sexta-feira, 14 de abril de 2023

Um enigma chamado Brasil. 29 intérpretes e um país. 6. Nina Rodrigues.

Continuo hoje mais um trabalho referente aos intérpretes do Brasil. Desta vez o livro referência é Um enigma chamado Brasil - 29 intérpretes e um país. O livro é organizado por André Botelho e Lilia Moritz Schwarcz. É um lançamento da Companhia das Letras do ano de 2009. A edição que usarei é de 2013. Quem são os personagem trabalhados? Os organizadores respondem: "Os teóricos do racismo científico e seus críticos na Primeira República; modernistas de 1920 e ensaístas clássicos dos anos 1930; a geração pioneira dos cientistas sociais profissionais e seus primeiros discípulos". A abordagem sempre será feita por algum especialista. O livro tem uma frase em epígrafe/advertência. O Brasil não é para principiantes, de Antônio Carlos Jobim.

Um enigma chamado Brasil. 29 intérpretes e um país.

O sexto trabalho do livro retrata o médico maranhense Nina Rodrigues, que nasceu na cidade de Vargem Grande em 1862, e morreu em Paris, em 1906. Nina Rodrigues formou-se na primeira escola de medicina do Brasil, a Faculdade de Medicina da Bahia. A resenha é de autoria de Lilia Moritz Schwarcz, também uma das organizadoras do livro. O seu texto tem um título um tanto sombrio, o que faz antever um autor com posições bastante complicadas - Um radical do pessimismo.

Pouco conhecia do médico maranhense. O conhecia por citações, que o implicavam com o racismo e pela obra de Jorge Amado, Tenda dos milagres, pelos embates que ele travava com o bedel da escola de medicina da Bahia, Pedro Archanjo, um dos mais belos personagens já criados pela literatura brasileira. Confesso que é pela primeira vez que vejo algo mais sistematizado sobre o autor. É um personagem de seu tempo, pelo qual podemos conhecer todo o pensamento de uma parte da elite brasileira de seu tempo. Observem as datas: nascimento em 1862 e morte em 1906. Libertação dos escravos, proclamação da República e República Velha, os fatos mais marcantes de seu tempo. Qual seria o destino dos ex escravizados, recém libertos? Quem, afinal de contas eles eram?

Como não é tão fácil fazer uma abordagem desse autor, vou recorrer bastante à autoridade de Lilia Schwarcz, para a apresentação do cerne de seu pensamento. Começamos pelos dois primeiros parágrafos de seu texto:

"Nina  Rodrigues legou uma imagem paradoxal. A despeito de ser frequentemente destacado como o primeiro antropólogo brasileiro a fazer um levantamento dos povos africanos residentes no país, ele é também lembrado como aquele que defendeu a existência de diferenças ontológicas entre as raças aqui residentes, e em especial por considerar a mestiçagem como um sinal de degenerescência.

As teses deste médico maranhense, professor da escola de medicina da Bahia, mesmo em sua época, foram entendidas como radicais e de difícil doma. De um lado, é evidente a adoção das teorias do darwinismo social e da antropologia criminal. De outro, é igualmente clara sua tentativa de classificar as diferenças entre os grupos; temas e propostas hoje, de certa maneira, datados. No entanto, a análise cuidadosa de certas obras deste cientista revelará impasses ainda presentes, seja no debate acerca das potencialidades dos grupos e etnias, seja na questão da diferença e em sua defesa absoluta. Nina Rodrigues foi, mesmo, um grande leitor e tradutor de seu próprio tempo; mas não só".

Schwarcz apresenta o pensamento de Nina Rodrigues, por suas obras, num subtítulo que representa também uma síntese: Mestiçagem e degenerescência. Vejamos: "Parte da "maldição" que recaiu sobre Nina Rodrigues advém de seus livros e estudos sobre criminalidade, que se concentraram no final do século XIX e início do XX. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil (1894), Negros criminosos (1895), O regicida Marcelino Bispo (1899), Mestiçagem, degenerescência e crime (1899), entre outros ensaios, representam um novo momento na carreira desse médico que vê na criminalidade mestiça uma particularidade nacional".

