segunda-feira, 23 de março de 2015

Alexandre Dumas. Pequena História da Culinária.





O livro de Alexandre Dumas sobre a história da culinária inicia contando sobre as suas origens, coincidindo com os períodos e povos que conhecemos pela história, pela religião e pelos mitos. Assim mostra Eva e Perséfane como os primeiros exemplos da gula e lamentando as consequências, especialmente da de Eva, já que a da outra, só ela mesma se prejudicou. “Sua punição foi mais grave, tendo se estendido a nós, que não a suportamos mais”. Azar nosso e coitada da Perséfane, teve que pagar sozinha.
Dois livros em um só. Memórias Gastronômicas e Pequena História da Culinária.

Também os personagens bíblicos Esaú e Jacó estão arrolados, passando-se depois a contar sobre as primeiras maneiras de comer e sobre as iguarias das cozinhas dos diferentes povos, como a dos egípcios, gregos e romanos. Com os povos bárbaros tudo parecia perdido. Veja a respeito: “As incursões das hordas bárbaras, que duraram cerca de três séculos, lançaram uma noite profunda sobre a civilização antiga”. Tudo parecia perdido pois, “quando não houve mais cozinha no mundo, não houve mais literatura, não houve mais inteligência cultivada e perspicaz, não houve mais inspiração, não houve mais ideia social”. 

Dumas observa que em Roma houve duas brilhantes civilizações: “A sua civilização guerreira e sua civilização cristã. Depois do luxo de seus generais e imperadores, teve o de seus cardeais e papas”.  Volta ao tema dos bárbaros, constatando que felizmente eles não acabaram com tudo, pois “os mosteiros haviam permanecido como locais de refúgio para as ciências, artes e tradições da cozinha”.
Segunda parte do livro. O humor continua entranhado com a história. Uma leitura muito agradável.

As suas pesquisas continuam sobre o surgimento de toalhas e guardanapos, talheres e vidro, constatando que as facas são anteriores aos garfos, devido a sua maior utilidade. No capítulo sobre as especiarias, raras e preciosas, é relatado um fato extremamente relevante. Conta-se que um abade tinha um favor imenso a pedir ao rei Luís, o jovem, e fez com que o seu pedido fosse acompanhado com cartuchos de especiarias. Dumas ainda observa que o termo se preservou, passando a significar os presentes que se davam aos juízes. Especiarias - em espécie, sempre sobra alguma semelhança.. Sob Luís XIV o café ganhou importância e passou a ser “o diamante da sobremesa”.
O livro vem acompanhado de belas ilustrações. Boa comida sempre esteve ligada a poder.

Dumas conta também a história dos cabarés, das tabernas e dos restaurantes. Nas tabernas se vendia comida e nos cabarés era vendido o vinho. O cabaré chegou a ter uma definição muito peculiar: “É um lugar onde se vende loucura engarrafada”. Aliás, a forma de se vender o vinho também passa pelas anotações do grande escritor. As garrafas só apareceram na França ao longo do século XIV, sendo antes usadas as ânforas. O primeiro restaurante apareceu em Paris, em 1765 com os seguintes dizeres à sua porta: “Venites omnes, qui stomacho laboratis, et ego restaurabo vos”, que traduzido significa o seguinte: “Venham todos que trabalham com o estômago, e o restaurarei”.

Antes dos restaurantes a comida era servida nos albergues e era difícil conseguir porções individuais, até que “surgiu um homem de talento”, observa espirituosamente, que empreendeu uma nova criação, a partir de uma observação simples: “compreendeu que, se um freguês havia se apresentado para comer uma asa de galinha, outro não podia deixar de se apresentar para comer a coxa”.  
Nas obras de gastronomia de Alexandre Dumas o humor merece grande destaque.

Fornece ainda uma receita de sucesso para os restaurantes: “a variedade dos pratos, a estabilidade dos preços e o cuidado dedicado ao serviço”, estando a qualidade em primeiro lugar. Aponta ainda que os restaurantes existiam em maior número em Paris e em São Francisco e se espanta com um cardápio de um restaurante chinês nesta cidade, que tinha em seu cardápio sopa de cachorro, costeletas de gato, assado de cachorro e ratos na brasa. É, cozinha também é uma questão cultural.

O livro termina com uma série de novas receitas, incluindo entre elas a de D’Artagnan. Estas receitas foram retiradas do Grande dicionário de culinária. Também existem receitas para fazer molhos. Quem se habilita?

sexta-feira, 20 de março de 2015

Alexandre Dumas. Memórias Gastronômicas.




Quem me levou a este livro foi o nome de Alexandre Dumas, somado a uma promoção da editora Jorge Zahar. Dumas é mais conhecido pelos seus romances como Os Três Mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo,  mas praticamente não houve um único tema sobre o qual ele não tenha escrito. Também a culinária e a gastronomia fizeram parte de seus escritos e, diga-se de passagem, com que propriedade. Fiquei imaginando como é que ele fazia as suas pesquisas.
O belo livro de Alexandre Dumas. É história, é gastronomia e, acima de tudo, muito humor.

Um dos hábitos que conservo dos tempos de professor é o de sempre situar e datar os personagens ou os fatos a serem estudados e a partir daí fazer uma contextualização da época. Assim tudo fica mais fácil. Alexandre Dumas nasceu na França em 1802 e morreu em 1870. Viveu, portanto, logo após o evento da Revolução Francesa e o advento de Napoleão Bonaparte. Um tempo bem agitado.

A sua vida também era bem agitada  e, seguramente, mereceria a leitura de uma boa biografia. Viveu tempos de fartura e de penúria. Creio que não é errado afirmar que levou uma boa vida de burguês, senão o tema da gastronomia não o teria interessado a ponto de pesquisar e escrever sobre ela. Já não sei, após a leitura do livro, se o hábito da boa mesa é algo inerente aos monges ou aos burgueses. Na dúvida, digamos que é dos dois.
Dumas é muito mais conhecido pelos seus romances do que pelos seus livros de culinária.

O livro, na verdade, são dois livros. Observemos o título – Memórias Gastronômicas – seguido de Pequena História da Culinária. O tema mereceu ainda outro livro seu, o Grande Dicionário da Culinária. Creio nem ser necessário dizer que a sua leitura é uma tarefa agradável, pois a gastronomia implica em gente reunida e, gente reunida remete à alegria e ao humor. Farei alguns destaques do livro das memórias. Em outro post falarei da história.

A primeira passagem que destaco é um lamento seu sobre a mercantilização de tudo, numa época de revoluções burguesas. Assim os gourmands estão desaparecendo mais depressa do os próprios poetas. Não há mais emoção, só negócios. “Em nossos dias, ó profanação! Assistimos à venda no varejo das mais célebres caves parisienses. Aqueles mesmos que as haviam criado, preciosos empórios da alegria, da verve, do espírito, em suma, do amor dos homens, eles próprios introduziram nas caves a figura do provador – triste comensal que degusta os vinhos sem os beber, apenas para determinar o preço a ser cobrado por eles”. A partir daí o lamento se intensifica:
Tem cara de bom gourmet. Alexandre Dumas 1802 -1870. Uma vida atribulada. Merece a leitura de uma boa biografia.

“Simplesmente para obter dinheiro, o proprietário mandava vender os bons vinhos – o licor divino destinado aos amigos, aos poetas, às pessoas interessantes, às doces alegrias do lar! Dinheiro para substituir sorrisos, amáveis olhares, esperanças quase realizadas, lábios amorosos suavemente umedecidos!”.  Acho que todos nós continuamos com o justificado lamento de Dumas.

