e memórias, é possível reconstruir e desvendar muitas épocas, mentiras, lendas e mistérios que envolveram essa história de horror que parece não ter chegado ao fim.

Em 2003, a guerra levou à extinção mais de um milhão de livros e dez milhões de documentos da Biblioteca Nacional do Iraque, berço da civilização ocidental. Inertes, assistimos em tempo real a um verdadeiro genocídio cultural, cujas consequências para as próximas gerações serão irreparáveis". 

Deixo também os posts dos livros referenciados no início: 

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/06/uma-historia-da-leitura-alberto-manguel.html

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/06/leituras-proibidas-uma-historia-da.html 


quinta-feira, 3 de julho de 2025

O Infinito em um junco. A invenção dos livros no mundo antigo. Irene Vallejo.

Este livro eu ganhei de presente. Presente de uma pessoa muito querida e plena de significados em minha vida. Trata-se de O Infinito em um junco - A invenção dos livros no mundo antigo, da romancista e ensaísta espanhola Irene Vallejo. Sempre considerei muito o fato de os livros serem objetos para presentear. Acima de tudo eles referenciam a pessoa que as presenteia. Esta abertura do post é a minha forma de agradecer, publicamente, o presente recebido. Também, não o nego, um livro também referencia e reverencia a pessoa que o recebe. Vamos ao livro.

O Infinito em um junco. Irene Vallejo. Intrínseca. 2022. Tradução: Ari Roitman e Paulina Wacht.

O livro é um maravilhoso tributo à escrita, aos livros, à sua preservação, bem como à leitura e aos leitores. Somente uma pessoa muito apaixonada pela causa conseguiria escrevê-lo, e, escrevê-lo tão bem. É uma agradável viagem no tempo, um penetrar no mundo antigo, no seu tempo lento em avanços, como que, para absorver todos os seus profundos significados. E que belo título: O infinito em um junco. Tudo remete às origens.

O livro é longo. Ele contem 493 páginas e está dividido em duas partes: I. A Grécia imagina o futuro; 2. Os caminhos de Roma. A parte sobre a Grécia tem vários subtítulos e 87 tópicos, enquanto a que versa sobre Roma também tem seus subtítulos e 48 tópicos. É uma questão de organização. A organização e estruturação dos livros, ao longo da história, é também um dos temas do livro. Tem também Prólogo, epílogo, notas e agradecimentos. O epílogo tem por título: Os esquecidos, as anônimas. Tem também várias frases em epígrafe, das quais transcrevo as duas últimas:

"Ler é sempre uma translação, uma viagem, um ir embora para se encontrar. Ler, mesmo sendo normalmente um ato sedentário, leva-nos de volta à nossa condição de nômades". Antonio Basanta, Leer conta la nada. E,

"O livro é, acima de tudo, um recipiente onde o tempo repousa. Uma prodigiosa armadilha com a qual a inteligência e a sensibilidade humanas venceram a condição efêmera, fluida, que levava a experiência do viver para o vazio do esquecimento". Emilio Lledó, Los libros y la libertad.

O livro também se constitui numa belíssima aula de história e de literatura clássica. A primeira parte, a que versa sobre a Grécia é dedicada à cidade de Alexandria, à sua Biblioteca, ao seu Museu e ao seu Farol. O grande personagem é Alexandre, o Grande. Alexandre nunca, em sua breve vida de viagens e combates se desfez da Ilíada, livro no qual buscava inspiração. Fala de Ptolomeu e dos Ptolomeus, os artífices da biblioteca, da grandeza do Egito, do papiro e dos pergaminhos. E, como não poderia deixar de ser, da fusão cultural do helenismo, da Ilíada, da Odisseia, do teatro, das tragédias e de toda a literatura grega e de seus significados.

A parte dedicada a Roma, fala da má reputação inicial da cidade, nascida de um fratricídio e de, apesar de toda a grandeza de seu império, terem sido dominados pela cultura dos gregos. Fala da Magna Grécia e dos horrores da escravidão que rondava como possibilidade e ameaça para todos. Fala da separação de classes e dos privilégios dos dominantes, entre eles, a escrita e a leitura. Fala dos primeiros livreiros e de seu ofício de copistas. Fala de Herculano e de Pompeia, cidades de prazeres, banhos e salas de leitura  e também dos fétidos pregadores contra os prazeres e os perigos dos banhos. Fala da perseguição aos livros e de suas queimas por temor de seus efeitos e de toda uma Idade Média, tempo de carência de livros. Apesar disso, não se consegue impedir o surgimento do Renascimento. 