Nina Rodrigues vê erros no Iluminismo, quando este afirma a liberdade e a igualdade como princípios universais, num visível embate com as ciências médicas que não apontavam, segundo ele, para os mesmos princípios. Isso implicava também num conflito entre os advogados e os médicos. Caberia, ainda segundo ele, aos médicos determinarem os fundamentos do Direito Penal e não, como estava sendo, aos juristas. O pensamento de Nina Rodrigues estava dominado pelos princípios de Cesare Lombroso e a predeterminação ou propensão inata para o crime, por parte de raças, tidas por ele como inferiores. Vejam uma afirmação sua: "Nenhum homem de bom-senso, bem esclarecido sobre os fatos, poderá crer que o negro valha tanto quanto o branco". Vejamos uma outra parte do texto: 

"Tomando a degenerescência como consequência de uma desigualdade antropológica e sociológica, Rodrigues passa a analisar casos que comprovam sua teoria. O debate se centra, então, na dicotomia entre universalismo e diferença, devidamente iluminada pela 'pesquisa de campo'. Aí estão os exemplos de parricídio, embriaguez, pederastia e vícios de toda sorte. Aí desfilariam, também, os casos de 'criminosos natos', matéria fundamental da antropologia de Cesare Lombroso".

Outro livro de Nina Rodrigues é Os africanos no Brasil. O livro já estava praticamente pronto em 1906, que, como podem observar, corresponde ao ano da morte de seu autor. Um discípulo seu, Oscar Freire, recebeu o encargo de publicá-lo. Mas ele também morre (1923) e o livro só aparece para o público em 1932. Ele retrata o período em que foi escrito, 1890 a 1905. Vejamos um trecho em que Schwarcz se refere ao livro: "... Nina é o primeiro a esclarecer seus objetivos: o estudo das procedências, sublevações, sistemas totêmicos e religiosos africanos, visando compreender a 'dimensão atual do problema'. O objetivo nunca foi exatamente 'preservar'; o que importava era 'determinar' o grau de inferioridade para então dimensionar a morosidade da civilização. Não por acaso, o livro de Nina traz na abertura uma citação de Sílvio Romero, contendor nas ideias, mas colega nas preocupações": ...'nós que temos o material em casa, que temos a África em nossas cozinhas, como a América em nossas selvas, e a Europa em nossos salões, nada havemos produzido! É uma desgraça"'. Lembrando que Sílvio Romero foi um dos defensores da teoria do "branqueamento", uma forma de miscigenação, portanto.

Sobre o polêmico autor, ainda, os dois parágrafos finais de Schwarcz: "Guardadas todas as especificidades contextuais, a obra de Nina Rodrigues continua atual, a partir do paradoxo que, mesmo sem pretender, evidencia: clamar por uma diferença que não é plural e relacional, mas racial, e que abole o suposto da universalidade humana (destaque meu). E no caso de Nina Rodrigues seu contexto lhe era até favorável. Afinal, o médico não poderia estar a par dos usos contemporâneos do conceito de cultura na Alemanha, que, como diz Norbert Elias, era uma região relativamente pouco conhecida (em contraste com as potências imperiais da Europa Ocidental). Também desconhecia a noção de relatividade cultural, cujo grande bastião seria a antropologia culturalista, que tomava força apenas nesse momento. Ao contrário, nosso autor apoiava-se em bibliografia de ponta e acima de suspeitas. O certo é que seus conceitos de raça não permitem migrar rapidamente para a ideia de cultura: sua base teórica é a biologia determinista e a constante demonstração da hierarquia social.

Nina Rodrigues foi vencido pelo tempo e seus ideais acabaram devidamente datados. Resta saber, porém, o que é datado. O pressuposto da desigualdade com certeza sim; já a noção de raça parece estar de volta. Além do mais, é possível dizer que vários de seus conceitos científicos ressurgem, hoje em dia, no honroso lugar da retórica do senso comum. Tudo faz lembrar o conhecido conto de Machado de Assis - O alienista, de 1882 -, em que Simão Bacamarte interna vários membros da sua cidade para depois liberar a todos e estudar, apenas, a si próprio. O conto de Machado de Assis é anterior ao livro de Nina Rodrigues. E por isso, mesmo que queiramos, não é possível tratá-lo como um exercício de premeditação. No entanto, como diz Roland Barthes, a literatura sempre sabe 'algo das coisas'. Fica evidente como a ciência era, já na época, uma drágea de difícil digestão".

Volto a Jorge Amado, à delícia de seu personagem Pedro Archanjo e a sua máxima "... há de nascer, de crescer e de se misturar" e "... quanto mais misturado, melhor". E ao certeiro título de Lilia Schwarcz nesse seu trabalho: um radical do pessimismo. Quase ao mesmo tempo da publicação  de Os africanos no Brasil (1932) surgiram os nossos intérpretes de que a mistura de raças não era impeditivo para o nosso desenvolvimento, embora, por interesses de dominação, o racismo ainda seja uma força tão persistente em nossa sociedade.

Deixo também o trabalho anterior dessa série, sobre Sílvio Romero.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/04/um-enigma-chamado-brasil-29-interpretes_9.html

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