Uma série de leituras sobre a América Latina me levou a Mário Vargas Llosa. mais precisamente, ao seu Conversas no catedral. Resolvi continuar com o autor, apesar de algumas ressalvas diante da posição política que ele adotou, especialmente a partir dos anos 1990, ano em que foi candidato a presidente da República de seu país, perdendo as eleições para Alberto Fujimori. Disputou a eleição abraçando as ideias do neoliberalismo. O livro com o qual me deparei agora foi A guerra do fim do mundo. É óbvio que também fui movido por toda a curiosidade que o tema de Canudos, de Antônio Conselheiro e dos primórdios da República brasileira, não tão republicana, envolvem.
A guerra do fim do mundo. Mário Vargas Llosa. Alfaguara. 2021. Tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman.Creio ser necessário dizer que já tinha lido Os sertões, de Euclides da Cunha, um livro fundamental para entender a história desse nosso tão sofrido Brasil. A principal inspiração de Vargas Llosa para escrever A guerra do fim do mundo, foi Euclides da Cunha. À árida descrição jornalística acrescentou a força e o poder da escrita proporcionada pelo romance. A primeira edição do livro data do ano de 1980, publicado após exaustivas pesquisas em bibliotecas e nos sertões da Bahia e do Sergipe, palcos desses absurdos e inexplicáveis conflitos, ao menos sob um olhar oficial de nossa história. Vejamos antes a resenha de Os sertões. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/02/os-sertoes-euclides-da-cunha.html
O Livro de Vargas Llosa é longo. Muitos personagens, dos dois lados, foram inseridos. São ao todo 606 páginas, divididas em quatro partes, sem títulos, antecedidos de um prólogo, da dedicatória a Euclides da Cunha e Nélida Piñon e de uma simbólica frase em epígrafe. No prólogo nos revela que o livro foi escrito entre os anos de 1977 e o final de 1980. A epígrafe é a seguinte: "O antiCristo nasceu - Para o Brasil governar - Mas aí está o Conselheiro - Para dele nos livrar. Lembrando que o AntiCristo é a República. Deixo ainda alguns dados de contextualização. Euclides da Cunha nasceu em 1866 e morreu em 1909. Os sertões foi publicado em 1902 e a Guerra de Canudos ocorreu entre novembro de 1896 e outubro de 1897, no governo de Prudente de Morais, após quatro expedições.
A primeira parte de A guerra do fim do mundo tem sete capítulos. Neles são introduzidos os principais personagens, como o Conselheiro, Maria Quadrado, o fantástico anarquista Galileo Gall, João Grande, entre outros. Vai até a derrota da primeira expedição. A segunda parte é formada por três pequenos capítulos, com destaque para a entrada em cena dos jornalistas, em especial para um jornalista míope, que estará presente até o final do livro.
Da terceira parte eu tomo as questões que considero fundamentais no livro, como as causas do conflito, assim expressas por Beatinho, o segundo personagem em importância, logo após o Conselheiro, ao impor a João Grande o seguinte juramento para pertencer ao grupo: " -Juro que nunca fui republicano, que não aceito a expulsão do imperador, nem a sua substituição pelo AntiCristo - recitou Beatinho, - Que não aceito o casamento civil, a separação entre a Igreja e o Estado, nem o sistema métrico decimal. Que não responderei às perguntas do censo. Que nunca mais vou roubar nem fumar nem me embriagar nem apostar nem fornicar por vício. E darei a minha vida pela religião e pelo Bom Jesus. - Vou decorar, Beatinho - balbuciou João Grande (Página 228).
Pouco adiante temos uma fala de Moreira César o comandante militar derrotado numa das expedições contra Canudos sobre as obrigações da República: "...A República tem a obrigação de se defender daqueles que, por cobiça, fanatismo, ignorância ou astúcia atentam contra ela e servem aos apetites de uma causa retrógrada, interessada apenas em manter o Brasil no atraso para melhor explorá-lo". Logo após essa afirmação ele interroga aos jornalistas presentes se esta mensagem chegará aos moradores da vila, ao que eles respondem que "tais palavras, proferidas em voz de trovão pelo pregoeiro, passam por esses seres silenciosos, atrás das sentinelas, como mero ruído" (Página 246). Eis as razões das ofensivas republicanas.
