quinta-feira, 24 de agosto de 2023

VIVA O POVO BRASILEIRO. João Ubaldo Ribeiro.

Tenho com o livro Viva o povo brasileiro uma relação muito antiga. O livro foi lançado no ano de 1984 e, já em 1985, ainda morando em Umuarama, eu o adquiri, na Livraria Universitária, daquela cidade. Para a sua leitura haveria uma longa espera. Depois, já em Curitiba, acompanhei João Ubaldo Ribeiro( 1941 - Itaparica - 2014 - Rio de Janeiro), mais pelas sua crônicas na imprensa do que pelos seus livros. O meu primeiro contato com o escritor foi através do incrível  A casa dos budas ditosos, um livro sobre a luxúria, livro que lhe fora encomendado para compor uma coleção sobre o tema dos pecados capitais. Li também Sargento Getúlio.

Viva o povo brasileiro. João Ubaldo Ribeiro. Editora Nova Fronteira. 1984.

Em 2011 João Ubaldo ganhou grande evidência ao ser o homenageado da FLIP, a Feira de Livros da cidade de Paraty, no Rio de Janeiro. Antes, aqui em Curitiba, ele fora convidado para uma roda de conversa que se realizou no Teatro Paiol. Lembro até que sobrou uma meia dúzia de lugares. Já depois, em Paraty, os lugares seriam disputados, como se diz, a tapas. Um raro privilégio foi ter participado dessa fala. Lembro dessa sua fala sobre A casa dos budas ditosos e também sobre Viva o povo brasileiro, romance com o qual ele provara que também sabia escrever um romance longo. Também falou de seu rigor como professor. Até guardo uma fotografia do evento.

Também, em duas oportunidades estive na ilha de Itaparica, sua querida ilha natal, imortalizada e transformada em personagem de Viva o povo brasileiro. Quando fui pela primeira vez, fui em excursão e só passamos em frente da casa em que ele morou, sendo avisados disso pelo guia. Fui novamente a Itaparica em maio de 2022, dessa vez ficando três dias, procurando sorver a magia da ilha e beber de sua água milagrosa, na Fonte da Bica, capaz de preservar a eterna juventude, fonte há muito conhecida e utilizada, com inauguração da atual conformação em sete de janeiro de 1973, ano do sesquicentenário da independência do Brasil, data assim festejada na ilha. Quem leu ou for ler o romance, sabe o porquê de estar acentuando este sete de janeiro. Ali mesmo, na ilha, em frente à casa em que João Ubaldo morara, fiz a solene promessa de que dessa vez eu leria o livro.


A Fonte da Bica. Ilha de Itaparica.

De volta a Curitiba, tomei o livro em mãos, mas diante das 673 páginas, em letras miudinhas, eu me assustei. E mais uma vez adiei esse projeto. Só o fiz agora e me veio um grande arrependimento: "Como eu não li este livro muito antes". Um livro absolutamente necessário para quem minimamente quer conhecer um pouco do Brasil, de sua história e de seu povo maravilhoso e exclamar junto com João Ubaldo Viva o povo brasileiro.

Considero que o maior valor do livro é a visão que João Ubaldo Ribeiro tem do povo. Um povo bom mas dominado por uma elite contrária aos interesses desse mesmo povo, que ele mesmo ajudou a formar e cheio de preconceitos que eles disseminam e propagam, como se isso apontasse para qualquer tipo de solução. Outro valor extraordinário do livro é a fina ironia que perpassa o livro todo. É um fio tênue que sempre opõem os interesses, as angústias e as infelicidades da elites e a alegria e a esperança, apesar de tudo, de nosso povo. 

