domingo, 24 de maio de 2015

O Cinema no Século. Paulo Emílio Sales Gomes.

A parceria que tenho com a Companhia das Letras me leva a leituras que dificilmente eu faria sem ela. Muitas delas certamente estariam fora do meu foco de interesse. Assim recebo uma lista e faço escolhas. Confesso que algumas são bem arrojadas, como foi o caso de Roth Libertado - O escritor e seus livros, um misto de biografia e ensaio, extremamente erudito. Isso aconteceu novamente com o livro O Cinema no século, de Paulo Emílio Sales Gomes, recente livro da Companhia das Letras.
O Cinema no século. Carlos Augusto Calil organiza os comentários de Paulo Emílio Sales Gomes em livro. Um lançamento da Companhia das Letras.

A minha formação em cinema é praticamente nula. Coisas da vida. Nos tempos de minha faculdade de filosofia, em Viamão, íamos ao cinema em Porto Alegre. O domínio era para a Nouvelle Vague do cinema francês e alguma coisa do neorrealismo italiano. Lia a coluna de cinema do Goidanich, não me lembro se na Zero Hora ou no Correio do Povo. A minha visão religiosa, em seu pior foco, o foco moralista, fez com que não apreciasse o colunista e quanto aos filmes, entendia muito pouco. Confesso que se tivesse ficado em Porto Alegre e tivesse tido condições mínimas de sustentação, talvez teria me dedicado mais a esse importante campo da cultura.

Formado, vim para o Paraná como professor em três períodos. Fui para Umuarama, uma cidade pioneira, distante da capital e, mais ainda, do cinema. Morando depois em Curitiba, a situação melhorou um pouco. Algumas leituras, idas mais frequentes ao cinema, conversas com os amigos, com os professores e algumas compras de coleções, com folhetos explicativos.
Paulo Emílio Sales Gomes. Grande cineasta e notável intelectual.

Nunca tinha ouvido falar de Paulo Emílio Sales Gomes. Primeiro procurei situá-lo e datá-lo. O localizei em São Paulo, nascido em 1916, vivendo pelo mundo até o ano de 1977. Em sua juventude foi um ardoroso comunista, na sua vertente trotskista, extremamente radical, portanto. É lógico que foi importunado pelo Estado Novo, sendo preso como tantos, nesse período. A sua fuga foi para Paris. A sua iniciação na cultura se deu, segundo suas próprias palavras, no cinema por Chaplin e Renoir e na literatura com a obra de Eça de Queirós. Entre seus amigos estava Antônio Cândido, o que me dispensa citar outros.
A iniciação de um intelectual. Chaplin e Eça de Queirós.

Em São Paulo foi o fundador da Cinemateca Brasileira, sendo também colunista do suplemento literário dominical de O Estado de São Paulo. Também foi responsável pela organização de semanas de cinema, ocupando-se, portanto, do cinema no século. Ocupou-se assim dos primórdios do cinema, ainda mudo, até chegar nos anos de 1970, passando pelo cinema americano, inglês, alemão, italiano, francês e japonês e diretores como Chaplin, Griffith, Orson Welles, Renoir, Eisenstein, Fellini, de Sicca, Rosselini e tantos outros. Passou também pelas escolas de cinema.

O livro se concentra na coluna que escrevia semanalmente para O Estado de São Paulo, entre 1956 e 1965. Comentava os principais lançamentos, bem como as promoções temáticas de semanas cinematográficas que eram realizadas em São e no Rio de Janeiro, pelas cinematecas e pelo Museu de Arte Contemporânea. A sua erudição é algo notável. Bernard Eisenschitz escreve no posfácio do livro sobre a abrangência de seus comentários: "Ele abraça, em suma, todo o leque de questões com que se depara um historiador, um crítico, um programador e um cinematógrafo. Compreende-se que os quatro tenham sido, para ele, um só".
Eisenstein e Rosselini também fazem parte dos comentários de Paulo Emílio.

Os comentários de Paulo Emílio Sales Gomes foram organizados em livro de uma forma brilhante, obedecendo uma ordem cronológica e temática, entremeando diretores, atores, escolas e nacionalidades. Este trabalho foi organizado por Carlos Augusto Calil, e não deve ter sido nada fácil. Só alguém muito familiarizado com o autor e com o tema poderia realizar tão bem esta tarefa. Calil é do ramo. É professor de cinema e foi secretário de cultura do município de São Paulo.
Carlos Augusto Calil é o organizador e prefaciador do livro O cinema no século.

O livro tem 615 páginas. Não é difícil de ler, pois os textos não são longos. São os seus comentários para o popular Estadão. Normalmente os temas abordados ocupam de cinco a seis páginas. Ele pode ser lido também por etapas, servindo os títulos dos comentários como uma espécie de verbetes que deverão ser largamente utilizados em salas de aulas, nas turmas e nas disciplinas de cinema. O livro também nos mostra a intensidade do intelectual brasileiro dos anos que beiraram a metade do século XX. Eram verdadeiros intelectuais e não meros especialistas.

O livro tem um destino certo e um público alvo que são, de um modo todo especial, os professores e alunos dos cursos de cinema, para todos os que gostam desta arte e para todos aqueles que se lançam na bela aventura  de se apoderar daquilo que de melhor a humanidade já produziu. Importante notar que o cinema no século, especialmente o de sua primeira metade, foi o de um século letalmente ferido por duas guerras, pelo uso de bombas atômicas e seguido por uma louca corrida armamentista.
Metrópolis e  Hiroshima mon amour são comentados no livro.


Não resisto em publicar um trecho, recitado no filme Hiroshima mon amour, por Emmanuelle Riva e escrito por Marguerite Duras e dirigido por Alain Resnais: "As mulheres correm o risco de parir monstros mas isso continua. Os homens correm o risco de serem vítimas da esterilidade mas isso continua. A chuva dá medo. Chuvas de cinzas sobre as águas do Pacífico. As águas do Pacífico matam. Pescadores do Pacífico são mortos. A comida dá medo. Descarta-se a comida de uma cidade inteira. Enterra-se a comida de cidades inteiras... Uma cidade inteira se revolta, cidades inteiras se revoltam. Contra quem a cólera dessas cidades inteiras? A cólera das cidades inteiras, queiram elas ou não, contra a desigualdade posta em princípios por certas raças contra outras raças, contra a desigualdade posta em princípios por certas classes  contra outras classes". Só para situar o clima.

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