Anotei outra passagem de refinado humor, envolvendo Luís XV e o período da Regência: “Ele (o príncipe) e sua amante, filha do contratador Pléneuf, levaram quase um ano comendo o que restava de dinheiro nos cofres da França; depois, quando acabou o dinheiro, começaram a comer a própria França. Come-se muito, portanto, sob a regência do príncipe, mas não se comeu bem”. Me parece bastante atual este humor.
Uma ilustração do livro. Boa comida sempre foi privilégio para poucos.

E por falar em humor, num enunciado sob o título de Medicina e culinária, atribui-se à alimentação dos povos as diferentes fases da medicina. Assim sob Luís XIV “engordava-se, e todas as doenças, afirmavam os médicos, resultavam dos humores”. E a medicina mandava “sangrar, purgar, clysterum donare”. E sobre isso conta-se que “Luís XIV purgava-se duas vezes por mês, o que lhe desobstruía ao mesmo tempo o estômago e a cabeça, propiciando-lhe tão bom humor que era nos dias 15 e 30, na saída do water-closets, que os solicitantes o esperavam com suas demandas. Essa medicina durou, bem ou mal uma centena de anos”.
O livro das Memórias gastronômicas, da Zahar é seguido pela Pequena História da Culinária.

No capítulo sobre as saladas existe outra constatação interessante sobre a engorda de bois. Quando eles concorrem ao título de bois gordos eles são destinados a comer capim e a tomar água. Como conclusão, nem a água e nem o verde devem ser bons para se efetuar uma dieta.
Além de relatos acompanhados de muito humor, também encontramos em meio as suas histórias algumas receitas que mostram as preferências dos famosos desta época. Em suma é um livro muito divertido. Eu volto a Alexandre Dumas com a sua pequena história da culinária.

terça-feira, 17 de março de 2015

A Vocação golpista da elite brasileira.

O Brasil, embora as suas raízes profundas, começa a existir como país moderno a partir dos anos 1930, com a chamada revolução burguesa. Por país moderno entende-se o país que deu passos acelerados em direção à industrialização e urbanização e que teve, como consequência, uma sociedade plural. Isso só foi possível quando houve a ruptura com a oligarquia latifundiária agro exportadora, com a revolução que conduziu Getúlio Vargas ao poder.
Getúlio Vargas e a formação de uma Nação moderna. Seria o maior estadista brasileiro?

A revolução brasileira não guilhotinou os latifundiários e eles permaneceram muito vivos no Brasil e continuaram como um bloco de poder muito forte. Sempre estiveram aliados ao capital internacional, que comprava os seus produtos da agro exportação e com esse dinheiro satisfaziam suas sofisticadas necessidades de consumo. Segunda a sua ótica o Brasil tinha uma vocação agrária e não necessitava de uma política de industrialização. Mais tarde se uniram em torno de um partido político, a União Democrática Nacional (UDN). Eram partidários do livre mercado, doutrina que mais tarde desembocaria no neoliberalismo.

No poder estava a incipiente burguesia nacional. Como o Brasil é um país de capitalismo, ou de modernização tardia, as forças de mercado não tinham interesses na industrialização do país. Isso teria que ser feito por políticas indutoras, de intervenção do Estado. Era o período do nacional desenvolvimentismo. O Estado assumiu para si a infraestrutura para a industrialização e havia medidas claras de favorecimento ao produto nacional. Assim surgiram empresas estatais ligadas, especialmente  à siderurgia e à energia. Estão nesse contexto as marcas do nacionalismo brasileiro com a Companhia Siderúrgica Nacional e a Petrobras. Assim como tivemos a incipiente formação de uma burguesia nacional, também tivemos a formação de uma classe trabalhadora urbana. Estas forças se congregavam em torno de dois partidos o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e o Partido Social Democrático (PSD).


Assim se formaram dois grandes blocos de poder. O dos interesses das forças derrotadas, do modelo agrário exportador aliado ao capital internacional e o bloco das forças emergentes com a revolução de 1930. O governo mantinha, para a época, um forte esquema de comunicação e de interação com a sociedade. Essas forças, com interesses antagônicos estavam em constante conflito. A democracia brasileira começou a dar os seus primeiros passos através da sua institucionalização. É, no entanto, uma democracia incipiente e frágil. Essas forças se digladiam permanentemente.  O professor Francisco Oliveira nos dá um panorama desta fragilidade, ao nos fazer um resumo do período que vai de 1930 a 1984. Ele apresenta este período como "um gato sobre brasas" e não precisa mais do que três parágrafos para descrever a onda golpista que sempre pairou em nosso horizonte. Vou transcrevê-los e dar a fonte:

"No Brasil, de 1930 até o término da ditadura militar em 1984, temos uma média de uma tentativa de golpe para cada três anos. O que é espantoso! Mostra, no lado político, o que foi o esforço, a tensão, a violência e a reacomodação entre grupos econômicos sociais e regionais. A luta fratricida entre os grupos para lograr o que é, hoje, um país diferente e razoavelmente unificado do ponto de vista da circulação e produção de mercadoria, circulação e homogeneidade do capital.


Se fizermos a conta, de 1930 até 1932, 1934, 1935, 1937, 1945 e 1947, o Partido Comunista foi colocado na ilegalidade através de um golpe legal porque, no Brasil, o Parlamento também dá golpes. Em 1954, houve o suicídio de Getúlio Vargas, a tentativa de dois golpes, sendo um da marinha  e outro da aeronáutica contra Juscelino, que havia sido eleito. Antes, tivemos a tentativa de impedir a posse de Juscelino, quando Lott retrucou com um pré-golpe, passeando aqui, na Baía da Guanabara, com o vice-presidente preso dentro  de um navio. Depois houve a renúncia de Jânio Quadros; uma tentativa de golpe. A seguir, uma tentativa de impedir a posse do vice, impasse resolvido através de um acordo para a aceitação do parlamentarismo; outro golpe legal dado pelo Parlamento. Logo depois, via um plebiscito, foi restaurado o presidencialismo. Em 1964, temos o golpe civil militar. Depois vieram os golpes dentro do golpe, como em 1967, 1968, a doença de Costa e Silva com a posse da Junta Militar, o caso do general Sílvio Frota no Governo Geisel e uma distensão lenta e gradual. Uma média de um golpe para cada três anos.

Espantoso, porém, é ver essa história de um país harmônico, que resolve suas disputas da melhor forma. Quero mostrar que esse violento processo dava pouco lugar à construção da hegemonia burguesa. Nós tivemos dois golpes de estado neste período, duas longas ditaduras: a de Vargas (15 anos) e a ditadura militar (20 anos)".


Essas observações de Francisco Oliveira são encontradas no livro Teoria e Educação no Labirinto do Capital, organizado por Gaudêncio Frigotto e Maria Ciavatta. O artigo de Francisco Oliveira ocupa as páginas 51 a 77 e tem por título "A nova hegemonia da burguesia no Brasil dos anos 90 e os desafios de uma alternativa democrática".

Depois disso tivemos a Constituição de 1988 e com ela estamos vivendo a mais longa experiência democrática no Brasil. As forças políticas se bipolarizaram entre o PSDB e o PT e se alternaram no poder. No governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) se pregou o esquecimento da era Vargas, se chamou a nação brasileira de mercado emergente e se promoveram as privatizações preconizadas pelo livre mercado. Depois o PT ascendeu ao poder. Promoveu uma política que podemos sintetizar de "crescimento com distribuição de renda" com políticas de estado que proporcionaram um aumento do poder aquisitivo do salário mínimo, expansão do ensino superior gratuito e a instituição de políticas afirmativas e de combate à miséria absoluta e da fome. Se consolidou no poder por doze anos e venceu uma nova eleição para mais um mandato de quatro anos.


