No início deste ano de 2018, fui procurado pelo professor Sebastião para organizarmos um grupo de leituras. Ampliamos a discussão. Depois de passar por vários formatos e temas, optou-se pelo tema da formação do pensamento ocidental. O formato do curso passaria por leitura, discussão do lido e um relatório inconcluso.
Os livros lidos foram: MARX & ENGELS. A ideologia Alemã;
PLATÃO. O Banquete e Apologia de Sócrates;
Santo Agostinho. As Confissões;
Descartes. O Discurso do Método;
Nietzsche. O nascimento da tragédia e Genealogia da moral;
Jair Pereira dos Santos. O que é pós-moderno.
Inúmeros textos e autores fizeram as pontes para dar o sequenciamento ou mostrar as rupturas neste processo de construção. Foi um belíssimo processo de construção coletiva. O presente texto é um desses relatórios.
O professor Sebastião sempre divulgando, organizando e participando de grupos de leitura.
O professor Sebastião sempre divulgando, organizando e participando de grupos de leitura.
Leitura como prática de resistência e de humanização.
Sebastião Donizeti Santarosa.
Scherazade, a bela contadora de histórias das “Mil e Uma Noites”,
vence a morte indo ao encontro daquele que seria seu carrasco, contando-lhe
histórias. No encantamento das narrativas enredadas, amplia-lhe os limites da
miopia e dos caprichos individuais construídos com o ressentimento da traição
conjugal e do amor ferido. Nas histórias contadas, no deslocamento do espaço e
do tempo, renasce o rei amoroso que se fizera carrasco, aberto agora para o
vislumbre de novos horizontes de vida.
O renascimento encoraja para a adolescência:
“A vida é
tão bela que chega a dar medo.
Não o medo que paralisa e gela,
estátua súbita,
mas esse medo fascinante e fremente de curiosidade que faz
o jovem felino seguir para frente farejando o vento
ao sair, a primeira vez, da gruta.
Não o medo que paralisa e gela,
estátua súbita,
mas esse medo fascinante e fremente de curiosidade que faz
o jovem felino seguir para frente farejando o vento
ao sair, a primeira vez, da gruta.
Medo que ofusca: luz!
Cumplicemente,
as folhas contam-te um segredo
velho como o mundo:
as folhas contam-te um segredo
velho como o mundo:
Adolescente, olha! A vida é nova...
A vida é nova e anda nua
- vestida apenas com o teu desejo!
A vida é nova e anda nua
- vestida apenas com o teu desejo!
Encontros de formação como os que vivenciamos aqui no
município de Campo Largo, são práticas de enfrentamento da morte, de renascimento
e de resgate da adolescência. Nesses encontros, aquele friozinho na barriga há
muito não sentido volta a provocar cócegas de desassossego.
Por certo, as longas jornadas de trabalho rotineiro e as
exigências do cotidiano corrido nos tolhem o tempo de estudo e de reflexão,
apequenam nossas almas e castram nossos desejos. Como educadores, com os olhos
embotados de giz e de lágrimas, corremos permanentemente o risco de desprezar a
criatividade da vida e de nos tornar coadjuvantes de um itinerário de morte. A
permanente expectativa pelo final de semana, pelo feriado, pelas férias e,
finalmente, pela aposentadoria que temos vivido é um abominável exercício de
mortificação. Se há uma inteligência safada e perversa nos impõe essa condição,
é preciso ir ao encontro dela, mesmo que esteja entranhada em nosso ser e enfrentá-la
cara a cara como faz Sherazade, fazendo emergir nossas tantas e ricas
histórias, contidas e não-contadas, vislumbrando outros horizontes, como o
jovem felino que segue em frente ao sair pela primeira vez da gruta, farejando
o vento.
Farejar o vento, a vida só é possível no movimento, sempre a
se fazer, nunca pronta e acabada. A condição da vida é a liberdade para ser no
fluxo contínuo do vir-a-ser. E isso, justamente, é o mais bonito:
Educamos para vida. Educamos para liberdade. E é possível ser
educador aprender a ser livre, sem estudar, pensar, refletir, imaginar, criar?
Ser educador é, acima de tudo, travar uma luta permanente pela libertação:
“Como poucos, eu conheci as lutas e as
tempestades. Como poucos, eu amei a palavra liberdade e por ela briguei”.