Mas qual é a essência desse livro? A essência é a nossa própria história, o nosso próprio povo e as suas raízes históricas e as suas tradições que ele procura, a todo custo, preservar. São trezentos anos de história, a partir da ilha de Itaparica, da cidade de Salvador, da Baía de Todos os Santos e do Recôncavo Baiano. É a história da escravidão no Recôncavo, que para além da lavoura canavieira e do fumo, tem também na caça à baleia um de seus esteios econômicos. A partir de Itaparica se conta a história do Brasil: a partir da invasão holandesa e de sua expulsão, as lutas pela independência, com as datas de sete de janeiro (Itaparica), e dois de julho (Salvador), da Guerra do Paraguai (com a intervenção de vários orixás em favor dos voluntários da pátria da ilha), da abolição da escravatura, que não trouxe a liberdade ao povo escravizado, da Proclamação da República, do trucidar do povo do sertão pelo exército da República, até chegar à Revolução de 1964, que salvou o Brasil do comunismo, feito heroico, mesmo com todos os sofrimentos impostos à classe trabalhadora.

Os  principais personagens são o Barão de Pirapuama, o seu 'honesto' contador Amleto, que lhe surrupiou quase toda a fortuna, seus descendentes, com destaque para Bonifácio Odulfo, que formarão a elite e Leléu, Vevé e Maria da Fé, a raiz desse mesmo povo, unido em seus ideais, tradições e irmandades. Amleto Ferreira deixou vasta descendência e fortuna. Um de seus filhos, Patrício Macário, de tantos desgostos que lhe deu, foi encaminhado para o exército, à espera de correção em seu modo de vida. Ele se transforma num dos grandes personagens do livro, com o seu destino não seguindo os rumos desejados. Ele sofre as transformações de um grande amor, que o fez buscar o "espírito do homem". Em suma, são tantos personagens, tão ricos e diferentes, que efetivamente deram a possibilidade para João Ubaldo escrever o seu longo romance. E o exército brasileiro! Sempre lutando contra o seu próprio povo! E as instituições...!

Da minha parte, eu selecionei duas passagens que me falaram alto. A primeira é a visão de Maria da Fé. Ela é descendente direta do barão, fruto de um estupro dele contra a sua mãe e que, mais tarde, morreu assassinada por jovens inconsequentes, sem nada poder fazer em sua defesa. Maria da Fé, assim vê a abolição da escravidão. Ela ensina ao povo a ter amor próprio:

"Veio a libertação dos escravos, ela pregou que aquilo não libertava escravo nenhum e que o povo nada podia esperar que fosse dado de cima e, se deram essa tal liberdade aos cativos, era porque interessava a eles e boa coisa não era para o povo. Veio a República e ela pregou que tanto fazia como tanto fez, que nem rei nem presidente estava pensando no povo e podiam esperar até vida pior. Como de fato foi o que se viu depois, a seca piorando, as terras sendo tomadas dos pobres, a escravidão pior do que antes, o coronel mandando mais que o Imperador de Roma, o povo de cabeça baixa, os despossuídos cada vez mais despossuídos e os possuídos cada vez mais possuídos, por isso se dizendo que a República trouxe a lei do Cão". E Maria da Fé foi pregar no sertão... (Páginas 519-520).

Outra passagem é a de uma carta do monsenhor Clemente André, filho de Bonifácio Odulfo, toda marcada de pessimismo: "A abolição, como eu temia, revelou-se um grande mal. Não estavam, como não estão, os negros, preparados para a liberdade. Obtusos, broncos, analfabetos, pouco asseados, viciados mesmo, agora exercem, livremente, sua influência deletéria e corruptora, sobre os costumes e a raça. Não procede a alegação de que são vagabundos e vadios, porque não há trabalho. Trabalho há, sempre houve, para quem quer e, para quem não quer, por indolência e fraqueza de caráter, nunca há. Mas não se tomam, por incrível que pareça, medidas para conter, eficazmente, essa vadiagem. Quando despertarem, os governantes, será tarde demais, para delir tal chaga social e moral, que ameaça fazer desabar tudo o que se vem tentando, laboriosamente, construir, ao longo dos séculos de dedicação e sofrimento. Vivemos uma crise de autoridade, uma crise de comando, uma crise de valores, uma crise mortal, da mais profunda gravidade e não nos damos conta dela, não fazemos nada, para debelá-la. O sentimento religioso vai esboroando-se..." (Página 536). Ah, as instituições! A Igreja!