Uma crise econômica está em franco processo, com crescimento em baixa e inflação em alta, uma crise moral que envolve a Petrobras, a grande empresa estatal sobrevivente do processo de privatizações e uma crise política de intrigas entre o PT e a sua base aliada, especialmente, com o PMDB. Embora cada processo eleitoral fosse uma verdadeira guerra, em que as forças conservadoras contavam com o auxílio de uma mídia panfletária, entreguista e inconformada, a democracia mostrava tendências para a sua consolidação.

Mas no domingo, dia 15 de março, uma data significativa para os golpistas, uma multidão saía às ruas, pedindo o fim da corrupção e... Até aí tudo bem. Mas uma leitura mais atenta das faixas nos indicava objetivos explícitos exigindo o fim da democracia, por um novo golpe militar. O discurso da oposição política não era tão explícito assim. Em suma, as elites políticas estão tramando um novo golpe. Não suportam tanto tempo ausentes do poder maior nesse país. O futuro nos dará respostas. Nuvens cinzentas antecedem temporais. As vezes eles não acontecem. O PT está sendo vítima de um ódio de classe, muito mais pelo que ele fez de positivo do que pelos seus erros.


Eu tenho comigo a seguinte convicção. Enquanto o Brasil tiver riquezas significativas e instrumentos de desenvolvimento como a Petrobras, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal o capital internacional, somado aos partidos entreguistas e uma mídia partidarizada, não sossegarão em se apoderar desta riqueza e, depois disso, ainda sobrarão objetos de cobiça para continuarem a sua sanha golpista em favor de uma concentração de renda e de aprofundamento das injustiças sociais no mais injusto dos países.


 Jacques Rancière recentemente escreveu um livro intitulado O ódio à democracia. Nele defende a tese, que nós comprovamos com facilidade, de que cada vez que a democracia mexe com a base da pirâmide social ela provoca a ira e o ódio do andar de cima. A democracia na era burguesa deve servir apenas para institucionalizar privilégios de classe.

Observação - adendo. Há que se levar em conta também o golpe midiático, parlamentar e jurídico de 2016, com a farsa do impedimento da presidente Dilma.

segunda-feira, 16 de março de 2015

Roth Libertado. O escritor e seus livros.

Poucas vezes tive tanta curiosidade em ler um livro. Eu entrei em contato com a obra de Philip Roth, a partir de um grupo de leitura, organizado pelos professores do curso de Publicidade e Propaganda da Universidade Positivo, quando lemos A Marca Humana.  Posteriormente li outros, mas o que mais me impressionou e que me tornou curioso em torno de sua vida e de seus posicionamentos foi o memorável e arrasador O Complexo de Portnoy. A isso eu chamaria, tomando de Nietzsche, usar o martelo e destruir todo o processo de socialização e de seus valores, tanto da cultura judaica, quanto da americana.
O escritor e os seus livros. A sua vida está presente em seus livros. Uma biografia literária.

Cláudia Roth Pierpont fez um trabalho memorável ao escrever a biografia daquele que é hoje considerado como o maior escritor vivo. Ela mesmo se admira que possa ter escrito um livro tão pouco extenso, ao retratar um escritor tão intenso e uma obra tão vasta e profunda. A vida e obras são examinadas ao longo das 477 páginas do livro Roth Libertado - O escritor e seus livros. Ao todo Roth escreveu 31livros, dos quais 22 foram publicados no Brasil pela Companhia das Letras. Apesar dos temas complexos tratados em sua literatura ele vende tanto quanto escritores de literatura fácil como Dan Brown. O que você consegue imaginar em termos de humano, está na obra de Roth.
"Parte biografia, parte ensaio, este livro é uma tentativa de entender um grande escritor por meio de sua arte". Na contracapa do livro.

Como diz o subtítulo, o escritor e seus livros Pierpont analisa todos eles, abrangendo a escolha dos temas, o seu envolvimento com eles e as circunstâncias do autor quando as produziu, bem como a sua recepção pela crítica especializada. Os seus livros são bastante autobiográficos e refletem bem o quanto a sua vida entrou e se incorporou em seus personagens. Particularmente apreciei duas citações que revelam essa relação entre o autor e a obra. Uma é de Czeslaw Millosz, que afirma que "quando nasce um escritor em uma família, a família está acabada" e Roth acrescentava que, às vezes, era até perigoso ser amigo de um. A outra é de Flaubert que diz: "Seja metódico e ordeiro em sua vida como um burguês, assim você poderá ser violento e original em sua obra". Parece que seguiu à rica essas duas frases.

Uma das pessoas mais atingidas em seus livros foi Maggie Williams, com quem foi casado. Ela ganha um livro como tema central, melhor, a relação entre eles ganha o Letting Go. Uso uma palavra de Pierpont para sintetizar a relação, "cicatrizes". Roth sempre carregou a acusação de que a sua literatura é misógina. Mas a primeira grande polêmica em que se viu envolvido foi com a questão judaica. Ele é descendente de imigrantes judeus poloneses que tiveram muitas dificuldades e que sofreram com o antissemitismo incrustado na cultura americana. São citados como notórios antissemitas, Henry Ford e o padre Coughlin. Newark, uma colônia judaica pobre, é presença constante em seus livros. Roth também nunca se deu bem os rabinos.
O livro de 1969 foi o primeiro grande êxito de público. Um livro arrasador. Possivelmente o seu livro mais importante.

O caso de Maggie o levou à psicanálise. Ficou por anos se tratando com o Dr. Kleinschmidt e lhe pagou caro, mas teve amplo retorno de seus gastos. A psicanálise lhe abriu novos caminhos na literatura. Agora ele não poupa mais nem o pai, autoritário e nem a mãe, uma superprotetora irritante. Surge o seu primeiro grande livro, que o tira de todo e qualquer atoleiro financeiro O Complexo de Portnoy. É subversão em uma época subversiva. São os famosos anos 1960. Iconoclastia pura. São vendidos 400 mil exemplares em um ano e O Poderoso Chefão perde o seu primeiro lugar como o livro mais vendido. O livro se firmou e permaneceu ao longo do tempo, passando a ser visto como uma obra clássica e não como uma relíquia.

A psicanálise o levou a implicar com a mãe e com os rabinos. Mais tarde ele acertaria as contas com o pai em Indignação. Outro livro de extraordinária repercussão foi Pastoral Americana em que complexos temas da cultura americana são retratados, mas a obra se centra na guerra do Vietnã e os efeitos que ela produziu sobre a juventude americana. Com o pai acertaria as contas mais tarde, indo para uma Universidade bem distante da casa dos pais para se ver livre da opressão paterna. E a guerra da Coreia pairava no horizonte, caso fracassasse.
Acerto de contas com o pai. Um livro já da fase final do escritor.


Um grande escritor sempre foi necessariamente um bom leitor. Roth foi um grande leitor. Admirava os americanos, com destaque para Sinclair Lewis, Hemingway e John dos Passos, mas as influências mais fortes foram as de Kafka e de Tchékhov, passando também por Flaubert e Orwell. Praticamente todos os clássicos referenciam a sua obra. Além dessas influências, a repercussão de seus livros entre a crítica especializada, é um dos grandes méritos do livro.

