quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Sobre a estupidez. Robert Musil.

Tenho uma grande estima por romances de formação. Entre eles, um em particular, me causou  profunda impressão. Trata-se de O jovem Törless, do escritor austro-checo, Robert Musil. As desventuras de um menino num colégio interno. Quando estava em busca de seu mais afamado livro O homem sem qualidades, e, como ainda não havia localizado um exemplar que me convinha, apareceram nos anúncios publicitários das redes sociais sugestões de obras semelhantes ou do mesmo autor. Assim apareceu em tela um ensaio/conferência, sob o nome Sobre a estupidez. Adquiri-o de imediato. Deixo o link da resenha de O jovem Törless:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/08/o-jovem-torless-robert-musil.html

O ensaio de Robert Musil, Sobre a estupidez. Ayiné. 2020. Tradução: Simone Pereira Gonçalves.

O ensaio/conferência foi proferido em duas oportunidades, em Viena, nos dias 2 e 17 de março do ano de 1937, atendendo a um convite da Federação Austríaca do Trabalho. Observem o ano - 1937, praticamente às vésperas do Anschluss, fato que até hoje envergonha a história austríaca. Na abertura dessa conferência ele cita um trabalho seu, de 1931, já em tempos de ascensão do nazismo alemão, que se consolidaria já a partir de 1933. Dá para imaginar o empenho e a gana do escritor nessa fala!

Como o ensaio/conferência é de difícil resenha, começo com uma pequena síntese, apresentada na contracapa do pequeno livrinho: "Em 1937, a convite da Federação Austríaca do Trabalho, Robert Musil profere uma penetrante e arguta conferência sobre o tema da estupidez, dando origem a este ensaio, considerado um dos mais importantes do autor. Sobre a estupidez, afirma Musil, as pessoas geralmente preferem não falar, não discutir: "O domínio violento e vergonhoso que a estupidez exerce sobre nós é revelado por muitas pessoas ao demonstrarem-se surpresas de maneira amável e conspiratória quando alguém, a quem confiam, pretende evocar esse monstro pelo nome".

Sublinhei uma série de passagens que me pareceram mais marcantes. A primeira está já na abertura, quando cita um trabalho seu de 1931: "Se a estupidez não fosse tão parecida, a ponto de confundir-se, com o progresso, com o talento, a esperança ou a melhora, ninguém desejaria ser estúpido" (Página 7). Aparece aí uma primeira ideia da distorção em torno do conceito, "um distúrbio do desenvolvimento contemporâneo". De saída o autor também remete o conceito à arte, quando se confunde "um juízo estético com um juízo comercial", referindo-se ao cinema sonoro. Constata ainda que os sábios preferem falar sobre a sabedoria no lugar da estupidez. 

A pressuposição básica de quem fala sobre a estupidez é a de que ele não se considera um estúpido. Musil associa a dificuldade de falar sobre ela à caça da borboleta branca, que quando caçada, aparecem em seu lugar, outras extremamente semelhantes, confundindo o caçador. Também a considera sob a forma de uma relação de poder, o que a vincula com a subordinação, como na relação senhor e servo, professor e aluno. É uma ação de crueldade contra os mais fracos. Triste mesmo é quando o ser humano fala como massa, um "nós" coletivo, tão próprio à classe média. Também a relaciona com a vaidade ao citar um ditado popular: "Estupidez e orgulho crescem no mesmo galho" (Página 18).

Também me causou impacto uma afirmação de que "à estupidez em ação, designamos rudeza" (Página 24). Vem daí a interação entre a inteligência com os sentimentos. É algo mais do que a simples falta de inteligência. Uma das mais brilhantes análises, sob a minha ótica, é quando ele estabelece vínculos entre a inteligência e o desempenho. Estúpido e incompetente se confundem. Aí já se parte para uma associação com as relações comerciais. A desonestidade se reveste de inteligência e competência. Faz também um belo emprego da palavra Kitsch, no sentido de mercadoria de pouco valor, vendida com prejuízo. Estamos assim, já no complicado campo da moral, da competência e da estupidez. A estupidez também, em muitas ocasiões se apresenta como uma forma instintiva de agir. Neste campo, eu me adiantei nos meus juízos, lembrando que o neoliberalismo, em seu estágio mais recente, apresenta o "ganhar dinheiro", como a forma suprema da inteligência.

Ainda sobrou tempo para Musil entrar em outros campos de extrema complexidade, como a da psicologia e das questões médicas. O mais impactante, no entanto, é quando ele fala da educação: "Não há nenhum pensamento importante que a estupidez não saiba aplicar, ela se move em todas as direções e pode vestir todas as roupagens da verdade. A verdade, ao contrário, tem apenas uma roupa em qualquer ocasião, um só caminho, e sempre está em desvantagem" (Página 44). Triste. Sempre existe uma enorme ambiguidade entre a inteligência e a estupidez.

E uma frase para terminar. É sobre a integração entre pensamentos e sentimentos, visando um bom senso: "Mas, se tivéssemos que acrescentar alguma coisa, seria o seguinte: com tudo o que foi dito não existe ainda nenhum sinal seguro de reconhecimento e diferenciação do significativo e não poderia existir nem de leve um sinal totalmente suficiente. Mas justamente isso nos leva ao último e mais importante meio contra  a estupidez: a modéstia (Página 49). O livrinho tem apenas 51 páginas.

Um dos motivos, de uma maneira toda particular, pelos quais eu li o livro, além do apreço pelo autor, foi o de estabelecer uma relação entre os anos de 1937 e os anos do Brasil sob o governo Bolsonaro, um governo, diga-se, eleito. Não vou expor essas reflexões, mas acrescentar uma provocação de Adorno em sua fala do dia 18 de abril de 1966, que depois foi incorporada ao livro Educação e emancipação. Mais profunda é impossível: "A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. De tal modo ela precede quaisquer outras que creio não ser necessário justificá-la".


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