Adoro livros de memórias. O terceiro volume de Histórias da Gente Brasileira - Volume 3. República - Memórias (1890-1950), de Mary del Priore, me levou ao livro de Carolina Nabuco, 8 décadas. Um olhar perspicaz de quem viveu os fatos, a partir de um posto de observação privilegiado, como filha de Joaquim Nabuco. Carolina nasceu em 1890 e morreu em 1981. As oito décadas se referem à última do século XIX e às sete primeiras do século XX.
O livro de memórias de Carolina Nabuco. Nova Fronteira.
O livro de memórias de Carolina Nabuco. Nova Fronteira.
Na primeira década narrada (1890-1900), entre as revoltas contra a República (Da Armada e a Federalista), a guerra contra Conselheiro e as retumbantes questões jurídicas do caso Dreyfus e de Oscar Wilde, Carolina rememora também a febre amarela que grassou pelo Rio de Janeiro. Foi aí que, embora toda a minha formação de seminário e de ter um irmão com o nome do santo, fiquei sabendo ser São Roque o protetor contra as pestes e todas as doenças contagiosas.
Foi aí também que consegui entender por que esta danada e mortal febre está voltando ao país, embora todos os cuidados com saneamento, proteção ambiental e investimentos públicos fartos no combate às epidemias. É que o Brasil está se tornando uma república de cristãos evangélicos, ligados à teologia da prosperidade, que não invocam à proteção de santos. Por esta razão, creio que São Roque voltou o seu olhar para outras nações que continuam na santa invocação de sua proteção. Vejamos primeiramente um pouco da história de São Roque, tirada do Google, o maior sábio de nossos tempos.
São Roque, valei-nos. A invocação que deve ser feita.
São Roque, valei-nos. A invocação que deve ser feita.
O santo, nascido em Montpelier, na França, empreendeu uma viagem a Roma e "No decorrer da viagem, ao chegar à cidade de Acquapendente, próxima de Viterbo, encontrou-a assediada pela peste (aparentemente a grande epidemia da Peste Negra
de 1348). De imediato ofereceu-se como voluntário na assistência aos
doentes, operando as primeiras curas milagrosas, usando apenas um bisturi e o sinal da cruz. De seguida visitou Cesena e outras cidades vizinhas, Mântua, Modena, Parma, e muitas outras cidades e aldeias. Onde surgia um foco de peste, lá estava Roque ajudando e curando os doentes, revelando-se cada vez mais como místico e taumaturgo.
Vejamos agora as memórias de Carolina: "Grassava no Rio a febre amarela, sobretudo no verão, mas nós permanecíamos na cidade. Mamãe nos fazia então invocar São Roque, o santo tradicionalmente ligado às epidemias. Nessa época de perigo, acrescentávamos na oração da noite as palavras: 'São Roque, valei-nos'. Às vezes chegavam a mamãe notícias da morte de filhos de amigas. Foi-se assim, levado pelo mal, um menino de dona Alice, mulher de Rodolfo Dantas, e depois uma filhinha de Celina Jobim, comadre de mamãe. O sintoma de prova eram os vômitos negros.
Não havia mosquiteiros nas nossas caminhas, sinal de que se ignorava ainda o meio de transmissão do mal. Quando partimos para a Europa a bordo do Nile, em maio de 1899, por ter meu pai aceitado uma missão diplomática, Graça Aranha o acompanhou como secretário, também levando a família. Sua filhinha menor, Arminda, também embarcou conosco. Estava doentinha, mas sem diagnóstico fixo, sem inspirar cuidados. Faleceu a bordo, de febre amarela. As vítimas eram crianças em geral ou estrangeiros chegados de pouco. Os casos eram todos fatais.
Minha mãe tinha confiança em Deus e nos santos para nos proteger do perigo, mas eu imagino o quanto lhe custava não poder fugir com os filhos para a montanha, quando rompia uma epidemia. O modesto orçamento sob o qual viviam meus pais, nesses primeiros anos da República, não lhes permitia pensar em tomar uma casa em Petrópolis".
