quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Sociedade do cansaço. Byung-Chul Han. Sobre a sociedade do desempenho.

"O sujeito de desempenho está livre da instância externa de domínio que o obriga a trabalhar ou que poderia explorá-lo. É senhor e soberano de si mesmo. Assim não está submisso a ninguém ou está submisso apenas a si mesmo. É nisso que ele se distingue do sujeito de obediência. A queda da instância dominadora não leva  à liberdade. Ao contrário, faz com que liberdade e coação coincidam. Assim, o sujeito de desempenho se entrega à liberdade coercitiva ou à livre coerção de maximizar o desempenho.

O excesso de trabalho e desempenho agudiza-se numa auto-exploração. Essa é mais eficiente que uma exploração do outro, pois caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade. O explorador é ao mesmo tempo o explorador e o explorado. Agressor e vítima não podem mais ser distinguidos. Essa auto-referencialidade gera uma liberdade paradoxal que, em virtude das estruturas coercitivas que lhe são inerentes, se transforma em violência. Os adoecimentos psíquicos da sociedade de desempenho são precisamente as manifestações patológicas dessa liberdade paradoxal". (Trecho da obra). Esse trecho selecionado está transcrito na orelha da contracapa do livro e é uma síntese perfeita do teor do livro.
Sociedade do cansaço, pela Vozes. 5ª. Reimpressão. 2019.

Como integro grupos de trabalho de formação de professores, neles detectamos uma grande necessidade de debater os adoecimentos que são próprios da categoria, como o burnout, a depressão e, em casos extremos, o suicídio. Os trabalhos foram desenvolvidos e se formaram grupos para o acompanhamentos da situação nas escolas. Não acompanhei mais de perto esses trabalhos mas o tema me interessou e fui em busca de referências bibliográficas. Foi dessa forma que me deparei com o pequeno livrinho Sociedade do Cansaço, do coreano radicado na Alemanha, Byung-Chul Han.

Que livrinho denso. Ele aponta para uma total mudança na estrutura psicológica dos seres humanos sob a égide do capitalismo financeiro ou do neoliberalismo e das novas e desregulamentadas relações de trabalho que nele ocorreram e continuam ocorrendo. Um subtítulo cairia muito bem para o livrinho: Da sociedade disciplinar para a sociedade de desempenho. Isso, além de representar uma total mudança de paradigma, mudaria também as categorias de análise.

Começo apresentando o sumário. São sete capítulos e dois anexos, distribuídos ao longo de apenas 128 páginas, num formato de quase livro de bolso: 1. A violência neuronal; 2. Além da sociedade disciplinar; 3. O tédio profundo; 4. Vita Activa; 5. Pedagogia do ver; 6. O caso Bartleby. 7. Sociedade do cansaço. Os dois anexos tem os seguintes títulos: 1. Sociedade do esgotamento; 2. Tempo de celebração - a festa numa época sem celebração.

No primeiro capítulo o autor começa apresentando as doenças características de cada época e a forma como elas foram enfrentadas. Assim combatemos as doenças bacteriológicas e virais com a técnica da imunologia. O inimigo era detectado e combatido. Havia "uma divisão nítida entre o dentro e o fora, amigo e inimigo ou entre o próprio e o estranho". No século XXI surgiram novas doenças, as do campo neuronal, burnout e depressão e as da hiperatividade e similares. Os princípios da imunologia não as combatem. Por que não? Aí é que entram as mudanças de paradigma.

Assim, no capítulo 2, Além da sociedade disciplinar, são apresentadas as características dessa sociedade, tão estudada por Foucault. Dessa sociedade da repressão partiu-se, não mais da obediência externa, mas da obediência interna, ou da auto-obediência. Os sujeitos da obediência foram transformados em sujeitos de desempenho, de produção. Desaparece a referência de classe. O explorador é o próprio explorado e o agressor é a própria vítima. Tudo fruto de uma liberdade paradoxal.

No terceiro capítulo o tédio é mostrado como positividade. Ele é fuga para o excesso de atenção e de atividades. Hoje não há mais atenção profunda. Há a hiperatividade. Enquanto o tédio é uma direção para o novo, a hiperatividade é apenas uma aceleração. Não há espaço para o espanto filosófico.

