quinta-feira, 18 de junho de 2015

A meia garrafa de vinho, a fraternidade e Fernando Pessoa - ou Bernardo Soares.

Poucas vezes me atrevi ler Fernando Pessoa. Eu não tive formação para a leitura, para a literatura, e para a poesia então, nem se fala. Agora, administrando o meu tempo livre, faço as escolhas mais difíceis. Passei por um mundo de descobertas, sendo a principal, a de que a literatura é o ser humano em toda a sua complexidade. Poderia citar uma infinidade de autores, mas vou citar apenas os mais recentes. Philip Roth, Raduan Nassar, Gracialiano Ramos, Guimarães Rosa, Kafka... Na minha formação básica, era catequese e latim, exatamente nessa ordem.
Que maravilha. Livro do desassossego. Provocações de tirar o sossego.

Para entrar no mundo de Fernando Pessoa e por achar a compreensão da prosa mais fácil do que a poesia, resolvi começar por aquela, com o Livro do desassossego. Tão difícil quanto, ou mais ainda. E, seguramente, tão poético quanto. É uma espécie de autobiografia. São as suas confissões e que na voz de Bernardo Soares, o narrador, assim o descreve: "Invejo - mas não sei se invejo - aqueles de quem se pode escrever uma biografia, ou que podem escrever a própria. Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho a dizer" (12, pág.50). Mas como tem a dizer!.

Aos leitores, do blog, poucos evidentemente, me permito dar uma tarefa. Afinal de contas, conservo o espírito de professor. Procurem o verbete existencialismo. Se você não se satisfez com o encontrado, esqueça Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, ou mesmo Sócrates e leia as 559 paginas do Livro do desassossego, que assim você nunca mais terá dúvidas com relação ao termo. É uma explosão de sentimentos de uma vida...! E de acréscimo, você terá penetrado em todo um mundo de filosofia.
Fernando Pessoa em Lisboa. Trabalhava e morava na Baixa.


Mas a tarefa que hoje me propus é muito simples. Vou me limitar a transcrever o que o organizador do livro (Richard Zenith), colocou como sendo de número 24, à pagina 57. Veja a profundidade de um, digamos, mero devaneio. Tomar uma garrafa de vinho, apenas pela metade. Com isso também pretendo homenagear os meus amigos apreciadores dessa maravilhosa bebida. Mas vejamos a rara sensibilidade e, para além do existencialismo, também o humanismo.
Este é alentejano. Quando o encontrares pela metade, já sabes o que fazer!

"Hoje,como me oprimisse a sensação do corpo aquela angústia antiga que por vezes extravasa, não comi bem, nem bebi o costume, no restaurante, ou casa de pasto, em cuja sobreloja baseio a continuação da minha existência. E como, ao sair eu, o criado verificasse que a garrafa de vinho ficara em meio voltou-se para mim e disse: 'Até logo, sr. Soares, e desejo as melhoras'.

Ao toque de clarim desta frase simples a minha alma aliviou-se como se num céu de nuvens o vento de repente as afastasse. E então reconheci o que nunca claramente reconhecera, que nestes criados de café e de restaurante, nos barbeiros, nos moços de frete das esquinas, eu tenho uma simpatia espontânea, natural, que não posso orgulhar-me de receber dos que privam comigo em maior intimidade, impropriamente dita...

A fraternidade tem subtilezas.

Uns governam o mundo, outros são o mundo. Entre um milionário americano, um César ou Napoleão, ou Lenine, e o chefe socialista da aldeia - não há diferença de qualidade mas apenas de quantidade. Abaixo estamos nós, os amorfos, o dramaturgo atabalhoado William Shakespeare, o mestre-escola John Milton, o vadio Dante Alighieri, o moço de fretes que me fez ontem o recado, ou o barbeiro que me conta anedotas, o criado que acaba de me fazer a fraternidade de me desejar aquelas melhoras, por eu não ter bebido senão metade do vinho".
O meu próximo atrevimento. É nesse livro que está  O guardador de rebanhos.

Ah! Como é possível que exista gente que não goste de ler. Eu tenho para mim, que é porque nunca tentou começar.

4 comentários:

  1. Meu caro,

    É verdade que a fraternidade tem 'subtilezas'. Considero próximos aqueles para quem meus escritores são caros, ah, como podem desconhecer, como podem não amar (e odiar, naturalmente) Nassar, Rosa e Pessoa?
    Caí neste teu espaço ao acaso, como ocorre com os bons encontros com que nos brinda a vida. Abro o LD no fragmento 24, e separo o vinho que será devidamente degustado "pela metade", como há de ser.

    Não sei por quê, mas tua postagem me remeteu a esta passagem do Kundera:

    "Naquele café, ninguém jamais abrira um livro sobre a mesa. Para Tereza, o livro era o sinal de reconhecimento de uma irmandade secreta. De fato, contra o mundo de grosseria que a cercava, tinha uma só arma: os livros (...). (...) gostava de passear na rua com livros debaixo do braço. Eram para ela o que a elegante bengala era para um dândi do século passado. Eles a distinguiam das outras."

    Milan Kundera, in A Insustentável Leveza do Ser, p. 60-1 (ed. Companhia das Letras)

    Abraços etílicos.

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  2. Que lindo, Ana Cecília. Muito obrigado pelo seu belo e elegante comentário. Você deve ser uma pessoa maravilhosa.

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  3. "No meu cansaço perdido entre os gelos,/ E a cor do outono é um funeral de apelos / Pela estrada da minha dissonância...." (Fernando Pessoa - Passos da Cruz)

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