quinta-feira, 13 de março de 2014

Vidas Secas. Graciliano Ramos.

Tenho muito orgulho da minha formação. Ela, no entanto, em seus anos iniciais, foi mais doutrinação do que formação propriamente dita. Havia muito zelo para que não houvesse desvios. Ela obedeceu os limites de um currículo. Algumas coisas estavam incluídas e, outras excluídas e muito bem excluídas, entre elas a leitura. Eram os limites que o seminário nos impunha. Como diria Érico Veríssimo, em suas brigas com o clero gaúcho, que eles eram formados para serem vigários nas colônias alemãs e italianas. Depois trabalhei e, trabalhei muito. Praticamente três períodos, a vida toda. Pouco espaço sobrou para a literatura.
 O livro de Graciliano Ramos, da Editora Record. Posfácio de Hermenegildo Bastos. 

Se não me engano, foi com Alberto Manguel que aprendi um truque para não passar tanta vergonha, quando o assunto é literatura. Em vez de dizer que não li, a gente fala, eu preciso reler, ou este eu reli recentemente. Confesso que não uso o truque. Com relação a Vidas Secas, tenho muito de suas imagens em minha memória, não sei bem se da leitura do livro ou de ter visto o filme. Só isso já é suficiente para dizer que o livro é muito forte, deixa profundas impressões. Creio que se a nossa escola realmente ensinasse a ler e se, efetivamente, os alunos lessem, o Brasil seria um país muito mais plural, muito mais tolerante e acima de tudo, muito menos preconceituoso. A leitura, acima de tudo, humaniza.

A cada livro que se lê de Graciliano Ramos parece que se encontra um Graciliano diferente. Se em Angústia tudo está centrado no narrador, em Vidas Secas ele está menos presente, mais distante. Em Vidas Secas a linguagem volta a ser mais seca e árida do que o próprio sertão. Na literatura de Graciliano, muita coisa está oculta. Ele interage e provoca o leitor, como o faz todo o bom escritor. O sertão reificado é o grande tema deste romance. De tão reificado, os personagens humanos, praticamente são seres naturais e com a natureza eles se confundem, como o que ocorre com a cachorra Baleia. Ali sim, dá para dizer, o que se ouve muito, hoje em dia. Ela era como se fosse um membro da família. Para a família ela inclusive deu uma sobrevida, nas duras andanças pelo sertão.
Capa da primeira edição de Vidas Secas, no ano de 1938.

Cinco são os personagens do âmago do livro. Mas ele não se encerra neles. Todo um mundo de relações de dominação da opressiva sociedade capitalista estão presentes. Os cinco personagens são: Fabiano, o retirante, ou o vaqueiro, sinhá Vitória, a de muita sabedoria, os dois filhos, o maior e o menor e Baleia, de muitas falas e de muitos silêncios. O papagaio não conta, ele fora jantado, mas isso não importa, pois, ele não falava... Os demais personagens são os da opressão: o patrão e os tais de juros, pelos quais os acertos de conta nunca batiam, o soldado amarelo, que pôs Fabiano na cadeia, privando-o de liberdade, o dono da venda que o roubava nas medidas, e o fiscal da prefeitura que lhe queria extorquir impostos. Sentia, no entanto, que o mundo não mudaria, se ele matasse o soldado amarelo e todos os que o oprimiam. Teria que matar os chefes deles. A opressão vinha sob a forma de um sistema. Mas a possibilidade do cangaço e, por ele o justiçamento, sempre lhe rondava a imaginação.

O Brasil já foi descrito por outros escritores como uma visão de paraíso. Este romance seguramente é pós edênico. A natureza, em vez de ser generosa e benfazeja, é quase tão hostil, quanto o sistema de relações estabelecidas na sociedade. A natureza não é mera paisagem. Ela é hostil e, sociedade e natureza se juntam para suprimir a liberdade humana. O livro vem acompanhado de um posfácio muito erudito. Examina mais o escritor e procura situar esta obra dentro do universo de Graciliano. Ele aponta que Graciliano tenta mostrar com Vidas Secas, o aprisionamento da liberdade, em um mundo reificado. Este aprisionamento atinge tanto os personagens do livro, como a do escritor, enredado nos cânones literários. Os dois precisam de transformação libertadora. Em Graciliano sempre está presente a ideia de um estética emancipadora. Até para o narrador, as saídas são difíceis dentro de um mundo reificado.

O grande escritor Graciliano Ramos.

Vidas Secas é estruturado em capítulos. Cada um dos cinco personagens tem um. Os outros são para as situações mais marcantes. A crítica costuma atribuir a Graciliano uma visão de mundo muito pessimista. Vidas Secas procura mostrar, no entanto, que só conhecendo todos os limites que um mundo reificado impõe, é que os homens podem alimentar sonhos para além dele, com a sua transformação. Transformação revolucionária, obviamente. Nunca é demais lembrar que Graciliano Ramos era comunista.

Outra coisa notável. O sonho e o desejo está presente ao longo de toda a obra. Os personagens desejam a sua transformação para melhor. Os desejos e os sonhos são pequenos, aparentemente possíveis, se não fosse o mundo reificado. Veja como sinha Vitória se anima fácil: "Outra vez sinha Vitória pôs-se a sonhar com a cama de lastro de couro [...] Tinha de passar a vida inteira dormindo em varas?  Bem no meio do catre havia um nó, um calombo grosso na madeira. E ela se encolhia num canto, o marido no outro, não podiam estirar-se no centro. A princípio não se incomodara. Bamba, moída de trabalhos, deitar-se-ia em pregos. Viera, porém, um começo de prosperidade. Comiam, engordavam. [...] e eram quase felizes. Só faltava uma cama".

Até Baleia sonhava: "Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E  lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes". Todos alimentavam os seus sonhos, tão pequenos mas praticamente  impossíveis.
Uma biografia maravilhosa - O Velho Graça - uma biografia de Graciliano Ramos, de autoria de Dênis de Moraes.

A imagem da cama como sonho é recorrente em Graciliano. Vejam o encerramento de Angústia: "Acomodavam-se todos. 16.384 (o sonho do bilhete de loteria). Um colchão de paina. Milhares de figurinhas insignificantes. Era uma figurinha insignificante e mexia-se com cuidado para não molestar as outras. 16.384. Íamos descansar. Um colchão de paina." Um colchão de paina e uma cama de lastro de couro. Era tudo o que desejavam.

Vidas Secas, junto com Seara Vermelha, de Jorge Amado e O Quinze, de Rachel de Queiroz formam a grande trilogia brasileira dos romances que apontam as mazelas do latifúndio e das relações econômicas e sociais do sertão nordestino. Também apontam a inclemência da natureza que se manifesta pela seca, pela caatinga, pelo sol e pelos animais peçonhentos. Em Jorge Amado há um descrição fabulosa da caatinga e dos sermões dos beatos, contrastado com o sermão conciliador e acomodador dos padres. O Quinze se refere a uma das maiores secas havidas no sertão. Em comum, os três romancistas professavam o credo e a visão de mundo marxista.

Veja a descrição da caatinga, a hostilidade da natureza, em Seara Vermelha, de Jorge Amado. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2014/01/a-caatinga-seara-vermelha-jorge-amado.html e veja também a resenha do livro. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2014/01/seara-vermelha-jorge-amado.html
  


2 comentários:

  1. Adoro o livro Vidas Secas sem dúvida é leitura obrigatória. Um clássico de nossa literatura.

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  2. Meu amigo Pedro. Não é por nada que Graciliano é considerado o Dostoiévski brasileiro. Agradeço o seu comentário

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