quarta-feira, 28 de março de 2018

O grande mentecapto dá uma aula de história do Brasil e de sociologia.

Cheguei ao livro O grande mentecapto - Relato das aventuras e desventuras de Viramundo e de suas inenarráveis peregrinações através da indicação de livros cobrados na realização dos vestibulares de nossas universidades. No caso específico, este é uma indicação da Unicamp. Um livro maravilhoso. Justifica plenamente a sua indicação. O grande mentecapto foi concebido na jovem cabeça de Fernando Sabino, já em 1946, quando ele tinha 23 anos. O nascimento se deu 33 anos depois, em 1979, em pelo regime militar.
Geraldo Viramundo, o grande mentecapto. Do andar debaixo. Magnífica charge de Edgar Vasques.

Neste post não vou fazer a resenha do livro. Já o fiz em outro. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2018/03/o-grande-mentecapto-fernando-sabino.html  Vou apenas recortar trechos do oitavo e último capítulo, que eu considero uma preciosidade. Uma aula de história do Brasil e de sociologia. Digo apenas que Geraldo Viramundo, ou o grande mentecapto é um brasileiro. Este Viramundo é das Minas Gerais, mas bem poderia ser o de qualquer outro estado brasileiro, especialmente, dos chamados estados mais 'desenvolvidos', onde se formaram grandes centros urbanos, que tiveram a maioria de sua população formada por viramundos retirantes, para dar espaços para o agronegócio. Estes se encontram nas 'cidades livres dos mendigos', ou centros de cidades livres dos mendigos, em eternas políticas de higienização, onde políticas públicas são absolutamente criminalizadas. Sempre aponto em falas, duas características fundamentais de nossa elite, ao longo de nosso processo de formação histórica: a eterna presença do espírito escravocrata e bandeirante. Mas a vez é de Fernando Sabino. Antes, uma pequena contextualização.

Viramundo nascera em Rio Acima, nas proximidades de Belo Horizonte, e depois de passar por Mariana, Ouro Preto, Barbacena, Juiz de Fora, São João del Rei, Tiradentes, Diamantina, Congonhas, Uberaba e tantas outras, termina por chegar em Belo Horizonte ou na grande cidade. Lá procura os lugares mais distantes e tranquilos, mas abrigo mesmo, só encontrará sob as marquises ou debaixo de viadutos da região central. Mas vamos à narrativa:

"Buscou então lugares públicos onde pudesse passar despercebido, misturando-se a outros párias como ele, e foi debaixo do viaduto que se viu finalmente integrado à sua raça e gente. Chegara ao mais baixo degrau na escala social, além do qual só restavam os do vício, da delinquência e do suicídio. E mergulhara numa negra fase de completa e absoluta indiferença a tudo que o cercava.

Por essa época era desencadeada pelo governo a segunda providência (a primeira fora a da retirada do meretrício do centro da cidade) de ordem administrativa entre as três a que me referi (a segunda era a criação da 'cidade livre dos mendigos' e a terceira, não vem ao caso - uma questão interna no manicômio). As autoridades, como já se viu, não haviam encontrado no extermínio a solução para o problema da mendicância. Ora, uma luminosa inspiração do governador Ladisbão, no momento em que tomava banho, fez com que Sua Excelência saltasse da banheira como Arquimedes a gritar Eureka! pelos corredores do palácio. Convocou seus auxiliares e assim mesmo, completamente nu, expôs-lhes o seu plano, sem que ninguém pusesse reparo na nudez governamental, adeptos que eram do que preconizava a fábula do rei nu. Consistia a ideia do Governador em fazer construir um local fora da cidade especialmente destinado aos mendigos, onde seriam concentrados e de onde não pudessem sair. O perigo de que tal providência acabasse esvaziando a cidade e criando outra mais populosa, tal o número de mendigos, era um risco a enfrentar. Daí a ideia de chamar o local a ser construído de Cidade Livre dos Mendigos, valendo a ambiguidade da designação entre significar que os mendigos naquele local eram livres, ou que a cidade ficaria livre deles.
Que livro!

E assim se fez. E a partir de então as batidas policiais pelas ruas se intensificaram. Pôde enfim a polícia planejar a grande operação de recolher os abrigados sob o viaduto, executada justamente na noite em que Viramundo ali foi ter.

Nem bem ele havia chegado, e se viu perdido no tumulto de mendigos e retirantes, compelidos por guardas armados, aos empurrões, a entrar nos grandes tintureiros que cercavam o local por todos os lados. Alguns protestavam, outros tentavam fugir e eram logo apanhados, as mulheres choravam, agarrando-se desesperadas aos filhos, como se os protegessem contra os centuriões de Herodes.

Ao contrário da maioria, o grande mentecapto se deixou levar sem resistência, como se tal procedimento fosse perfeitamente natural. Onde estava a chama que ardia em seu peito, de destemido amor à liberdade, que antigamente o levaria a morrer por ele? Eram cinzas - mas cinzas das quais em breve renasceria o Fênix de sua indomável rebeldia. Quando chegasse a sua hora.

Em meio aos outros, transportados como bichos naqueles estranhos veículos, foi levado até um descampado onde se erguiam compridos galpões de madeira e zinco, cercados de arame farpado. Depois do desembarque, que se fez também com empurrões, os guardas conduziram todos ao local de triagem, um imenso pátio iluminado por poderosos holofotes, onde se viram separados em grupos de homens, mulheres e crianças. Alguns que já ali se achavam tinham a cabeça raspada e vestiam todos uma espécie de macacão azul, o que tornava iguais uns aos outros como um rebanho de estranhos animais".

Bem, meninada - o sinal tocou e aula acabou. Apenas duas observações ainda: Se quiserem continuar lendo busquem as páginas, a partir da 206, que foi onde eu parei e deixo ainda uma dica. O governador de Minas não era o Dória, a remover a Cracolândia e nem o Temer. Este, em ato posterior, no Rio de Janeiro, não satisfeito com a ação da polícia, chamou até uma intervenção militar convocando para tais trabalhos o exército brasileiro. O mundo continua viramundando.

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