Também está expressamente manifesto um mal que assolou e continua assolando o país, a auto convicção da missão salvacionista do país por parte do poder armado do país, o poder militar. Vejamos um diálogo do coronel Moreira César com os chefes políticos da Bahia, que traduz essa posição:
"Há uma rebelião de pessoas que não aceitam a República e que derrotaram duas expedições militares - disse de repente o coronel, sem alterar sua voz firme, seca, impessoal. - Objetivamente, essas pessoas são instrumentos daqueles que, como o senhor, aceitaram a República apenas para traí-la melhor, apoderar-se dela e, trocando alguns nomes, manter o sistema tradicional. E estavam conseguindo, é verdade. Agora há um presidente civil, um regime de partidos que divide e paralisa o país, um Parlamento onde qualquer esforço para mudar as coisas pode ser atrasado e desvirtuado pelas artimanhas em que vocês são hábeis. Já cantavam vitória, não é verdade? Falara-se até em reduzir à metade os efetivos do Exército, não é mesmo? Que vitória!. Pois bem, estão muito enganados. O Brasil não vai continuar sendo o feudo que vocês exploram há séculos. Para isto existe o exército. Para impor a unidade nacional, trazer o progresso, estabelecer a igualdade entre os brasileiros e construir um país moderno e forte..." (Página 241).
Dá para perceber que a questão era extremamente complexa, como mostra esta conversa entre os jornalistas que cobriam a guerra, entre eles, o jornalista míope, como Vargas Llosa se refere a Euclides da Cunha: "- Nós não entendemos o que está acontecendo em Canudos - responde ele. - É mais complicado do que eu pensava. - Bem, eu nunca acreditei que os emissários de Sua Majestade britânica tenham estado no sertão, se está falando disso - grunhe o jornalista mais velho. - Mas também não posso acreditar na conversa do padre de que só existe amor a Deus atrás de tudo isso. Há fuzis demais, estragos demais, uma tática bem concebida demais para que tudo seja obra de uns sebastianistas analfabetos" (Página 284).
A quarta parte, com seis capítulos, é a mais longa e de uma leitura um pouco mais cansativa. Tudo passa pelas batalhas, pelas táticas e estratégias dos povos que se juntam em torno do Conselheiro e das reações da República. O livro termina como efetivamente acabou Canudos. Com o dinamitar dos escombros, escombros do templo e dos escombros humanos, em meio a muitas vinganças e absurdos até para tempos de guerra. Creio que ainda é importante dizer que neste período histórico houve três grandes processos migratórios, conforme nos conta o livro: Para o norte, onde se desenvolvia o ciclo da borracha, para o sudeste, com a lavoura cafeeira e para o abrigo religioso de Canudos.
Deixo ainda as observações da orelha da contracapa: "Esse é um dos livros mais importantes de Mário Vargas Llosa, um épico latino-americano em que o autor de Travessuras da menina má reconta a Guerra de Canudos - conflito que está entre os mais importantes da história do Brasil -, com toda a genialidade que o consagrou como um dos grandes autores da íngua espanhola da atualidade.
A pesquisa para o livro demandou um esforço concentrado. Impressionado com a leitura de Os sertões, de Euclides da Cunha, Vargas Llosa se embrenhou em arquivos históricos do Rio de Janeiro e em Salvador, viajou pelo sertão da Bahia e de Sergipe e criou uma obra que, hoje, é reconhecida como seu tour de force. "Peregrinei por todas as vilas onde, segundo a lenda, o Conselheiro pregou", escreve ele, "e nelas ouvi os moradores discutindo ardorosamente sobre Canudos, como se os canhões ainda trovejassem no reduto rebelde e o Apocalipse pudesse acontecer a qualquer momento naqueles desertos salpicados de árvores sem folhas, cheias de espinhos".
Enfim, um grande livro. Monumental memo. Só me fica uma dúvida. Como um autor de tamanha envergadura,, que vivenciou tamanhas injustiças sociais, que tão vivamente sentiu as consequências da ausência do Estado, através de políticas públicas, conseguiu ser candidato a presidente da República em seu país pela banda dos pensadores neoliberais. Simplesmente, para dizer o mínimo, incompreensível.
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