É por isso que eu gosto de livros de memórias.Uma descrição precisa e clara deste período histórico. vejam especificamente o caso de ignorarem as causas da transmissão da doença pelo mosquito. Tempos de pavor que estão de volta. São Roque, valei-nos.
No segundo capítulo, sobre os primeiros dez anos do século XX, Carolina volta a falar da peste amarela, desta vez, de sua erradicação: "No Brasil, o quadriênio da presidência de Rodrigues Alves (1902-1906) foi um período de renovação, com Rio Branco na pasta do Exterior garantindo nossa dignidade entre as nações e alargando ainda, com a negociação do Acre, as fronteiras que ele havia ganho em arbitramentos; com Osvaldo Cruz abolindo a febre amarela, que fizera do Rio uma cidade de castigo". Certamente que Lima Barreto não concordaria com esta análise.
No segundo capítulo, sobre os primeiros dez anos do século XX, Carolina volta a falar da peste amarela, desta vez, de sua erradicação: "No Brasil, o quadriênio da presidência de Rodrigues Alves (1902-1906) foi um período de renovação, com Rio Branco na pasta do Exterior garantindo nossa dignidade entre as nações e alargando ainda, com a negociação do Acre, as fronteiras que ele havia ganho em arbitramentos; com Osvaldo Cruz abolindo a febre amarela, que fizera do Rio uma cidade de castigo". Certamente que Lima Barreto não concordaria com esta análise.
Adendo: dia 16 de outubro de 2020. Sobre os santos antipestilentos:
O fantástico livro de Delumeau. Companhia das Letras. Tradução de Maria Lúcia Machado."Os santos antipestilentos mais frequentemente invocados eram são Sebastião (evitar as flechas da ira divina) e são Roque. As duas fontes hagiográficas que fundiram a vida e a lenda deste (morto em 1327?) contam que Roque, nascido em Montpellier e indo depois para a Itália, foi ali atingido pela peste e expulso de Piacenza. Refugiou-se em uma cabana nas redondezas da cidade. O cão de caça de um senhor da vizinhança começou a roubar pão da mão e da mesa de seu dono, que ia levar regularmente ao doente. Intrigado, o dono, chamado Gottardo, seguiu um dia o cão e compreendeu a manobra. Ele então alimentou Roque até sua cura. Em troca, o santo converteu Gottardo, que se tornou eremita. Roque, de volta a Montpellier, não foi reconhecido pelos seus. Tomado por um espião, foi posto na prisão, onde morreu. Então o calabouço iluminou-se e o carcereiro descobriu perto de seu corpo a inscrição traçada por um anjo: "eris in pestis patronus". Mais tarde, as relíquias de Roque foram transladadas de Montpellier para Veneza; desde então o prestígio do santo cresceu rapidamente, a ponto de ultrapassar são Sebastião. A iconografia ora contou o ciclo inteiro de sua vida - como na igreja da confraria de são Roque em Lisboa, na Scuola San Rocco de Veneza (são as pinturas célebres de Tintoretto) e na igreja de São Lourenço de Nuremberg -, ora ilustrou certos episódios de sua lenda. A representação mais esteriotipada, repetida em milhares de exemplares - prova da ubiquidade de um medo -, figurou-o com seu bastão e seu cachorro, apontando com o dedo o bubão de sua coxa (ilustração acima). A são Sebastião e a são Roque, o fervor e a inquietude populares acrescentaram no total bem uns cinquenta santos antipestilentos de menor envergadura, mais particularmente venerados aqui ou ali". Texto extraído de: DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente - 1300 - 1800. São Paulo: Companhia das Letras. 2001. Página 149.
No momento em que faço pesquisa sobre o Leprosário São Roque , Piraquara e
ResponderExcluirJoaquim Nabuco, é de suma importância a sua publicação. Grata.
Que ótimo, Leni. Veja só o título do capítulo 3 do livro de Delumeau - "Tipologia dos comportamentos coletivos em tempo de peste". O livro é maravilhoso. Agradeço a sua manifestação.
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