Quanto a sua vida pessoal, exposta sem limites, os destaques vão para as influências judaicas de sua educação familiar, para a sua formação de um cidadão americano, patriota do pós segunda guerra e para a sua rumorosa vida sexual. Se envolveu com muita gente famosa e passou por vários casamentos. Teve até um breve lance com Jaqueline Kennedy. Um de seus relacionamentos mais duradouros foi com Claire Bloom, artista famosa, que teve uma vida glamourosa com artistas não menos famosos como Richard Burton, Laurence Oliver e Yul Brynner. Estes personagens tanto fizeram parte de sua vida, quanto de sua obra. São facilmente encontrados ao longo de sua obra. A sua vida também é repleta de dor e sofrimento. Dores nas costas, próstata e problemas cardíacos também fazem parte de sua vida e obra.
Com A Marca Humana comecei a me aproximar de Philip Roth, o maior escritor vivo do mundo.


O último capítulo do livro é bastante revelador. Mostra um Roth vivo, ainda profundamente envolvido com a escrita, mas não mais com a ficção. Cartas, ensaios e muita leitura ocupam o seu tempo. A despedida da ficção ocorreu com Nêmesis. Neste capítulo merece destaque a repercussão e o reconhecimento de sua obra. Em 2011, ao receber a National Humanities Medal, das mãos do presidente Obama, não recebeu apenas a medalha, mas também palavras muito significativas e bem humoradas: "Quantos jovens não aprenderam a  pensar lendo sobre as façanhas de Portnoy e seus complexos?" E ainda declara que a arte americana, incluindo aí obra de Roth, foi um dos maiores "instrumentos de mudança e de progresso, de revolução e de efervescência".

Roth Libertado - o escritor e seus livros, de Cláudia Roth Pierpont é um lançamento de fevereiro de 2015, da Companhia das Letras. Uma publicação muito oportuna da editora, que assim complementa e ajuda na compreensão da obra do autor, editada quase que por inteiro pela editora. É um livro para leitores, que adoram a leitura que penetra em toda a profundidade nos mistérios do que é o humano. Ler este livro foi muito revelador e gratificante. Além de atender a minha curiosidade  também me entranhou na obra de Roth e na própria cultura americana.

sexta-feira, 13 de março de 2015

Relatos Selvagens

Antes de mais nada quero confessar a agradável surpresa que eu tive ao assistir este filme Relatos Selvagens, o representante argentino na indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Fui assisti-lo nesta condição de filme premiado. Não ganhou a estatueta mas, no mínimo, mereceria um empate com o polonês Ida, que foi o vencedor.  Certamente a preferência recaiu sobre o tema do filme polonês, denso e complexo. O filme argentino é uma comédia trágica. Trágica como é o ser humano e, especialmente, as instituições por ele criadas.
 Seis pequenas histórias que expõem o ser humano a situações limite. Ele é capaz de muita maldade.

Antes mesmo de o filme ser apresentado já é contada uma pequena história, em que todos os passageiros conhecem um determinado estudante de música. Por coincidência todos eram unânimes em contar sobre o seu fracasso. O susto vem quando ficam sabendo que ele está no avião como um de seus tripulantes e que tem poder sobre eles. Aí começa a narrativa de mais cinco pequenas histórias, que tem em comum, uma pessoa levada aos seus limites e a sua reação. Todas tem em comum um traço de humor refinado, porém cáustico.
A garçonete conta com a ajuda da cozinheira para realizar o seu plano de vingança.
 

Na sequência das pequenas histórias aparece uma garçonete de restaurante de beira de estrada, que recebe um conviva que arruinara a sua família e, se apresenta para ela a possibilidade de se vingar, envenenando a comida. A próxima história é mais carregada, apresentando dois motoristas distintos, também com carros distintos. Um é novo e blindado, o outro é feio e velho e atrapalha o trânsito. O motorista do carrão o insulta duplamente, por classe e por raça. A situação se complica quando o carrão tem um pneu estourado. No reencontro, a tragédia está anunciada. Está aí a presença da forte crítica social.
Talvez a mais densa das histórias. Será que precisava chegar a tanto? A vingança implacável.

A quarta história é um reflexo da vida cotidiana: o trânsito, a indústria das multas e dos guinchos e a absoluta impotência diante da burocracia de um Estado inoperante. Ninguém se importa com as pessoas e os seus problemas, nem mesmo diante do aniversário de uma filha. Ele poderá dar o troco. A quinta história é a minha preferida porque ela mostra a total podridão da sociedade e de suas instituições. Talvez seja pelo momento que estamos vivendo no Brasil em que as esperanças somem do horizonte. Os pais tentam proteger o filho que cometera mortes em suas diversões. Nada que a carteira do afortunado pai não resolva. Neste processo de corrupção, ninguém se salva. Não se discute a moral, apenas as cifras. Todo mundo é corrupto, de acordo com as suas possibilidades e todos se acusam mutuamente.

A última das histórias é disparadamente a mais cômica. A cena de um casamento. Seria a família a mais desacreditada de todas as instituições da sociedade, a tal ponto que ela já não dá certo nem no dia do casamento? Uma confissão de traição possibilita cenas inimagináveis, diante de familiares e convidados perplexos. Uma vingança mais do que perfeita, para um final mais surpreendente ainda.
A mais tragicômica das histórias. Uma festa de casamento, de constituição de uma família.


Este filme nos deixa uma grande interrogação. Onde estariam os limites do ser humano? Tanto para o bem quanto para o mal. No caso específico, para o mal. Do que o ser humano é capaz? O homem parece ser, como já constatara Maquiavel, o único ser que consegue infligir sofrimento e dor a outro ser. Para isso usa o instrumento da vingança. É capaz de praticar muita violência, tanto física, quanto simbólica, psíquica e moral. Verdadeiras torturas e tormentos. Conseguirá o ser humano aplacar a voz de sua consciência? O filme deixa impressão que sim, ao mostrar que não existem limites para a maldade humana, quando ele se depara com situações limite e, o pior, ele se defronta com estes limites, elas lhe são postas e o provocam a se expor por inteiro, nas mais banais e corriqueiras cenas de sua vida cotidiana.

Além da indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro ele é também é um sucesso de público, especialmente na Argentina. A direção e o roteiro é de Damián Szifron, possui um ótimo elenco de atores e leva uma assinatura de Pedro Almodóvar na produção. Com certeza esta é uma aposta que credencia, que referencia. Uma tragicomédia sobre o humano que provoca  contrações faciais e até risos irônicos, mas não gargalhadas em estardalhaço, como eu vi na sessão em que fui assisti-lo. Quase fui levado aos meus limites.




terça-feira, 10 de março de 2015

A Memorável Greve da Educação - 2015.

Comecei tendo dificuldades para dar um título a este post, devido a sua abrangência. Se a greve se centrou na educação, envolvendo professores e funcionários, na verdade, ela envolveu todo o funcionalismo público. Por ter sido um governador irresponsável e perdulário, em dezembro, ainda no seu primeiro mandato, Carlos Alberto Richa enviou para a Assembleia Legislativa o seu pacote de maldades - para ser votado em regime de tratoraço - contra o povo paranaense em geral e contra o funcionalismo público em particular. Para todo mundo, aumento generalizado de impostos e para o funcionalismo, uma reforma na Previdência, assacando os velhinhos e impondo teto aos novos.
Muita violência e deputados no camburão. Teve de tudo nesse vitorioso e histórico movimento.