A guerra é a mãe de todas as
coisas, nos ensinava Heráclito; não está morto quem peleia, dizia um certo
capitão Rodrigo. E, em tempo de neoliberalismo exacerbado, de gestão e de
descarte de indesejáveis, quando forças econômicas tentam, com ferocidade,
reduzir a alma humana aos princípios de uma consciência empresarial, subjugando
desejos e sonhos à lógica financeira de lucratividade ilimitada, objetivando a humana
dialética do vir-a- ser à racionalidade, ao controle e à previsibilidade do
mercado, a arma dos educadores para não morrer é ter coragem para encontrar
espaços de subversão e de rebeldia: espaços de formação de desconformação, de
formação para liberdade.
Somos, de fato, livres.
Temos a liberdade para escolher princípios éticos na relação que estabelecemos
com o outro, com nós mesmos e com o mundo. A consciência que temos de nós
mesmos e de nossa própria aldeia se constrói nas relações que estabelecemos com
nossa própria aldeia e com os olhares dos outros sobre nós mesmos e sobre nossa
própria aldeia. Nossa consciência não é consciência de um homem só, genuína
como a divina concedida a um Adão no Paraíso. Nossa consciência é construída na
história, na ação laboral de transformação da natureza, nas formas de interação
pessoal, no trabalho de construção ideológica e cultural. Não nos formamos,
portanto, sozinhos. É impossível se humanizar na solidão, salvo aquela necessária
para o embelezamento do eu para o encontro com o outro.
A formação, enquanto olhar e
reflexão sobre o mundo, sobre nós mesmos e sobre o outro, exige,
necessariamente, a presença do outro. Seja a relação de alteridade, ou seja,
com esse outro, uma relação de mera conformação de nossas perspectivas com a
perspectiva do outro, seja ela uma relação de polêmica e de confronto, seja ela
uma relação de absoluta negação do outro, tal como a Meduza, que congela e mata
quando os olhares se cruzam.
O limite de nosso olhar
sobre o mundo é o olhar do outro. E é pelo olhar do outro que nos constituímos.
Nosso olhar está sempre direcionado para frente, para o mundo e para o outro,
não somos capazes de reconhecer nossa própria face, não temos a visão cabal de
nosso próprio eu. É o outro, de sua perspectiva, que diz de nós o que somos. Se
sou bonito ou feio, bom ou ruim, certo ou errado, é o outro que é capaz de
dizer.
E no jogo de olhares, é para
apreciação dos olhos do outro que construo em mim a minha própria imagem. Como
um Narciso que deseja ver sua própria beleza refletindo na fonte, é, acima
de tudo, a minha beleza que quer ver brilhando nos olhos do outro. É o outro,
por seu olhar, que me admira ou me despreza, que me nomina, que me julga, que
diz o lugar que devo ocupar no mundo.
O outro, entretanto, são
muitos outros, assim como eu sou o outro dos outros com os quais encontro, construídos
em muitos outros encontros, com diferentes faces e olhares, que me constroem e
me reconstroem de diferentes postos de observação, de acordo com seus
caprichos, com seus desejos, com suas miopias. É no encontro com o outro em que
me faço e me refaço, em que me incluo, produtivamente, na dinâmica da
criatividade permanente da vida.
Narciso morre ao encantar-se
com a própria imagem, fixa nas águas da fonte. Recusa o outro, prefere, isoladamente,
mergulhar para dentro de si mesmo. Narciso queria ver o reflexo de sua beleza
da fonte brilhando, por ricochete, nos próprios olhos. Lógica neoliberal de
individualização, de apequenamento e de redução de horizontes existenciais. Lógica
do afogamento da alma. No reverso narcísico, Mário de Andrade se dizia ser
trezentos. Fernando Pessoa era Álvaro de Campos, Alberto Caieiro, Ricardo Reis
e muitos outros. E o Mário ele mesmo, quem era? E o Pessoa em pessoa, quem era?
“Eu não tinha este rosto de
hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?”
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?”
O nascer, o viver e o
morrer. As faces se perdem, se encontram, se refazem.
Em nossos encontros, no
microuniverso de educadores de Campo Largo, trocamos olhares, nos configuramos
e nos reconfiguramos nas relações estabelecidas entre o eu-para-mim, o
eu-para-o-outro e o outro-para-mim. Encontros densos de experiências ecoam
martírios e magias vivenciados em jornadas escolares. Histórias contidas agora
são contadas. Olhares que se encontram, se atravessam, desconfiguram e
reconfiguram novas paisagens, novos horizontes, novas faces, novas
possibilidades de novas escolas. As faces se transmudam, mas não se perdem.
