quarta-feira, 19 de abril de 2017

O pai não é mais deputado. Carta de Rubens Paiva para os filhos.

Ainda estou aqui é um belo livro de Marcelo Rubens Paiva, lançado em 2015. O foco do livro são as memórias do escritor sobre os tristes acontecimentos que envolveram seu pai com o regime militar, como a cassação de seu mandato em 1964 e o seu desaparecimento, após prisão e tortura até a morte, nos quartéis do Rio de Janeiro. Mas o foco principal é a luta de sua mãe para a obtenção da verdade e do atestado de óbito e o seu fazer-se uma profissional do direito após o assassinato do marido, aos 41 anos e assumir o comando da família.
A partir da mãe, Eunice Paiva, é recordado o episódio da tortura, morte e desaparecimento do pai, Rubens Paiva pelo regime militar.


Deve ser o livro que melhor relata as mentiras que começaram a ser produzidas em 20 de janeiro de 1971, feriado de São Sebastião, a data de sua prisão. Com o tempo tudo foi desvendado: os motivos da prisão, a versão de sua fuga, o nome dos torturadores assassinos e para onde levaram o corpo, este nunca encontrado. O óbito foi obtido em 1995. A luta de Eunice Paiva é realmente uma bela e exemplar história. A sua dedicação à causa indígena a torna uma pessoa com méritos perenes. Ao final, já aos 77 anos é acometida pelo mal de Alzheimer. O tema é abordado com muito cuidado e ternura. Eunice Paiva ainda está viva, devendo contar com 87 anos.

Mas o objetivo deste post é a de explicar o que foi a ditadura civil-militar, instituída com o golpe de Estado de 1964. Rubens Beyrodt Paiva era deputado federal pela combativa legenda do PTB. Ele teve o mandato cassado já em 1964 e partiu para o exílio, primeiramente na Iugoslávia e depois em Paris. Em um voo de Paris para Montevidéu, com escala no Rio de Janeiro, desceu no Rio e como ninguém implicou com a sua saída, ali permaneceu. Anos depois ocorreu o triste incidente de sua tortura, morte e desaparecimento. 

A cartinha foi escrita, ainda em Brasília, quando estava refugiado na embaixada da Iugoslávia.  Era uma justificativa para suas 4 filhas e para o filho das razões da cassação de seu mandato e do seu exílio. A carta é bem simples e revela todo o carinho de um pai de 35 anos de idade para com a sua família. Era uma defesa que os filhos poderiam usar quando sofressem acusações por parte de coleguinhas na escola e em outros ambientes. Começa  nominando os apelidos das crianças. Vou transcrevê-la na íntegra:

"Verinha, Cuchimbas, Lambancinha, Cacazão e Babiu.
Recebi suas cartinhas, desenhos etc., fiquei muito satisfeito de ver que os nenês não esqueceram o velho pai. Aqui estou fazendo bastante ginástica, fumando meus charutos e lendo meus jornais. É possível que o velho pai vá fazer uma viagenzinha para descansar e trabalhar um pouco. Vocês sabem que o velho pai não é mais deputado? E sabem por quê? É que no nosso país existe uma porção de gente muito rica que finge que não sabe que existe muita gente pobre, que não pode levar as crianças na escola, que não tem dinheiro para comer direito e às vezes quer trabalhar e não tem emprego. O papai sabia disso tudo e quando foi ser deputado começou a trabalhar para reformar o nosso país e melhorar a vida dessa gente pobre. Aí veio uma porção daqueles muito ricos, que tinham medo que os outros pudessem melhorar de vida e começaram a dizer uma porção de mentiras. Disseram que nós queríamos roubar o que eles tinham: é mentira! Disseram que nós somos comunistas que queremos vender o Brasil: É mentira! Eles disseram tanta mentira que teve gente que acreditou. Eles se juntaram - o nome deles é gorila - e fizeram essa confusão toda, prenderam muita gente, tiraram o papai e os amigos dele da Câmara e do governo e agora querem dividir tudo o que o nosso país tem de bom entre eles que já são muito ricos. Mas a maioria é de gente pobre, que não quer saber dos gorilas, e mais tarde vai mandar eles embora, e a gente volta para fazer um Brasil muito bonito e para todo mundo viver bem. Vocês vão ver que o papai tinha razão e vão ficar satisfeitos do que ele fez".

Está aí límpido e claro, o que foi o golpe e porque ele ocorreu. E a enorme esperança fundada na fé de que ele estava certo. É triste vermos a repetição dos fatos. Se não existe violência física neste golpe que vivemos nos dias atuais, os objetivos dos golpistas são absolutamente os mesmos. Impedir a realização da justiça social e da vida com cidadania em nosso país. Uma carta que Marcelo Rubens Paiva guarda com muito carinho entre os seus documentos pessoais.

Deixo a referência do livro donde transcrevi a carta. Lê-lo é um antídoto para que fatos semelhantes não se repitam. Recomendo aos colegas professores para a leitura junto com os seus alunos. PAIVA,  Marcelo Rubens. Ainda estou aqui. Rio de Janeiro. Alfaguara. 2015. Extraído das páginas 101-102.

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