Não bastasse isso, para sanar os cofres do Estado, esvaziados pela irresponsabilidade de seu governo, um novo pacote de maldades, desta vez absolutamente inimagináveis e, de novo, sob o infame regime de tratoraço. Desta vez a mão pesada liquidaria o plano de carreira, eliminando a base, o chão deste plano, eliminaria quinquênios e anuênios, e a possibilidade de ascensões pela via do PDE e tentou, ainda, um assalto ao dinheiro de futuros aposentados, apropriando-se de seu fundo de Previdência. A sua sanha por gastos irresponsáveis fez com que quisesse se apropriar de um fundo de 8 bilhões de reais.
Na primeira ocupação da assembleia uma cena bem brasileira, de misticismo religioso.

Já na educação havia mais outras questões. Como secretário da Educação ele nomeou um gestor, com histórico do tempo das privatizações, munido de uma tesoura e com o receituário do Banco Mundial para a educação. Não importa que a qualidade da educação pública caia, desde que se faça economia, foi o bordão. Vamos instituir a racionalidade técnica nas escolas, cortando gastos, aglutinando turmas, eliminando atividades que levariam a escola para a educação em tempo integral e, eliminando pedagogos e funcionários. Havia ainda pendências da greve anterior, de promoções não efetuadas, do não pagamento do terço de férias e das rescisões contratuais dos funcionários PSS, demitidos. As aulas não começaram.

Em assembleia os educadores decidiram pela greve, que, na verdade, já tinha sido decretada no interior de cada escola. O governador Carlos Alberto conseguiu um feito inédito. No reinício das aulas, nenhuma escola funcionou. Houve a notícia de que uma única escola abrira os seus portões. (Soube-se depois que o seu diretor é filiado e militante do PSDB, o partido do perdulário governador). Montou-se um acampamento em frente ao Palácio e da Assembleia. Afinal de contas, o pacote teria que ser votado. E é nesse campo que estão as conquistas desta greve, que aliás, ocorreu, não para acrescentar dinheiro ou direitos, mas para não perdê-los. Esta história precisa ser bem contada.
Duas ocupações da Assembleia legislativa e deputados andando de camburão. Fim do tratoraço.

A primeira votação foi marcada para o dia dez de fevereiro. Uns trezentos professores estavam nas galerias e uma multidão em frente. Quando houve o anúncio de que o regime de votação conhecido como tratoraço fora aprovado, o povo ocupou (não se invade aquilo que nos pertence) todas as dependências da Assembleia e os das galerias ocuparam o Plenário. Os deputados ainda tentaram se reunir num refeitório improvisado como Plenário, mas percebendo não terem condições, encerraram a sessão. Foi a primeira grande vitória do movimento. Mas o pior ainda estava por vir, ou o melhor, dependendo do enfoque. A ocupação da Assembleia continuou. A votação do tratoraço dividiu os professores em amigos e inimigos da educação. Confira a relação:
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/02/os-deputados-amigos-e-inigos-dos.html

O perdulário governador não se deu por vencido. Exigiu nova votação, que foi marcada para o dia 12, de novo no refeitório improvisado como Plenário. A multidão em frente se transformou num mar de gente e a Assembleia foi cercada. Todas as entradas foram tomadas pelos manifestantes. Pela tarde, um palco de guerra se arma. Uma multidão de policiais, tropa de choque e cães amestrados contra a multidão armada de espírito de luta e algumas flores para serem oferecidas aos policiais. Um ônibus camburão se aproxima em meio a uma escolta policial nunca vista. No ônibus camburão estavam - vergonha suprema - os deputados inimigos da educação. Serraram-se grades e os deputados entraram na Assembleia e preparam-se para o início da sessão.
O histórico dia 12 de fevereiro. Tropa de choque, cães amestrados e bombas. Quase uma tragédia.

Um enorme temporal toma conta com forte chuva e trovoadas. As trovoadas foram engrossadas com o espoucar de bombas de gás lacrimogêneo, de pimenta e de efeito moral. Nunca vi coisa parecida. Nunca vi destemor maior por parte dos manifestantes. A Assembleia foi novamente ocupada pelos professores e, em meio a tudo isso houve uma ordem da suspensão da votação. A vitória foi inimaginável. O dia 12 de fevereiro entrará para a história política do Paraná. O governo fora posto na defensiva.  Por algumas frações de tempo não ocorreu ali, uma tragédia de dimensões inimagináveis. Nos dias seguintes, a cada dia, se contavam novidades sobre o ocorrido e que precisam ser contadas. Fatos pitorescos, inclusive.

Deputados amigos da educação pública. Prenúncio de vitórias. Nada foi votado no dia 12.

Soube-se depois que o Carlos Alberto exigiu a votação e encarregou o homem que prendeu o Abadia de arquitetar o plano. Comédia e tragédia se misturaram. Nunca deputados passaram tanto constrangimento, de andarem de camburão. A piada pronta exigia a sua condução para Piraquara. O pânico tomou conta do cortejo e aumentou nas proximidades da Assembleia. O ônibus foi sacudido, o valentão que prendeu o Abadia correu de um desarmado professor, enquanto uma das excelências não continha seus humores intestinais e, literalmente, se borrou nas calças e o chorume malcheiroso vazou. O nome da excelência que se borrou virou um pacto de juramento de morte. Destaco duas crônicas da Gazeta do Povo sobre o tema: O pacto malcheiroso de Dante Mendonça e a Crônica da viagem do ônibus do choque, do Rogério Galindo. Obras primas do humor político.
Assembleia da Vila Capanema. Mais de quinze mil educadores presentes. A greve continua.


Mais dois importantes fatos precisam ser mencionados. A passeata dos cinquenta mil e a assembleia do dia 4 de março. A passeata, realizada no dia 25 de fevereiro, teve dois pontos de saída. O interior saiu da praça Santos Andrade, enquanto que o pessoal de Curitiba se concentrou na praça Rui Barbosa. O encontro se deu na praça Tiradentes, chegando até o Palácio Iguaçu. A assembleia precisou de um estádio de futebol, o do Paraná Clube, para abrigar quase vinte mil participantes, que votaram pela continuidade da greve. A APP-Sindicato propôs uma mediação do judiciário, como solução do impasse. A mediação aconteceu, compromissos foram firmados e nova assembleia foi convocada para o dia 9 de março, de novo na Vila Capanema.
Assembleia na Vila Capanema, 4 de março. Mais um momento da votação. A greve continua.


Esta foi a maior greve de educadores já realizada na história do Paraná. Teve forte apoio popular e até setores da mídia paranaense  passaram a apoiar. Não, evidentemente, a comandada pelo Ratinho Jr., que se postou ao lado do perdulário governador, de quem é secretário. Saiu muito chamuscado entre os manifestantes e certamente comprometeu pretensões futuras suas. Mostrou a sua identidade. Da mesma forma os deputados do bancada do camburão encontrarão dificuldades em eleições futuras e até de se locomoverem em suas bases. Como foi uma greve de resistência e não de reivindicações, o governo foi praticamente obrigado a retroceder em todas as medidas do pacotaço de maldades. Recuou nos dois pontos mais importantes que eram os de destroçar o plano de carreira e por mão grande nos 8 bilhões de reais do Fundo de Previdência e a abolição da votação pelo famoso tratoraço.  Seus índices de popularidade chegaram a níveis tão baixos, como nunca um governador do Paraná havia atingido.
A frase eternamente verdadeira. "O governador pode muito - mas não pode tudo", dizia o deputado Tadeu Veneri.


