quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. Lima Barreto.

Quanto mais leio o Lima Barreto tanto mais eu fico gostando dele. Praticamente li toda a sua obra, ao menos a que está disponível. Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá é uma das obras que ainda me faltava. O li numa bela edição da Ateliê Editorial, com uma notável apresentação de Marcos Scheffel, responsável também por uma infinidade de notas explicativas, muitas delas relacionando fatos deste livro com outros de sua vasta obra.
A cuidadosa edição da Ateliê Editorial. Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá.

Possivelmente Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá e mais, as Recordações do Escrivão Isaías Caminha sejam os mais autobiográficos de seus livros. Eles chocaram bastante o público leitor. Mais o Isaías Caminha, por ter sido publicado mais cedo, em 1907, como folhetim e em 1909, como livro. Por causa da descrição das mazelas da imprensa ficou meio mal visto. Gonzaga de Sá já existia como projeto em 1906/1907. Dele foram encontradas anotações como esboço, esboço este presente na edição da Ateliê. O livro, no entanto, foi lançado apenas em 1919 e foi escrito um pouco antes desta data. Não teve boa recepção por parte do público. Monteiro Lobato achava o título pouco apropriado e chamativo.

O narrador de Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, Augusto Machado conhece Gonzaga de Sá na Secretaria dos Cultos, local em que trabalhava. Foi até lá por uma questão banal, de uma reclamação sobre o número de uma salva de tiros em recepção ao bispo de Tocantins. Tiros a menos. O narrador, que trabalhava no Ministério da Guerra, foi envolvido na solução do conflito e assim os dois se conheceram. Pouco depois Gonzaga morre e Augusto Machado lembra os fatos mais marcantes da forte amizade estabelecida. Gonzaga de Sá era um homem extremamente culto.

O livro é dividido em 12 capítulos, todos voltados para a reconstituição da vida e morte do notável personagem. No primeiro, o inventor e a aeronave, é narrado o encontro dos personagens envolvidos na solução do caso do bispo. O título é uma referência ao encontro de uma folha de papel almaço, em que Gonzaga de Sá descrevera um projeto seu, de construção de uma aeronave. No segundo, Primeiras Informações, o narrador dá as informações do personagem título. O Sá, de seu sobrenome, o remete aos fundadores da cidade. Traça um "croqui" do nobre descendente.

No terceiro, Emblemas Públicos, o personagem reclama da insuficiência existente na arte do desenho, que se refletirá na criação de selos e efígies públicos. Usa de profunda ironia. No quarto, Petrópolis, a origem nobre do personagem, como descendente dos fundadores da cidade, é retomada, lamentando também a decadência ocorrida com o decorrer do tempo. As cidades de Petrópolis e do Rio de Janeiro são caracterizadas. No quinto, O passeador, o personagem passeia pelo Rio de Janeiro e lamenta o progresso havido com o saneamento e a abertura de avenidas. O maior destaque vai para o Morro do Castelo que foi demolido e, junto com ele, marcos da história da cidade. Um capítulo particularmente belo. Profundamente autobiográfico, uma vez que Lima Barreto tinha fama de bom passeador.

No sexto, O Barão, as Costureiras e Outras Coisas, o alvo é um desafeto seu, o barão do Rio Branco. Através do Barão critica os costumes da política, como as nomeações, as mulheres, classes, povos e raças. Muita ironia. No sétimo, Pleno Contato, mais ironias sobre o funcionalismo público são apontadas. É mostrado um Barão que nada fazia, além de apontar o lápis. Narrador e personagem se aproximam, com o convite deste para um jantar. No oitavo, O Jantar, fica marcada a aproximação e muitos diálogos são estabelecidos. São comentados os costumes do interior e, de modo especial, são feitas referências a pouca cultura das elites brasileiras.

No nono, O Padrinho, mais críticas aos costumes são apresentados. Outro capítulo notável. A Rua do Ouvidor é utilizada para mostrar os desvarios da classe política. É o local onde se gasta toda a riqueza acumulada por meios nem sempre lícitos. Esta rua concentravam as lojas de luxo, fornecedoras dos regalos para as amantes francesas. Na descrição  dos cafés, sempre frequentados pelo narrador, encontramos Gonzaga de Sá buscando-o num deles, para acompanhá-lo a um enterro. No décimo, O Enterro, a narrativa prossegue. Mais andanças pela cidade, agora pelos bairros, até a casa de Romualdo de Araújo, o compadre de Gonzaga de Sá, onde ocorre o seu velório. Depois trazem o cadáver até a Central do Brasil e daí o levam num coche,  para o enterro no cemitério do Caju. Mais um capítulo notável, com fortes críticas sociais e a ausência deste tema na literatura brasileira. Depois do enterro vão ao Passeio Público e ainda sobra um tempo para jantar e continuar as reflexões.

No onze, Era Feriado Nacional, mais reflexões, agora sobre o Brasil, são apresentadas. Gonzaga de Sá não entendia o entusiasmo cívico do povo que assistia aos desfiles que levavam ao Catete. Depois ele é acometido de um pessimismo profundo ao ver a manipulação deste povo de pastor e rebanho. Terminam num espetáculo lírico observando o comportamento, especialmente, das damas. No doze, Últimos encontros, se discute o futuro de Aleixo, o afilhado órfão de Gonzaga de Sá. É o momento em que trocam ideias sobre a educação.
A notável biografia de Lima Barreto, lançada em 2017.

Transcrevo uma parte deste capítulo final, que creio que seja uma síntese do que foi a vida de desencontros de Lima Barreto, apresentado como "triste visionário", na magnífica biografia escrita por Lília Schwarcz. O narrador descreve a preocupação de Gonzaga de Sá em fazer de Aleixo um sujeito, gente. Isso lhe trazia esperança e alegria. Mas Gonzaga não vê o resultado desta educação, pois foi colhido pela morte, quando o encaminhava para o curso preparatório.

Vejamos a fala do narrador: "Bênçãos a ambos (a tia e o menino), que na sua missão educadora, souberam ser bons, sem interesse e sem cálculo de espécie alguma, apesar de todos os dois terem concorrido para ampliar, com o hábito de análise e reflexão que o estudo traz, a consciência da criança que devia ficar restrita aos dados elementares para o uso do viver comum, sem que viessem surgir nela uma mágoa constante e um fatal princípio permanente de inadaptação ao meio, criando-lhe um mal-estar irremediável e, consequentemente, um desgosto da Vida mais atroz do que o pensamento sempre presente da morte".

Creio que Lima Barreto foi o mais bem formado, ao menos o de maior escolaridade, entre os escritores brasileiros até a sua época. O emprego permanente que conseguiu, e que lhe proveria o sustento, foi apenas o de amanuense no Ministério da Guerra. Na sua literatura colocou as dores de sua existência e as que o seu meio lhe proporcionou e, por isso, não foi bem compreendido. Em suma, sempre foi aproveitado muito aquém de suas possibilidades e, por isso mesmo, um inadaptado, um "triste visionário".

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