sábado, 1 de outubro de 2016

Eles não usam black-tie. Vestibular UFPR.

A indicação para as minhas leituras tem as mais diversas fontes. Desta vez foram as indicações para o vestibular da UFPR. Entre elas está o clássico do teatro brasileiro Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri. A peça foi escrita pelo jovem teatrólogo em 1955 e encenada pela primeira vez no Teatro de Arena, em São Paulo, em 1958. Era um tempo de profunda efervescência cultural, de uma sociedade em trânsito, conforme expressão de Paulo Freire.
Uma das grandes obras do teatro brasileiro. O mundo do trabalho.

Como não se faz uma boa leitura sem uma contextualização, e como já datamos o livro, vamos então situá-lo em seu contexto. Vivíamos os anos JK.. Cinquenta anos de desenvolvimento em cinco anos de governo, proclamava o marketing governamental. Eram tempos de grande liberdade, mas no horizonte sempre pairava a ameaça golpista, sempre presente quando a elite brasileira via os seus interesses contrariados.

A industrialização brasileira, embora tardia, estava em pleno processo de expansão. Continuávamos substituindo as importações. Agora era a vez dos automóveis e outros bens de consumo duráveis. Junto com a industrialização marchava também a urbanização. Marchava desordenadamente, com as profundas marcas da desigualdade social. Sobrados e mocambos. Uma herança das contradições em nosso processo abolicionista, que aboliu a escravidão mas não a sua obra. A obra reflete exatamente essas contradições.

O cenário é o mocambo, evolução da senzala, sua transformação em favela. O cenário é também a fábrica e a dura vida dos trabalhadores, em que sempre sobram dias, com o fim antecipado do sal, símbolo de alimento, que sempre termina bem antes do mês se encerrar. O cenário é também a favela com todas as suas mazelas, mas também com todas as suas virtudes. As mazelas da miséria social e humana e as virtudes que brotam deste reino de necessidades, como a solidariedade e a comiseração, sentimentos tão marcadamente humanos. Brota também o amor, também este, embora belo, nunca isento de contradições.

Em meio a este cenário se desenvolve a consciência de classe. Alguns trabalhadores, já mais calejados pela luta, iluminados por uma percepção mais profunda de seu estar imerso num eterno reino de necessidades, vislumbram na organização coletiva e no espírito de solidariedade e de união, os únicos meios para a sua emancipação, assim como o constatara o poeta: "Uma esperança sincera. Cresceu no seu coração. E dentro da tarde mansa.  Agigantou-se a razão.  De um homem pobre e esquecido. Razão porém que fizera. Em operário construído. O operário em construção". Foram tocados pela consciência, pela consciência de que tinham a mesma classe social em comum. E junto com esta consciência, o sentimento de pertencimento.

Este sentimento os animou para a resistência. O meio seria a greve. Na greve, mais contradições. E estas contradições, em vez de pertencimento, geraram o distanciamento. Geraram o distanciamento entre pessoas da mesma família e até distanciamentos na relação amorosa. Em vez da solidariedade, a traição e a delação, como meios de ascensão. Um caminho individual, sozinho, sem companheiros. Pode ser meio eficaz de ascensão, mas instrumento maior do destroçamento de vínculos e um rumo seguro para a infelicidade, ou como diríamos hoje, para a psiquiatrização.
Gianfrancesco Guarnieri atuando em Eles não usam black-tie.

O livro que eu li, da editora Civilização Brasileira, tem um prefácio escrito por Delmiro Gonçalves, que fala do significado da peça e da repercussão de suas primeiras apresentações. Formidável. Como o enredo da peça é relativamente simples, não necessitamos entrar em grandes detalhes. Vamos apenas marcar os grandes personagens. Encontramos em Tião e Maria os jovens enamorados e em Otávio e Romana, os pais de Tião, o casal forjado na luta. Ainda temos o outro filho do casal, o menino bem humorado, Chiquinho, também com os seus primeiros namoricos, com Terezinha.

O conflito familiar se dá entre Otávio e Tião. Tião fora criado na cidade, com os desejos da cidade. Era movido pelo espírito da possibilidade da ascensão social pela ideologia do individualismo. Estava cansado de ver as dificuldades com as quais convivia diariamente, junto com os seus pais. Maria vivia uma situação ainda mais difícil, mas a sua compreensão era maior. Tião vivia meio deslocado e como não abraçou os valores da favela, construiu o caminho de suas perdas, de sua desumanização.

É óbvio que Guarnieri fez a sua opção ideológica nesta peça. Os anos 1950, embora 1956 e o XX PCUS, já tivessem ocorrido, ainda a doutrina do socialismo real acalentava muitos sonhos. Assim como ainda em nossos dias o socialismo, não o de inspiração stalinista, ainda se contrapõe à toda a barbárie capitalista, da competição desenfreada do livre mercado.
Cartaz promocional do filme Eles não usam black-tie.

O livro também foi levado ao cinema pela mesma equipe do Teatro de Arena, que representou a peça. Gianfrancesco Guarnieri é o autor do seu roteiro. O filme é de 1981. A peça ganhou muito em dramaticidade. As contradições e os conflitos estão mais vivos, com os recursos do cinema. Tudo se torna mais explícito e alguns personagens são introduzidos e outros ganham maior relevância. Sugiro para aqueles que forem ler o livro com a finalidade do vestibular, vejam também o filme. Ajudará enormemente na compreensão.

Ainda em tempo, um último lembrete. Certamente em tempos obscuros, pré fascistas do movimento "Escola sem Partido", este livro seria riscado da lista dos livros indicados. Aqueles que criam as contradições flagrantes da sociedade tentam também impedir, de todas as formas, que elas sejam enxergadas. Tentam em vão. A referência ao título é uma canção que um violeiro da favela cantarola e que depois, com outra autoria, ganha as paradas de sucesso. Mais uma violação a direitos.

2 comentários:

  1. que bom resumo.
    só acrescento que o otimo e premiado filme - de leon hirszman - pode ser visto integralmente no youtube:
    https://www.youtube.com/watch?v=Uzl2K1bDRog

    valeu, viu

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  2. Muito obrigado BethS pelo seu elogio e pela valiosa dica.

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