Tudo foi muito bonito de se ver e todos os que efetivamente participaram deste fato histórico saem com a autoestima extremamente elevada. "Foi bonita festa pá! Fiquei contente. Ainda guardo renitente - um velho cravo para mim". A minha individualidade se transformou num coletivo, do tamanho do Paraná inteiro.
A documentação do fato. Eu estava lá. O meu cartão, entre milhares. A greve continua.

A assembleia do dia 9 de março marcou o fim deste histórico movimento. Compareceram em torno de sete mil grevistas. O alerta ficou ligado. O estado de greve continua. O governador está sob suspeita e carece de total falta de credibilidade. Aqui a austeridade, como nova forma de acumulação de capital, ao menos desta vez, não funcionou.


sábado, 7 de março de 2015

Chiquinha Gonzaga. A Pioneira na Luta pela Emancipação Feminina.

Estou lendo um interessantíssimo livro sobre sete personagens de nossa história do Brasil. Entre estes está Chiquinha Gonzaga (1847 - 1935). Chiquinha não costuma frequentar os livros oficiais de história do Brasil, embora isso devesse ser uma exigência e, assim muitos conheceriam a história de sua vida. Ela simplesmente foi a pioneira na luta pela emancipação feminina, em tempos em que isso era praticamente impossível, mas não para ela. Como gostei da sua história e como nós estamos nos aproximando do dia internacional da mulher, resolvi lhe dedicar este post.
Antes e Depois. Um dos personagens trabalhados neste livro é Chiquinha Gonzaga.


O livro em que a sua história está inserida é Antes e Depois - Um dia decisivo na vida de grandes brasileiros, quando pequenos. O livro é um lançamento da Companhia das Letrinhas. Literatura infantojuvenil, portanto. Mas que literatura! Tem muita qualidade. A autoria é de Flávio de Souza e tem ilustrações de Daniel Almeida. A história da compositora é escrita sob a forma de uma peça teatral, uma peça biográfica teatral.

Há pouco eu terminara de ler o livro da historiadora Mary del Priore, Histórias Íntimas - sexualidade e erotismo na história do Brasil. O livro não cita Chiquinha Gonzaga mas registra todas as dificuldades que as mulheres enfrentaram na luta pela causa da emancipação feminina. Vivia-se, aliás ainda se vive, uma cultura machista, absolutamente dominadora. A mulher teria que ser submissa ao homem e as mulheres que se separavam no casamento, teriam que viver praticamente confinadas, tal a rejeição social. Com Chiquinha Gonzaga tudo foi muito diferente.
A relação de Chiquinha Gonzaga com a música começou com um piano, que ganhou quando tinha 9 anos. Aos 11 já compunha. A ilustração do livro referente a Chiquinha Gonzaga.


A narrativa da peça teatral começa em 1935, o ano de sua morte, às vésperas do carnaval. Um mestre de cerimônia nos conta os primeiros anos de sua vida. É filha de pais não casados, o pai branco (militar) e mãe mulata. Aos 9 anos ganhou o seu primeiro piano e aos 11 fez a sua primeira composição. O seu personagem aparece em cena pouco antes de sua morte, aos 87 anos e anuncia: " Realizei quase todos os meus sonhos, desejos e anseios" e continua: "Sofri e chorei, porém também fui feliz e sorri. Dei passos gigantescos, abri algumas portas para nós, mulheres, e outras ainda deverão ser abertas por novas brasileiras que virão. Conheci meio mundo, criei quatro filhos, me sustentei com meia dúzia de profissões". Aí o mestre anuncia os seus principais feitos:

Primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil; primeira mulher compositora de música popular no Brasil; autora da primeira composição musical feita especialmente para o carnaval; uma das primeiras mulheres a se separar de um marido que a traía - no caso dela - de dois maridos, para viver em liberdade, desdobrando-se para se sustentar. Foi mãe de quatro filhos e professora de piano, canto, português, francês, geografia e história e compositora de trilhas sonoras para peças de teatro musicais; foi pianista em cinemas e lojas e maestrina. Foi abolicionista na teoria e na prática, também vendia partituras próprias para arrecadar fundos para a campanha e comprar a liberdade de escravos. Foi ainda pioneira na luta pela arrecadação de direitos autorais.
A cantora e compositora Chiquinha Gonzaga e uma referência ao seu maxixe no Catete. Corta-jaca.


O Palácio do Catete também entrou em sua vida. Nair de Tefé, a primeira dama da República a convidou para se apresentar na festa de despedida do presidente Hermes da Fonseca. Na solenidade,  como não bastasse a sua figura profana, houve música popular, com instrumentos populares e um maxixe, o corta-jaca, para a indignação geral e em especial a de Rui Barbosa, em discurso no Senado: "A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba. Mas nas recepções presidenciais o corta-jaca é executado com todas as honras de Wagner". Como podem ver, a nossa cultura tinha muito pouco de brasilidade.
A ilustração mostra a soma que se deu em Chiquinha Gonzaga. A mulher, o trabalho e a música.


Um de seus maiores sucessos foi a peça teatral Forrobodó, que a princípio ninguém queria patrocinar, mas que, após muita insistência, foi contratada para uma semana de apresentações e que, na verdade, terminou sendo apresentada mais de 1.500 vezes. Ela assistiu a peça, depois de uma tourné pela Europa, com o seu novo amor, o Joãozinho. O encontro com ele se deu, quando ela tinha 52 anos e ele 16. Isso se somou aos escândalos anteriores, como ter nascido numa família que só se casou após o seu nascimento e depois de ter despachado dois maridos que lhe foram infiéis. Com o Joãozinho ela viveu bem e feliz. A energia para as suas composições lhe vinha da pilha de contas a pagar todo mês.
Uma grande pioneira. Na luta pela emancipação da mulher, pela afirmação da música popular brasileira e pelo uso de instrumentos populares .


Chiquinha Gonzaga era uma personagem viva do seu tempo. Nunca se omitiu em nada. Ainda  lutou em favor da abolição e contra a monarquia, pela causa republicana. Foram 87 anos de vida, de desafios bem enfrentados. Se tivesse sido uma mulher comum, sequer saberíamos de sua existência. Ela foi uma mulher abre-alas, mas muitas alas ainda precisam ser abertas para que se dê passagem a um mundo de igualdade e sem preconceitos. Imaginem como seria o mundo se todos tivessem tido a coragem da grande pessoa humana que foi Chiquinha Gonzaga, uma personagem símbolo na luta pela emancipação feminina e pela igualdade e dignidade do ser humano.

sexta-feira, 6 de março de 2015

Antes e Depois. Flávio de Souza.

Antes e Depois - Um dia decisivo na vida de grandes brasileiros, quando pequenos é um livro de Flávio de Souza, com ilustrações de Daniel Almeida. É um lançamento do mês de janeiro, da Companhia das Letrinhas.  Os grandes brasileiros focados no livro são D. Pedro de Alcântara, Luís Gama, Chiquinha Gonzaga, Lima Barreto, Mário de Andrade e Maria Lenk. Na forma de contar a história destes personagens é que está o grande mérito da obra. Como devem ter percebido, sendo uma publicação da Companhia das Letrinhas, o livro é destinado a um público infantojuvenil, sem causar danos, no entanto, para os adultos que o lerem.
Fantástica maneira de contar sobre sete importantes personagens de nossa história.