Hannah Arendt e Agamben são as referências para  o quarto capítulo sobre a Vita Activa. Na sociedade de desempenho morre a vida contemplativa. Renuncia-se a ela, não para viver melhor, mas para funcionar melhor. Voltamos ao estágio pré darwiniano do animal, antes de seus movimentos evolutivos. Todos nos transformamos em homo sacer, um muçulmano. Essa era a designação dada ao homem antes de entrar para os campos de concentração, em estado de tensão e apavoramento total. Vivemos um nervosismo total decorrente da falta da vida contemplativa.

No quinto capítulo é afirmado o princípio de que a vida contemplativa é uma decorrência de um modo de ver, de um ver amplo, demorado e lento. Precisamos escapar da mera atividade, que leva para a estupidez mecânica como a do computador, que não tem vida contemplativa. O autor dialoga com Sartre (Náusea) e Heidegger (Angústia). O sexto capítulo toma como referência um personagem da literatura de Melville para diferenciar o cansaço na sociedade disciplinar da de desempenho.

Os dois anexos são maravilhosos. O primeiro mostra com muita nitidez as contraposições entre a sociedade do cansaço e de desempenho, da sociedade do "dever", para a sociedade do "poder hábil", do dever imposto a si mesmo. Faz uma bela análise da palavra sujeito, que dentro da sociedade da disciplina era um sujeito com relação a outro, a um ser externo que determinava. Agora ele é sujeito a si próprio, das autoimposições. Selecionei duas passagens. Vejamos: "A partir de um certo nível de produção, a auto exploração é essencialmente mais eficiente, muito mais produtiva que a exploração estranha, visto que caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade [...] O sujeito de desempenho explora a si mesmo, até  consumir-se completamente (burnout). Ele desenvolve nesse processo uma agressividade, que não raro se agudiza e desemboca num suicídio".

A outra talvez seja ainda mais explícita: "O sujeito de desempenho está livre da instância de domínio exterior que o obrigue ao trabalho e o explore. Está submetido apenas a si próprio. Mas a supressão da instância de domínio externa não elimina a estrutura de coação. Ela, antes, unifica liberdade e coação. O sujeito de desempenho acaba entregando-se à coação livre a fim de maximizar seu desempenho. Assim ele explora a si mesmo. Ele é o explorador e ao mesmo tempo o explorado, o algoz e a vítima, o senhor e o escravo. O sistema capitalista mudou o registro da exploração estranha para a exploração própria, a fim de acelerar o processo. O sujeito de desempenho, que se imagina como soberano de si mesmo, como homo liber, aparece como o homo sacer". Como estão vendo, o diálogo agora foi estabelecido com Agamben.

Mas o segundo anexo é o mais bonito. Tempo de celebração - a festa numa época sem celebração. Não tem como resenhar, sem mexer na beleza da totalidade do texto. O texto foi uma palesta do autor sobre o tema festa. Pela primeira vez no livro Marx entra nas análises, mas a retomada vai até Aristóteles e a sua exaltação aos livres: os poetas, os políticos e os filósofos. Não os políticos de hoje, que não passam de "capangas do sistema". Mas muito cuidado para não confundir entre festa e euforia. A euforia é o primeiro sintoma  do burnout, a euforia do "tudo poder".

Uma questão final, reflexão para além das análises do livro. Não sei se deixei claro que estamos diante de uma radical mudança de paradigmas no mundo do trabalho e de toda a estrutura psíquica do ser humano sob o mundo do capitalismo financeiro e da desregulamentação no mundo neoliberal, Uma desreferencialização total. E as mudanças na educação? O que significa a mudança de uma educação fundada no conhecimento e a sua passagem para o mundo das competências e habilidades?

O autor coreano desempenha suas atividades acadêmicas na Alemanha e é um profundo analista da sociedade atual. A tradução do presente livro é de Enio Paulo Giachini. Leitura obrigatória. A primeira edição alemã é de 2010. No Brasil foi lançado em 2017 e já está, em 2019, na sua 5ª reimpressão.


2 comentários:

  1. Excelente leitura. Parabéns professor pela indicação.

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    1. Muito obrigado amigo. ler, é acima de tudo compartilhar.
      http://www.blogdopedroeloi.com.br/2017/08/ler-compartilhar-claudia-de-arruda.html

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