Nesses encontros, os limites
dos espaços locais e do tempo presente transcendem-se, levando-nos a
perspectivas visuais de amplitude global e de vozes que ecoam na grande
temporalidade, em que passado e presente formam um amálgama e descortinam o
devenir. Não estamos sozinhos, definitivamente. Outras tantas almas,
inconformadas e inquietas, de outros tempos e lugares, em suas vozes
registradas pela escrita, de seus lugares, interpelam-nos, provocando-nos a
formular novos olhares e novas respostas a seus olhares e a nossos próprios
olhares, reconfigurando, nessa grande temporalidade, o eu-para-mim, o
eu-para-o-outro, o-outro-para-mim.
Karl Marx, Platão, Santo
Agostinho e Nietszche, traduzidos para o Português, atravessados por outros
autores que disseram sobre suas obras, falados pela boca do Dirceu, do Nelson, do
Acleilton, do Pedro Elói, da Hecilda, da Kika, da Reny, do Vítor, da Andreia,
da Dirceia, do Dalton, da Julia, do Avanir, do Lino, Eliana, Boanerges, Simone e
de todos os demais companheiros, compreendidos pelas nossas próprias palavras,
renascem, agora junto com cada um de nós, nesse movimento permanente do vir a
ser, em que o eu emerge, dialeticamente, na sombra e na luz de um grande nós.
Em tempos de olhares de Meduza, que congelam e petrificam,
de escola sem partido, de privatização e de cerceamento do pensamento, de
redução do homem a peça na engrenagem de produção e de consumo do mercado,
precisamos, sem dúvidas, envidar todos os nossos esforços na luta pela
emancipação e consequente humanização. Temos que ter a coragem de Scherazade e
contar nossas histórias. A vida precisa ser vivida, não controlada, não
objetivada, não mercantilizada.
Esse grupo de estudos, para mim, foi exercício de
militância e de resistência.
Agradeço a todos que estiveram comigo.
“Eles ergueram a torre de Babel
para escalar o céu.
Mas Deus não estava lá!
Estava ali mesmo, entre eles,
ajudando a construir a torre.”
para escalar o céu.
Mas Deus não estava lá!
Estava ali mesmo, entre eles,
ajudando a construir a torre.”
Sebastião
Não resisto sem intervir minimamente, trazendo para o grupo, Valter Hugo Mãe pelo seu personagem Camilo, que emergiu de sua solidão, em O filho de mil homens.
"Sabes, pai, gosto de pensar que nunca mais vou ficar sozinho e que alguém há de ficar comigo para sempre sem me abandonar.
O Crisóstomo disse ao Camilo: todos nascemos filhos de mil pais e de mais de mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. Como se os nossos mil pais e mais as nossas mil mães coincidissem em parte, como se fôssemos por aí irmãos, irmãos uns dos outros. Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa, que nunca estaremos sós. O Camilo sorriu e disse: não compreendo nada, só queria dizer que gosto da Tereza e que os meus amigos de quinze anos, como eu, estão a arranjar namoradas. Gostava de arranjar uma namorada para sempre".
Texto perfeito!!! Uma honra participar dos encontros!! A certeza de que não sou a mesma pessoa do início! Vocês são fantásticos! Obrigada pela oportunidade de comungar do conhecimento dos senhores!!!
ResponderExcluirIsso é acreditar no poder da leitura. Participando desses encontros promovemos a construção coletiva da singularidade de cada um de nós. É muito bom participar desses grupos. E o Sebastião é genial. E vamos continuar...
ResponderExcluirAi que inveja dessas pessoas de Campo Largo, esse povo que tem a tenacidade e a determinação necessária para depois do afã diário/semanal dispor-se com renovada curiosidade ler e reler pelos olhos próprios e alheios, ouvir e pensar sobre si e o mundo, qualidades dos que não esmorecem, que não se entregam, que se negam a se deixar abater qual res conformada e servil. Sebastião é dos grandes educadores que já conheci neste Paraná a prova de lutas e injustiças cabresteadas, ele se projeta pelo que faz e escreve, sou fã. Grata por compartilhar este tempo e lugar com educadores tão valiosos. Bravo, guerreiros, a caminho da luz que não cega, mas esclarece, clareia, alumia, ilumina!!
ResponderExcluirOs encontros desse grupo de leituras foram realmente maravilhosos e terminaram com este brinde maravilhoso do Sebastião. Agradeço o seu belo e significativo comentário.
ResponderExcluirSaudades de nossos encontros, Pedro...
ResponderExcluirDa mesma forma, Sebastião. Vamos retomá-los.
ResponderExcluir