quinta-feira, 27 de outubro de 2016

O Jogo das contas de vidro. Hermann Hesse.

Depois de ler, nesta ordem, Demian, O lobo da estepe e Sidarta  do escritor alemão refugiado na Suíça, Hermann Hesse, resolvi enfrentar o volumoso O jogo das contas de vidro, que conferiu ao escritor o Prêmio Nobel de Literatura no ano de 1946. O livro foi publicado em 1943, em plena segunda guerra mundial, quando o escritor já estava com setenta anos.

Hesse seguramente deve ser um dos autores mais autobiográficos que eu já li. Demian (1919) retrata os seus anos de juventude e se constitui num dos melhores romances de formação que eu já li. O lobo da estepe (1927) mostra o escritor com cinquenta anos, defrontando-se, exatamente, com a idade do lobo. Sidarta (1922) é, se assim podemos dizer e creio que não, o seu livro de pregação, de afirmação dos princípios do hinduísmo. Os três livros são absolutamente maravilhosos. Em 1911 Hesse empreendeu a sua viagem à Índia, país com o qual, via parentesco, tinha grandes afinidades. O escritor foi uma espécie de precursor da cultura oriental na Europa tão fortemente cristã.
A edição da BestBolso de O jogo das contas de vidro.

Ler O jogo das contas de vidro, ou o jogo dos avelórios não é uma tarefa fácil. Precisa ter quase tanta disciplina quanto a cultura hindu exige em seus jogos de espiritualidade e transcendência, pela via da meditação. O Nobel de literatura lhe foi concedido, exatamente, em função deste livro. O espírito rebelde do autor está mais uma vez presente no livro, mesmo que José Servo, o personagem central, pertença a um grupo hermeticamente fechado, altamente hierárquico e ter galgado o mais alto topo desta hierarquia, o que implicava em fidelidade absoluta a princípios.

A sociedade a qual ele pertence é a ordem de Castália. uma comunidade espiritual altamente intelectual e elitizada. É perfeitamente comparável a uma ordem religiosa, seguindo todo o seu rigor e princípios hierárquicos, que só se concretizam pela via da obediência. O longo romance, 668 páginas na edição da BestBolso, relata a biografia de José Servo, um dos integrantes da ordem de Castália. O sobrenome original do alemão, Knecht recebeu, na tradução a palavra servo. Embora o termo esteja correto, me parece que ficou empobrecido.

Não são conhecidas as origens de José Servo. Desde a sua infância ele é incorporado à ordem de Castália, formando-se dentro dos rigores intelectuais desta comunidade. As disciplinas fundamentais desenvolvidas eram a música, a astronomia e a matemática. Estas disciplinas eram instrumentalizadas através de contas de vidros, para facilitar os jogos em sua constituição. Anualmente eram realizados os grandes jogos avelórios, presididas pelo magister ludi, o mestre dos jogos. O Magister ludi tinha função equivalente a do abade, nas ordens religiosas.

O jogo das contas de vidro começa com um ensaio de introdução popular à história em que a comunidade de Castalia e o seu jogo de avelórios são apresentados. Em Castália procura-se desenvolver uma nova linguagem. Logo a seguir começa o livro propriamente dito com a descrição, ao longo de doze capítulos, da biografia do Magister Ludi, José Servo. O livro termina com as poesias e um relato sobre as obras póstumas de José Servo, que remetem a três encarnações anteriores do Magister.

Os doze capítulos da biografia começam com a vocação do biografado mostrando o seu ingresso na ordem e os seus primeiros estudos. Segue com Cela Silvestre, local onde se situava uma das escolas da ordem, na qual os alunos eram preparados para os jogos avelórios, com dedicação especial para a música. Nesta escola José encontra Plínio, um aluno externo, com quem faz longa amizade. A biografia segue mostrando os anos de estudo de Servo, a sua admissão na ordem e um reencontro com Plínio. No quarto capítulo duas ordens, Servo recebe uma missão junto aos beneditinos, procurando uma aproximação com esta ordem religiosa, em muitos pontos semelhante aos que inspiram Castália. Neste capítulo Servo trava longa amizade com o monge Jacobus, uma espécie de diplomata da ordem.

No quinto capítulo A missão, Servo recebe a incumbência de fazer uma aproximação de Castália com Roma, com a igreja. Esses dois capítulos são vistos como uma tentativa de Hesse de voltar as origens religiosas de sua família, embora a sua missão não se concretize. Sela-se, no entanto, uma grande amizade e admiração mútua entre Servo e Jacobus. Muitos questionamentos são feitos e outras tantas dúvidas, que já vieram desde os tempo de amizade com Plínio, surgem na mente do fiel membro da ordem.