D. Pedro de Alcântara recebe a forma mais tradicional de narrativa. É apresentado como o pequeno herdeiro da nação. A história é contada por um morcego, empregado na corte portuguesa. Como morcego, conta todos os bastidores do rei nascido em terra brasileira, mas a narrativa retrocede até os tempos de Napoleão, que põe a corte portuguesa em fuga. Conta peripécias de D. Maria, a louca, de Dona Carlota Joaquina, de D. João VI, de D. Pedro I, até chegar no Pedrinho, passando pelos principais fatos do segundo reinado, como as revoluções regionais, a guerra do Paraguai e a abolição da escravatura.O autor recorre muito ao teatro para ilustrar as situações. As obras de Shakespeare e de Molière estão sempre presentes.
A ilustração correspondente ao personagem Pedro de Alcântara, o herdeiro de uma nação.


Luís Gama não é um heroi tão conhecido em nossa história e é apresentado como o amigo de todos. O dia decisivo em sua vida foi aquele em que o seu pai, endividado por causa de seu vício no jogo, o vendeu como escravo. Os fatos narrados pelo autor são retirados de uma carta que Luís Gama escreveu para um amigo seu. É considerado o precursor do abolicionismo. Se alfabetizou e se tornou advogado, rábula. Libertou a si próprio e passou a dedicar o seu tempo "ao foro e a tribuna, onde ganho o pão para mim e para os meus, que são todos os pobres, todos os infelizes; e para os míseros escravos, que, em número superior a 500, tenho arrancado às garras do crime". Nasceu em Salvador, em 1842 e morreu em São Paulo em 1882, seis anos anos de ver triunfar a sua principal causa. 
Luís Gama, vendido pelo pai como escravo, aos dez anos. Um pioneiro na luta pela abolição.


A história de Chiquinha Gonzaga é contada sob a forma de uma peça de teatro, que conta com a ajuda de um narrador. Ela é apresenta como a abre-alas. Ela realmente abriu alas contra o preconceito contra a mulher e é a grande pioneira na luta pela emancipação feminina. Ela nasceu em 1847 e morreu em 1935, com 87 anos. Nasceu de pai branco e mãe mulata, que só se casaram depois do seu nascimento, um escândalo. Despachou dois maridos infiéis e arrumou um terceiro, um aprendiz de músico. Ela tinha 52 e ele 16. Mais escândalo. Para sustentar quatro filhos foi professora de piano, canto, português, francês, geografia e história. Pioneira na música, também lutou pela abolição, se apresentou no Catete, para novos escândalos e se tornou famosa internacionalmente. Grande personagem. 
Chiquinha Gonzaga. O meu personagem preferido deste livro. Pioneira em quase tudo. A abre-alas.

Lima Barreto tem uma forma muito original de ser apresentado como o mortal imortal. Isso porque nunca chegou a ser imortal, embora, por três vezes candidato à Academia. Ele é apresentado sob a forma de um diálogo que mantém com o arcanjo, quando de sua chegada ao Paraíso, em 1922, o ano de sua morte. Ele e o arcanjo passam a sua vida e a sua obra em revista, os seus infortúnios, a sua obra e a sua passagem pela cachaça. Morreu sem ter sabido "arrancar da minha natureza o grande homem que desejava ser". Grande crítico dos caminhos iniciais da República.
Lima Barreto saindo do mundo de seus livros, para um diálogo com o arcanjo.

Monteiro Lobato é apresentado como o pai da Emília, ou o precursor da literatura infantil. A forma para narrar a sua vida é uma entrevista com Lúcia, uma velha conhecida e amiga de Monteiro Lobato, o Juca da sua intimidade. Monteiro Lobato fora um leitor voraz de Júlio Verne, de Robinson Crusoé e de Figueiredo Pimentel, com quem divide o feito de ser o precursor. Monteiro também foi pioneiro na edição de livros. Lúcia termina contando que ele escreveu "como a aranha costureira de mil anos costurava: usando a tesoura da imaginação, a linha do sonho e a agulha da fantasia".
Monteiro Lobato, pioneiro na literatura infantil e na edição de livros.

Mário de Andrade um antigo moderno é apresentado num programa de televisão em que o seu personagem responde perguntas sobre a sua infância, adolescência e a sua vida adulta. O fato que mais marcou a sua vida foi o de deixar de ser pianista, para ser poeta e escritor. Escrevia brincando, como fez com Macunaíma, mas essa brincadeira lhe custara anos e anos de pesquisa. A sua vida e a sua obra contribuíram para que o Brasil deixasse de ser um pouco menos europeu para ser um pouco mais brasileiro.
 Mário de Andrade, do piano para a literatura. Macunaíma, um clássico escrito em uma semana.

A última personagem apresentada é Maria Lenk, um peixe dentro d'água. A forma de apresentá-la também é a entrevista, recolhendo respostas de entrevistas que ela deu ao longo de sua vida. Esta filha de alemães foi a primeira atleta latino americana a competir em uma olimpíada, a de Los Angeles, em 1932. Mais uma pioneira, portanto. Ela tem em seu currículo duas quebras de recorde, no nado peito, 200 metros, quando se preparava, em 1939, para a olimpíada do ano seguinte, no Japão, que no entanto, não ocorreu. Era o tempo da segunda guerra. Conta coisas interessantíssimas como os seus treinos no rio Tietê. Ela morreu em 2007, aos 92 anos, depois de nadar por 1.500 metros. Começou a nadar para fortalecer os pulmões, depois de uma pneumonia em sua infância. Ela dá o seu nome ao Parque Aquático em que foram realizados os Jogos Pan-Americanos em 2007, no Rio de Janeiro.
Maria Lenk, pioneira na natação. Primeira atleta latino americana a participar de uma olimpíada.


Fiz a resenha deste livro, na parceria do blog com a Companhia das Letras. O grande mérito do livro é a forma criativa de contar as histórias, como a entrevista, a peça de teatro ou um programa de televisão. O livro conta também com belas ilustrações feitas por Daniel Almeida. Um livro que desperta os jovens para a leitura e é também um belo livro paradidático. Também a escolha dos personagens foi fantástica, especialmente a das duas mulheres, pioneiras em suas atividades e merecedoras da maior admiração de todos.





quinta-feira, 5 de março de 2015

Histórias Íntimas. Mary del Priore.

Eu gosto muito dos trabalhos desta historiadora, Mary del Priore. Ela encontrou uma forma muito atraente para apresentar as suas histórias. Ela tem uma grande preferência em apresentar os personagens da nossa realeza. Isso não é diferente com esse livro Histórias Íntimas - sexualidade e erotismo na história do Brasil. Um dos capítulos, quase por inteiro, é dedicado a nossa família imperial. Afinal de contas, Dona Carlota Joaquina e D. Pedro I não poderiam ficar de fora desta história. O livro é 2011.
O tema da sexualidade sempre esteve ligado a preconceitos. Este livro é um libelo contra os mesmos.

O livro tem prefácio escrito por Moacir Scliar, que apresenta as qualidades do livro e na introdução a autora descreve a primeira década do século XXI com relação ao erotismo e a sexualidade e como se chegou até aí. Aí seguem cinco capítulos, em linearidade histórica, assim intitulados: 1. Da colônia ao império; 2. Um século hipócrita; 3. Primeiras rachaduras no muro da repressão; 4. Olhares indiscretos; 5. As transformações da intimidade. Segue uma extensa relação bibliográfica e o livro também é entremeado por um bloco de belas fotografias sobre o tema.
Padres moralistas e médicos higienistas - sempre aliados na repressão sexual.

