quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Estórias Abensonhadas. Mia Couto.

"... Nós temos olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para ver os sonhos. O que acontece, meu filho, é que quase todos estão cegos, deixaram de ver esses outros que nos visitam. Os outros? Sim, esses que nos acenam da outra margem. E assim lhes causamos uma total tristeza"...  Nas águas do tempo, pág. 13.
O belo livro de contos de Mia Couto. A beleza do livro começa pelo título.

"... Desde então, a menina passou a conduzir o cego. Fazia-o com discrição e silêncios. Era como se Estrelinho, por segunda vez, perdesse a visão. Porque a miúda não tinha nenhuma sabedoria de inventar. Ela descrevia os tintins da paisagem, com senso e realidade. Aquele mundo a que o cego se habituara agora se desiluminava. Estrelinho perdia os brilhos da fantasia. Deixou de comer, deixou de pedir, deixou de queixar". (...) Isso tudo, Estrelinho? Isso tudo existe aonde? E o cego em decisão de passo de estrada, lhe respondeu: - Venha, eu vou-lhe mostrar o caminho. O cego Estrelinho, pág. 24.

"- Se é para namorar o melhor é a noite. Os que já namoraram diverso e variado sabem o quentinho do escuro, leito do leito. De noite os seres, mudam seu valor. O dia mostra os defeitos do mundo: rugas, poeiras, vincos, tudo na luz se vê. À noite se olha mais, se vê menos. Cada ser se revela apenas pela luz que dele emana. E ela, nessa noite, produzia suave clareza que nem lua". O cachimbo de Felizberto, pág. 49.

O que é afinal, um conto?  Vamos ao Aurélio: "narrativa pouco extensa, concisa, e que contém unidade dramática, concentrando-se a ação num único ponto de interesse". Esta definição não me satisfez. Busco a Wikipedia.  Ela me diz que o contista, hoje em dia, se encontra meio perdido, em função da valorização do romance. Ela enquadra os poetas na mesma situação. Volto ao Aurélio: "Esta história mítica, cheia de símbolos, faz parte da seleção feita por Paulo Ronai e Aurélio Buarque de Holanda, das lendas, fábulas, diálogos e apólogos, parábolas, paródias, textos que podem ser considerados a origem do conto universal ". Esta ilustração me satisfez.  Aurélio usa esta citação, retirada de um artigo de jornal, para caracterizar o que é o conto.
O moçambicano Mia Couto, o maior contista da língua portuguesa, dos tempos presentes

 Os contos de Mia Couto são exatamente isso: são lendas, fábulas, diálogos e apólogos, parábolas paródias e muito mais. São poesia escrita em prosa. Cada conto é uma provocação, ou melhor, cada frase é uma provocação. Não existe a descrição, o senso da realidade. O que existe é o sonho, a imaginação e, acima de tudo a provocação para a reflexão. É arte e criação pura. "Do ponto de vista da álgebra, a ternura é um absurdo". É difícil de ler? Sim. Assim como também é difícil ler a poesia. Nós gostamos de ler linearmente e não complexamente. Não gostamos de pautar entrelinhas entre as linhas. Fechamos os espaços da criação e da imaginação. Por isso somos tão previsíveis. Por isso perdemos a genialidade.

De propósito, eu comecei com alguns fragmentos do livro de contos Estórias abensonhadas, do escritor moçambicano, Mia Couto. Espero que vocês tenham sentido a beleza e o encanto diante deles, que eu senti. Mia Couto é o maior gênio do conto, em língua portuguesa, nos tempos atuais. Vejamos um trechinho da apresentação do livro, na orelha da capa: "Aqui fantasia e realidade se entrelaçam e se impõem uma à outra, como num reflexo do próprio continente africano.  O rio que atravessa essas veredas é a prosa do autor. Frequentemente comparada à de Guimarães Rosa e Gabriel Garcia Marquez, sua escrita transforma o falar das ruas em poesia, e carrega de magia a dura realidade de seu país. As palavras se combinam em inúmeros significados, e no menor dos enredos cabe tanto o lirismo quanto a guerra". E muito mais, eu acrescentaria.

Mas, vamos a mais algumas preciosidades: "Escrevo como Deus: direito mas sem pauta. Quem me ler que desentorte as palavras. Alinhada só a morte. O resto tem as duas margens da dúvida. Como eu, feito de raças cruzadas. meu pai português, cabelos e olhos loiros. Minha mãe era negra, retintinha. Nasci, assim, com pouco tom na pele, muita cor na alma. Falo de Deus com respeito mas sem crença. Em menino, não entrei em igreja nem sequer para banho de batismo. Culpa de meu pai. Reza, dizia ele, só serve para estragar calças. Em sua suspeita a igreja devia ser lugar pouco saudável. - Pois mal se entra nela, dois passos dados  e já se cai de joelhos!?"  O padre surdo, pág. 131.

Por fim um canto à vida: "Mais vale é nenhum pássaro na mão. Mais vale é ver a passarada desfraldando asas na paisagem. O céu, afinal, só foi inventado depois das aves. E sorria. - Não esqueça filho: a vida é um perfume." A praça dos deuses, pág.152.

E se a gente só lesse literatura dessa qualidade, seríamos todos gênios? Vale muito a pena ler Mia Couto. Termino com uma frase sobre a curiosidade no mundo, que não é de Mia Couto. Está no livro Americanah, de Chimamda Ngozi Adichie e diz assim: "Kosi (esposa de Obinze) não tinha os mesmos interesses que ele (Obinze) - era uma pessoa literal que não lia, era satisfeita com o mundo, e não curiosa em relação a ele".

2 comentários:

  1. Tenho uma admiração ou será fascinação por Mia Couto, por tudo que escreve, com sentimento único...! Gostei imensamente da sua postagem, uma delicadeza nas escritas proporcionando um prazer imensurável de ler... Agradável surpresa em pesquisa ter esbarrado no seu blog, já o add em favoritos. Tenha um maravilhoso final de tarde, para que possas então... qdo a noite se desfolhar... ver os seus sonhos... Até +

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  2. Muito obrigado pelo seu elogioso comentário. Como hoje eu tenho como profissão ser um administrador de tempo livre eu posso me dar a esse luxo da leitura. Seguramente, Mia Couto é dos melhores. Coincidência, estou lendo e termino amanhã e já vou postar - Um rio chamado tempo - uma casa chamada terra, da Companhia das letras. Agradeço imensamente o seu elogio.

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