No sexto capítulo Servo é elevado à condição de Magister Ludi. O amor fati, um conceito de Nietzsche, o faz aceitar a missão. Neste momento se reavivam as dúvidas de Servo entre pertencer a uma organização e as questões da liberdade individual. Me senti retratado em minhas dúvidas pessoais, na saída do seminário. Cresce em Servo o desejo de abandonar a ordem. Conduz com brilhantismo os jogos avelórios, recuperando o seu antigo prestígio. No cargo, o sétimo capítulo José Servo mostra toda a sua competência na administração de Castália. Crescem também as suas relações com Tugularius, outro membro da ordem, com fortes tendências individualistas.

No oitavo capítulo Os dois polos é mostrada toda uma reaproximação entre entre Servo e Plínio, o aluno externo, que vivia no mundo fora da ordem, mundo ao qual Servo pretende se inserir. São cada vez maiores as dúvidas sobre a permanência em Castália. Com Plínio irá manter um diálogo em que os dois mundos são examinados. Na minha visão o livro atinge nesse momento os seus momentos mais elevados. Segue o capítulo 10, preparativos, em que José planeja a sua saída. A educação de Tito, filho de Plínio lhe abre a perspectiva da saída. A sua decisão é comunicada à ordem de Castália, através de uma Circular, em que todos os motivos são comunicados à hierarquia da ordem, que, no entanto, rejeita o seu pedido.

Aí termina a relação de Servo, o Magister Ludi e presidente dos jogos avelórios com Castália. Inicia então A Lenda. Aí vamos encontrar Servo iniciando o seu trabalho como preceptor de Tito, o filho de Plínio. Belas concepções de educação são explanadas.. Mas a biografia de José Servo termina abruptamente e de forma inesperada, que deixamos para o leitor desvendar. Seguem no livro as poesias de Servo e as suas obras póstumas. É isso. A obra mais importante de um Nobel de Literatura (As palavras em negrito são os títulos dos doze capítulos).

Confesso que gostei mais das obras anteriores do grande escritor. Em O jogo das contas de vidro a narrativa não tem a mesma vivacidade de suas obras anteriores e se travam longas reflexões sobre temas muito restritos e tocados de uma forma extremamente precavida, longe dos arroubos de seus trabalhos anteriores. Obra de fôlego do autor, fôlego este, que também é exigido do leitor.

Uma espécie de pós scriptum: ontem a noite eu saí. Fomos beber e conversar, não necessariamente nessa ordem. Havia no grupo um pessoa que pertencia a duas instituições. As conversas me fizeram entender bem melhor o livro, do quanto as pessoas são enredadas pelas instituições a que pertencem. Elas não permitem a individualização do sujeito, a busca de sua singularidade.



8 comentários:

  1. Olá! Um colega me recomendou a leitura de O jogo das contas de vidro, especialmente o conto hindu. Se eu ler somente o conto hindu, vou entender? tipo... se eu não ler o livro todo, mesmo assim posso entender somente o conto? Obrigada
    att Grazielle Franco

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  2. Não creio que seja possível. É uma obra extremamente complexa. Mas a leitura é agradável, Grazielle. precisa apenas de um pouco de persistência.

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  3. Li esse maravilhoso livro por volta de 1965. Eu acabava de decidir não ir para o seminário Marista. Amava música barroca e, com a história da inicialização de José Servo, aprendi o significado nas fugas de Bach. Guardo esse aprendizado até os dias de hoje. Vale muito a leitura.

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  4. Que bela disciplina a sua. Agradeço o seu erudito comentário. Em 1965, no seminário de Viamão RS., eu iniciava o meu curso de filosofia mas as dúvidas já me atormentavam. Que bom.

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  5. porque nao prermite a singularidade, se o processo de subjetivacao tem a ver com a entrada na cultura e na lei? me parece que a passagem da forca tem a ver com a amarracao subjetiva e uma rede social que permite a diferenca e singularidade e encontrar uma voz propia.

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  6. De uma biografia do Fellini: "Segundo minhas experiências, na escola como em casa faziam de tudo para apagar nossa peculiaridade". Obrigado rg pelo seu comentário

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  7. olá, sou professora universitária e o que me encantou no livro foi a necessidade de José servo educar fora das regras fechadas e individualistas de Castália. Foi descer do pedestal de Magister Ludi e se tornar apenas um professor à procura do próprio sentido de educar. Sem escolas com sentido que torna o viver mais significativo. Obrigada pela resenha. irei relê-lo. Telma

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  8. Telma, muito obrigado pelo seu comentário e que a dúvida sempre nos acompanhe. Enquanto houver dúvida - haverá busca.

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