Dessa segunda parte destaco um dos parágrafos finais, com destaque para beleza da escrita e do posicionamento da autora: "Devemos aos livros a sobrevivência das melhores ideias projetadas pela espécie humana. Sem eles, provavelmente teríamos nos esquecido daquele punhado de gregos temerários que decidiram entregar o poder ao povo e chamaram esse ousado experimento de 'democracia'; dos médicos hipocráticos, que criaram o primeiro código deontológico da história, no qual se comprometiam a cuidar também dos pobres e dos escravos: 'Leva em consideração os meios do seu paciente. Em determinadas ocasiões deves prestar teus serviços até gratuitamente; e, se tiveres oportunidade de atender um estrangeiro que se encontra em dificuldades econômicas, dá-lhe plena assistência'; de Aristóteles, que fundou uma das primeiras universidades e dizia aos alunos que a diferença entre o sábio e o ignorante é a mesma que entre o vivo e o morto; de Eratóstenes, que usou o poder do raciocínio para calcular a circunferência da Terra, com uma pequena margem de erro de oitenta quilômetros, utilizando apenas um pedaço de pau e um camelo; ou os códigos legais daqueles romanos doidos que um dia concederam a cidadania a todos os habitantes do seu enorme império; ou daquele grego cristão, Paulo de Tarso, que pronunciou o que possivelmente foi o primeiro discurso igualitário quando disse: 'Não há judeu nem grego, não há escravo nem homem livre, não há homem, nem há mulher'. Conhecer todos esses precedentes nos inspirou ideias tão extravagantes no reino animal, quanto direitos humanos, democracia, confiança na ciência, saúde universal, educação obrigatória, direito a um julgamento justo e preocupação social pelos mais fracos" (Páginas 434-435). E por aí vai. E, no mesmo tom, encerra o livro:

"Os livros legitimaram, é verdade, fatos terríveis, mas também sustentaram os melhores relatos, símbolos, saberes e invenções que a humanidade construiu no passado. Na Ilíada assistimos ao lancinante encontro entre um velho e o assassino do seu filho; nos versos de Safo descobrimos que o desejo é uma forma de rebeldia; em História, de Heródoto, aprendemos a buscar a versão do outro; em Antígona vislumbramos a existência da lei internacional; nas Troianas nos deparamos com a barbárie própria; numa epístola de Horácio encontramos a máxima iluminista 'atreva-se a saber'; na Arte de amar, de Ovídio, fizemos um curso intensivo de prazer; nos livros de Tácito compreendemos os mecanismos da ditadura; e na voz de Sêneca ouvimos o primeiro grito pacifista. Os livros nos legaram algumas ideias dos nossos antepassados que realmente não envelheceram de todo mal: a igualdade entre os seres humanos, a possibilidade de escolher os nossos dirigentes, a intuição de que talvez seja melhor para as crianças ficarem na escola do que trabalhando, a vontade de usar - e gastar - o erário para cuidar dos doentes, dos velhos e dos desvalidos. Sem os livros, as melhores coisas do nosso mundo teriam se dissipado no esquecimento" (Página 437).

Deixo ainda a apresentação da orelha da capa: "De fumaça, de pedra, de argila, de seda, de pele, de árvores, de plástico e de luz. O Infinito em um junco nos conduz pela vida do livro, em seus variados formatos, e pela vida daqueles que o preservaram há quase cinco milênios".

"Este é um livro sobre a evolução dos livros. Um passeio pela trajetória desse artefato fascinante que inventamos para que as palavras pudessem viajar no espaço e no tempo. É a história de sua fabricação e de todos os modelos e formatos ao longo da jornada humana.

É também um livro de viagem. Uma rota com paradas nos campos de batalha de Alexandre e na Vila dos Papiros sepultada pelas lavas do Vesúvio, nos palácios de Cleópatra e na cena do crime de Hipátia, nas primeiras livrarias e nas oficinas de cópia manuscrita, nas fogueiras em que eram queimados códices proibidos, no gulag, na Biblioteca de Sarajevo e no labirinto subterrâneo de Oxford no ano 2000. Um fio que une os clássicos ao vertiginoso mundo contemporâneo, conectando-os aos debates atuais: Aristófanes e os processos judiciais contra os humoristas, Safo e a voz literária das mulheres, Tito Lívio e o fenômeno dos fãs, Sêneca e a pós-verdade.

Mas, acima de tudo, esta é uma fabulosa aventura coletiva protagonizada por milhares de pessoas que, ao longo do tempo, tornaram o livro possível e o protegeram: contadores de histórias, escribas, iluminadores, tradutores, vendedores ambulantes, professores, sábios, espiões, rebeldes, freiras, aventureiros; leitores de todos os cantos, nas capitais onde se concentra o poder e nas regiões mais remotas, onde o conhecimento se refugia em tempos de caos. Pessoas comuns cujos nomes, muitas vezes, são apagados da história; gente que salva livros, os verdadeiros protagonistas desta história".

Enfim, um mergulho nas origens e mitos fundadores da cultura ocidental, nos fundamentos da cultura clássica, greco-romana, da qual Irene Vallejo é notória autoridade. E, se você, ao querer presentear alguém, se defrontar com dúvidas, eis aí uma bela sugestão. Com certeza você se dará muito bem. É impossível não agradar.

Deixo também a leitura anterior, em dois posts que versam sobre o tema.