Deixo ainda, uma parte do parágrafo final do livro, que aponta para a esperança: "O (vento) sudeste bateu, juntou as nuvens, começou a chover em bagas grossas e ritmadas, todos os que ainda estavam acordados levantaram-se para fechar suas janelas e aparar a água que viria das calhas. Ninguém olhou para cima e assim ninguém viu, no meio do temporal, o Espírito do Homem, erradio mas cheio de esperança, vagando sobre as águas sem luz da grande baía". Isso se passou no dia em que Patrício Macário, general do exército brasileiro, morreu na ilha, no dia da celebração de seu aniversário em que completou cem anos. Um general raro, porque, ao lado do povo brasileiro.

Deixo ainda as orelhas do livro, para uma melhor identificação do mesmo, no sentido de provocar para o desejo de sua leitura. 

"Ao contrário da impressão que o título pode causar à primeira vista, Viva o povo brasileiro não é uma espécie de saga da nação brasileira, nem uma tentativa de construir uma 'história secreta', em contraposição à 'história oficial'. Este extraordinário romance, seguramente destinado a deixar sua marca em nossa literatura, é antes a história - história exuberante, encantada, cheia de vida - de uma busca de identidade que talvez até hoje ainda escape, em sua inteireza, à consciência do povo brasileiro, tão agredido em suas raízes culturais. É também, de certa forma, uma história do surgimento dessa consciência e de sua luta por afirmação.

Para desfiar sua narrativa, que abrange mais de três séculos, o autor se valeu de um recurso ao mesmo tempo metafórico e explícito. Metafórico porque o povo do Recôncavo Baiano, principal personagem do romance, pode ser visto como metáfora do povo brasileiro em geral. Explícito porque com isso se evidencia para o leitor um dos mais belos 'motivos' deste romance: a visão do sentimento de identidade entre os brasileiros, mesmo entre os que só sabem da existência de seus irmãos distantes de uma maneira vaga e nebulosa, toldada pelo desconhecimento e pela ignorância.

Transcendendo em muito o universo narrativo escolhido (que terminou por gerar um tratamento do tempo ficcional de grande originalidade, embora enganosamente simples), Viva o povo brasileiro, pelo seu brilho técnico, seu prodigioso cabedal de informações sobre a vida e a cultura do povo, seu apuro de linguagem, sua altíssima qualidade literária, enfim, credencia-se como um acontecimento de primeira linha no panorama da literatura brasileira contemporânea. Senhor de carpintaria literária como poucos, de rara competência de utilização de um acervo de recursos narrativos aparentemente inesgotável, dono de uma sensibilidade apaixonada e ao mesmo tempo satírica, João Ubaldo Ribeiro é hoje reconhecido como um dos escritores mais significativos da América Latina, com traduções em mais de dez idiomas, em todo o mundo. [...] Neste romance inesquecível, ele proporciona ao leitor uma experiência enriquecedora, um mergulho num Brasil que é 'o nosso', o de todos, o Brasil do nosso inconsciente coletivo, mitológico, misterioso, vibrante, escondido - atraente porque distante e, ao mesmo tempo, fascinantemente próximo".

Com João Ubaldo Ribeiro. Teatro Paiol. Curitiba. 2011.

Quero fazer ainda uma última observação. A leitura de Viva o povo brasileiro equivale a uma síntese de quase todos os ensaios produzidos sobre a formação do povo brasileiro, de sua identidade e cultura, das  visões pessimistas e otimistas, preconceituosas ou não, que a intelectualidade desse país produziu.



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo comentário. Depois de moderado ele será liberado.