Genealogia da Moral é uma das mais ácidas, ou mais libertadoras, obras de Nietzsche. Paulo César de Souza, em curto mas preciso posfácio, nos fala de sua importância, na edição da Companhia das Letras. Este post se destina, de modo especial, para os participantes do grupo de leitura: Formação do Pensamento Ocidental. Vamos ao texto:
Um dos mais instigantes e provocadores livros de Nietzsche.
Um dos mais instigantes e provocadores livros de Nietzsche.
"Escrito originalmente para "complemento e clarificação de Além do bem e do mal", segundo constava no frontispício da primeira edição, Genealogia da moral tornou-se um dos mais influentes e controversos livros de Nietzsche. Foi redigido em julho e agosto de 1887 e publicado logo depois, às expensas do autor, como a maioria de suas obras.
Não é difícil perceber os motivos para a sua duradoura repercussão. Alguns dos temas e dos slogans mais candentes da filosofia nietzschiana comparecem neste livro: o ressentimento, a má consciência, a "besta loura", a oposição entre moral de senhores e moral de escravos, o mundo como hospício, etc. Além disso ele constitui, entre as obras da maturidade do autor, o seu maior esforço de reflexão contínua sobre um tema.
E esse tema não poderia ser mais relevante: trata-se de uma inquirição sobre como o ser humano chegou à condição atual, o que implica sondar os primórdios da cultura, os processos que envolveram a "hominização" e o posterior desenvolvimento das instituições humanas. Esta Genealogia recorre a conjecturas no âmbito da história e da antropologia. Ela é, em boa parte "antropologia especulativa", na expressão de Arthur Danto. Mas Nietzsche não se contenta em simplesmente diagnosticar. Ele pretende ser médico e salvador, e assume este papel com a paixão que lhe é peculiar. Assim se explica a ocasional estridência do tom, não obstante o brilho da prosa.
Ser humano é ser antes de tudo moral. Por isso o primeiro ensaio (ou "dissertação: Abhandlung, no original) trata da origem da noção de "bem" e "mal". Ele se liga diretamente a Além do bem e do mal, em particular à seção 260, em que Nietzsche diferencia entre a moral dos senhores e a dos escravos, e à seção 195, onde ele toca na inversão dos valores, a "revolta escrava na moral", que teria sido uma realização judaico-cristã. O segundo ensaio, sobre "culpa", "má consciência" e quejandos, desenvolve a percepção, já explicitada no $ 229 de ABM, segundo a qual todos os impulsos cruéis se relacionam profundamente às conquistas culturais: arte, direito, religião e organização política seriam impensáveis sem eles. Mais que isso, a própria consciência - sinônimo da "má consciência" - é produto do jogo dos instintos (processo de "interiorização do homem", II 16). Uma genealogia da moral implica, inevitavelmente, uma psicologia do conhecimento.
Conclusões dos dois primeiros ensaios são levadas para o terceiro, o mais longo e o mais ambicioso dos três. O sacerdote ascético dirige o ressentimento dos "escravos" para dentro de si mesmos; daí a ânsia do nada, o ideal ascético. O sacerdote encarnaria esta suprema contradição: um ser hostil à vida revelando-se como fator de preservação da vida. O ideal científico, apresentando-se como o rival do ideal ascético, na verdade procederia dele, por ainda acreditar na verdade, por não possuir uma "fé", uma "meta" própria. Neste terceiro ensaio nota-se algo mais que atrai neste livro: o gosto em lidar paradoxalmente com paradoxos, em discernir identificações paradoxais onde acreditávamos perceber oposições.
No conjunto, ele parte de pressupostos tácitos e muito problemáticos, como a distinção demasiado segura entre sadios e doentes, entre agressividade sadia e patológica, ou a identificação de dureza com saúde, de poder com estar bem. Nessa ótica, apenas os pobres, "escravos", seriam miseráveis, existencialmente falando; os poderosos "senhores", não sofreriam tanto por ser gente. E os sentimentos de uns e de outros teriam apenas o nome em comum: a compaixão dos nobres seria essencialmente diferente da compaixão dos plebeus.
Nietzsche joga com noções imensas, de contornos imprecisos: "dor", "doença", "decadência", "vontade", "verdade", "vida". Há ocasiões, por exemplo, em que "decadente" parece se referir apenas ao moderno "animal de rebanho", e em outros momentos se aplicaria ao próprio ser humano - de modo que o desenvolvimento da humanidade após o neolítico, digamos, já seria decadência.
Por trás do jogo percebemos a visão grandiosa e trágica de duas forças que se opõem através dos tempos, o duelo entre as forças da criação e da destruição, entre a vida e a morte. Algo que lembra a mitopoética freudiana de Eros em luta contra a Morte, expressa em Além do princípio do prazer e O mal-estar na civilização. De fato, pode-se dizer que Genealogia da moral é o mais "psicanalítico" dos textos de Nietzsche. Seria proveitoso um estudo comparativo sobre a Genealogia e o Mal-estar. Tal como o sacerdote, o psicanalista - num determinado sentido sucessor dele - é um especialista em sofrimento. Os dois livros se ocupam principalmente do sentimento de culpa, a tal ponto que os seus títulos são intercambiáveis. A semelhança é clara, por exemplo, na discussão dos três expedientes para lidar com o desprazer: a religião, o entorpecimento, o trabalho (romanticamente, Nietzsche ressalta neste o elemento desumanizador, maquinal; Freud, mais realista, dá ao trabalho um lugar eminente na "economia" da vida).
O ponto de contato fundamental, porém, está na visão do conflito entre instintos e cultura, dos mecanismos psicológicos envolvidos nessa trama, nesse drama. Entre eles, o da agressividade que se dirige para fora, que depois viria a se chamar "sadismo", e o daquela que se volta para dentro, agora denominada "masoquismo". (Na mesma época em que Nietzsche escrevia, um outro precursor de Freud, Machado de Assis, publicou o conto "A causa secreta", talvez o melhor estudo sobre o sadismo que há na literatura mundial.)
É impossível, num breve posfácio, discutir as inúmeras observações de uma obra dessa natureza, assim como o vasto edifício teórico que elas sustentam (supondo que este posfaciador tivesse a competência para fazê-lo). O problema - um dos problemas - com que se defronta qualquer leitor de Nietzsche é a enorme concentração dos argumentos, a riqueza de "saques" (para usar um coloquialismo equivalente ao inglês insight). O exemplo que ele dá do que entende por interpretação, no final do prólogo, pode ser aplicado ao próprio livro: de tão instigante e concentrado Genealogia da moral é como um aforismo que pede milhares de linhas de interpretação.
Por fim, o leitor não deve esquecer que este livro foi escrito no século XIX. Nesse meio tempo, muito se fez e muito se descobriu nas ciências que serviram de base para as conjecturas de Nietzsche. No que toca a uma genealogia dos sentimentos e atitudes morais, os desenvolvimentos mais fascinantes, nos dias de hoje, decorrem das ideias de um pensador que foi mal compreendido e subestimado por Nietzsche: Charles Darwin".
Deixo ainda o link de um belo texto de Marcelo Coelho, colunista da Folha de S.Paulo, do caderno Mais. https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs06129808.htm
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