sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

"São Roque, valei-nos" . O santo e a febre amarela.

Adoro livros de memórias. O terceiro volume de Histórias da Gente Brasileira - Volume 3. República - Memórias (1890-1950), de Mary del Priore, me levou ao livro de Carolina Nabuco, 8 décadas. Um olhar perspicaz de quem viveu os fatos, a partir de um posto de observação privilegiado, como filha de Joaquim Nabuco. Carolina nasceu em 1890 e morreu em 1981. As oito décadas se referem à última do século XIX e às sete primeiras do século XX.
O livro de memórias de Carolina Nabuco. Nova Fronteira.

Na primeira década narrada (1890-1900), entre as revoltas contra a República (Da Armada e a Federalista), a guerra contra Conselheiro e as retumbantes questões jurídicas do caso Dreyfus e de Oscar Wilde, Carolina rememora também a febre amarela que grassou pelo Rio de Janeiro. Foi aí que, embora toda a minha formação de seminário e de ter um irmão com o nome do santo, fiquei sabendo ser  São Roque o protetor contra as pestes e todas as doenças contagiosas.

Foi aí também que consegui entender por que esta danada e mortal febre está voltando ao país, embora todos os cuidados com saneamento, proteção ambiental e investimentos públicos fartos no combate às epidemias. É que o Brasil está se tornando uma república de cristãos evangélicos, ligados à teologia da prosperidade, que não invocam à proteção de santos. Por esta razão, creio que São Roque voltou o seu olhar para outras nações que continuam na santa invocação de sua proteção.  Vejamos primeiramente um pouco da história de São Roque, tirada do Google, o maior sábio de nossos tempos.
São Roque, valei-nos. A invocação que deve ser feita.

O santo, nascido em Montpelier, na França, empreendeu uma viagem a Roma e "No decorrer da viagem, ao chegar à cidade de Acquapendente, próxima de Viterbo, encontrou-a assediada pela peste (aparentemente a grande epidemia da Peste Negra de 1348). De imediato ofereceu-se como voluntário na assistência aos doentes, operando as primeiras curas milagrosas, usando apenas um bisturi e o sinal da cruz. De seguida visitou Cesena e outras cidades vizinhas, Mântua, Modena, Parma, e muitas outras cidades e aldeias. Onde surgia um foco de peste, lá estava Roque ajudando e curando os doentes, revelando-se cada vez mais como místico e taumaturgo.

Vejamos agora as memórias de Carolina: "Grassava no Rio a febre amarela, sobretudo no verão, mas nós permanecíamos na cidade. Mamãe nos fazia então invocar São Roque, o santo tradicionalmente ligado às epidemias. Nessa época de perigo, acrescentávamos na oração da noite as palavras: 'São Roque, valei-nos'. Às vezes chegavam a mamãe notícias da morte de filhos de amigas. Foi-se assim, levado pelo mal, um menino de dona Alice, mulher de Rodolfo Dantas, e depois uma filhinha de Celina Jobim, comadre de mamãe. O sintoma de prova eram os vômitos negros.

Não havia mosquiteiros nas nossas caminhas, sinal de que se ignorava ainda o meio de transmissão do mal. Quando partimos para a Europa a bordo do Nile, em maio de 1899, por ter meu pai aceitado uma missão diplomática, Graça Aranha o acompanhou como secretário, também levando a família. Sua filhinha menor, Arminda, também embarcou conosco. Estava doentinha, mas sem diagnóstico fixo, sem inspirar cuidados. Faleceu a bordo, de febre amarela. As vítimas eram crianças em geral ou estrangeiros chegados de pouco. Os casos eram todos fatais.

Minha mãe tinha confiança em Deus e nos santos para nos proteger do perigo, mas eu imagino o quanto lhe custava não poder fugir com os filhos para a montanha, quando rompia uma epidemia. O modesto orçamento sob o qual viviam meus pais, nesses primeiros anos da República, não lhes permitia pensar em tomar uma casa em Petrópolis".

É por isso que eu gosto de livros de memórias.Uma descrição precisa e clara deste período histórico. vejam especificamente o caso de ignorarem as causas da transmissão da doença pelo mosquito.  Tempos de pavor que estão de volta. São Roque, valei-nos.

No segundo capítulo, sobre os primeiros dez anos do século XX, Carolina volta a falar da peste amarela, desta vez, de sua erradicação: "No Brasil, o quadriênio da presidência de Rodrigues Alves (1902-1906) foi um período de renovação, com Rio Branco na pasta do Exterior garantindo nossa dignidade entre as nações e alargando ainda, com a negociação do Acre, as fronteiras que ele havia ganho em arbitramentos; com Osvaldo Cruz abolindo a febre amarela, que fizera do Rio uma cidade de castigo". Certamente que Lima Barreto não concordaria com esta análise.

Adendo: dia 16 de outubro de 2020. Sobre os santos antipestilentos:
O fantástico livro de Delumeau. Companhia das Letras. Tradução de Maria Lúcia Machado.

"Os santos antipestilentos mais frequentemente invocados eram são Sebastião (evitar as flechas da ira divina) e são Roque. As duas fontes hagiográficas que fundiram a vida e a lenda deste (morto em 1327?) contam que Roque, nascido em Montpellier e indo depois para a Itália, foi ali atingido pela peste e expulso de Piacenza. Refugiou-se em uma cabana nas redondezas da cidade. O cão de caça de um senhor da vizinhança começou a roubar pão da mão e da mesa de seu dono, que ia levar regularmente ao doente. Intrigado, o dono, chamado Gottardo, seguiu um dia o cão e compreendeu a manobra. Ele então alimentou Roque até sua cura. Em troca, o santo converteu Gottardo, que se tornou eremita. Roque, de volta a Montpellier, não foi reconhecido pelos seus. Tomado por um espião, foi posto na prisão, onde morreu. Então o calabouço iluminou-se e o carcereiro descobriu perto de seu corpo a inscrição traçada por um anjo: "eris in pestis patronus". Mais tarde, as relíquias de Roque foram transladadas de Montpellier para Veneza; desde então o prestígio do santo cresceu rapidamente, a ponto de ultrapassar são Sebastião. A iconografia ora contou o ciclo inteiro de sua vida - como na igreja da confraria de são Roque em Lisboa, na Scuola San Rocco de Veneza (são as pinturas célebres de Tintoretto) e na igreja de São Lourenço de Nuremberg -, ora ilustrou certos episódios de sua lenda. A representação mais esteriotipada, repetida em milhares de exemplares - prova da ubiquidade de um medo -, figurou-o com seu bastão e seu cachorro, apontando com o dedo o bubão de sua coxa (ilustração acima). A são Sebastião e a são Roque, o fervor e a inquietude populares acrescentaram no total bem uns cinquenta santos antipestilentos de menor envergadura, mais particularmente venerados aqui ou ali". Texto extraído de: DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente - 1300 - 1800. São Paulo: Companhia das Letras. 2001. Página 149.

2 comentários:

  1. No momento em que faço pesquisa sobre o Leprosário São Roque , Piraquara e
    Joaquim Nabuco, é de suma importância a sua publicação. Grata.

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    1. Que ótimo, Leni. Veja só o título do capítulo 3 do livro de Delumeau - "Tipologia dos comportamentos coletivos em tempo de peste". O livro é maravilhoso. Agradeço a sua manifestação.

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