Sintomaticamente o primeiro subtítulo do primeiro capítulo é "o corpo, a igreja e o pecado". Uma visão que predomina ao longo de todo o livro. O corpo, no início absolutamente descuidado, até se chegar ao seu verdadeiro culto, em nossos dias, e a igreja e o pecado mostram o componente repressor em torno da matéria. Afinal a igreja e a sua sanha moral repressora perpassa toda a história e que, inclusive, chegou a atingir a nossa geração em profundidade. Logo no início é apresentado o fato de Isabel de Castela ter morrido, sem a apresentação ao confessor de certa ferida que ela carregava no corpo. O capítulo é bem interessante, ao mostrar um continente nu e a chegada de uma bateria de moralistas e o confronto que isso provocou. Aos padres, geralmente, se somavam os médicos na fúria repressiva. Outra revelação interessante está no fato de que, na ressurreição após o juízo final, todos renasceriam no "santo estado masculino" e ninguém seria tentado pela "carne funesta", proclamava santo Agostinho.

O século hipócrita é o século XIX e, os maus exemplos vem do andar de cima, da nobreza brasileira. Dona Carlota Joaquina e D. Pedro I são personagens nada exemplares. D. Pedro I já usava do poder do império para prestar favores aos parentes da Condessa de Santos. A lista de suas amantes ocupa mais de página inteira no livro. As suas orgias só encontravam paralelo nos tempos do Império Romano. São impressionantes as narrativas dos viajantes que aqui aportavam sobre a promiscuidade nos tempos do império. Tudo isso em meio a moral repressiva dos padres e do higienismo dos médicos.
Por mais reprimida que fosse, a sexualidade e a sua erotização nunca deixaram de se manifestar.

As primeiras rachaduras ocorrem já no começo do século XX. Ele é apresentado como o século do corpo, que começa a ser modelado e exposto. É também o século da psicanálise, dos estudos de Freud e, sobretudo, de Reich. Quanto ao Brasil são examinadas as primeiras revistas "masculinas", o Rio Nu, que circulou entre 1900 e 1916. Também é o tempo em que começaram a circular os famosos catecismos, apesar de todas as vigilâncias e proibições. O capítulo se volta mais para a primeira metade deste século.

Já os olhares indiscretos são os olhares que recebem as mulheres despidas no teatro de revista e no cinema de chanchada e as influências deste, no comportamento moral que começa a ser um pouco menos repressivo. Neste capítulo a autora fala muito sobre o casamento, sobre as separações e também sobre a homossexualidade, sempre vista como uma deformação da natureza, uma doença a ser curada. Também não escapa o olhar feminino sobre o papel de subordinação da mulher nas relações do casamento.
O tema do marido traído também sempre esteve presente ao longo da história da sexualidade.

Já o último capítulo, as transformações da intimidade, chega aos nossos dias, com a abordagem dos temas com os quais convivemos no nosso dia a dia. A revolução sexual, os famosos anos 1960, o direito ao prazer, da pílula contraceptiva, do domínio da medicina sobre a sífilis e de toda uma onda de insubordinação. Mas também é o tempo da AIDS e de um novo moralismo em torno do tema. São mostrados ainda, a emancipação feminina pelo trabalho e as suas influências sobre a instituição do casamento. E... só poderia terminar com o advento do Viagra. Em suma, um livro que chama para a curiosidade do leitor, sobre estes temas, que apesar de tudo, ainda não se livraram inteiramente da visão de tabu sobre eles.Um de seus maiores méritos é o seu combate a todo tipo de preconceitos. Afinal o tema sempre foi muito propenso a isso.

terça-feira, 3 de março de 2015

Boyhood. Da Infância à Juventude.

De todas as indicações ao Oscar - 2015 - de melhor filme, certamente Boyhood - da Infância à Juventude foi o mais pretensioso. Atrás dele havia um grande projeto e uma verdadeira obsessão. Atentem para o fato de ele ter, na pessoa de Richard Linkleter, o seu diretor, o seu roteirista e o seu produtor. Linkleter cuidou de tudo e, mais outro detalhe, o seu projeto levou doze anos para ser concretizado. As filmagens acompanharam os personagens ao longo de doze anos, centradas no menino Mason, dos seis aos dezoito anos. Uma vida em perspectiva para as crianças, ou uma vida em retrospectiva para os pais.

O tema do filme são as relações familiares em tempos cada vez mais pós-modernos, em tempos de relações humanas cada vez mais líquidas, usando essa expressão tão própria de Zigmunt Bauman. Nada mais tem consistência e durabilidade. Mas vamos ao roteiro. Um casal, Mason Sr. e Olívia são um casal que tem dois filhos, Mason e Samantha. O casal passa por dificuldades de toda ordem, especialmente as de relacionamento. Se separam e rearranjam as suas vidas. Os filhos crescem e passam a ter a sua visão de mundo, os seus relacionamentos e os seus questionamentos.

Nenhum grande fato, fora do normal ocorre. Os filhos ora ficam com o pai, ora com a mãe. A relação é mais complicada com a mãe, extremamente infeliz com os seus parceiros, que aos poucos se revelam e mostram a sua fragilidade com o mundo da bebida. A relação é melhor com o pai, com quem não vivem no cotidiano, apenas em fins de semana e tempos de férias. Vivem situações mais amenas. Mas o pai é mostrado como um bom parceiro das crianças.


A mãe é extremamente dedicada e vence profissionalmente, podendo assim oferecer a estabilidade financeiro para o Mason e para a Samantha. Estes crescem e se tornam adolescentes, com as marcas características desta fase da vida. O foco do filme está centrado em Mason. Samantha fica quase esquecida. As relações na escola são pouco abordadas. Mason faz muitos questionamentos sobre o sentido da disciplina e de um mundo de exigências e imposições. O tema é onipresente. Também a política tem breves referências, numa expressão de ódio ao que Bush representa.


A maior parte do filme se passa no Texas e os temas texanos também estão presentes. Vejam os presentes que Mason ganha. Uma bíblia e um rifle, mas isso já é mostrado de uma forma bem irônica. O filme termina quando Mason conclui o ensino médio e ingressa na universidade.  Mas antes ainda é feita toda uma retrospectiva de sua vida junto com o pai e junto com mãe. O filme é um tanto longo, tem 166 minutos de duração, o que foi bastante criticado por muitos.

O filme teve seis indicações ao Oscar: melhor filme, melhor diretor, melhor roteiro original, melhor ator coadjuvante, melhor atriz coadjuvante  e melhor edição. Ganhou apenas um prêmio, que foi para Patrícia Arquette, a Olívia, a mãe de Mason. O pai, Mason Sr. foi representado por Ethan Hawke, a mãe, Olívia, por Patrícia Arquette, Mason por Ellar Coltrane e Samantha por Loreley Linklater.


Quanto ao significado da palavra inglesa Boyhood, encontrada no título do filme, ela designa exatamente a história narrada no filme. Na tradução, seria - meninice, juventude, grupo de meninos, garotada.  Digo isso porque ao longo do filme isso não aparece e, obviamente, isso não era necessário dizer. Apenas para os que, como eu, não tem o domínio da língua inglesa.

O grande mérito do filme é sem dúvida, a abordagem de tão complicado tema. Como educar filhos em tempos de dissolução de casamentos, de relações superficiais e, especialmente, em tempos em que as finalidades da própria vida são profundamente questionados. As tradicionais respostas, os seus valores e os seus agentes perderam muito de sua credibilidade e confiabilidade.

segunda-feira, 2 de março de 2015

O Grande Hotel Budapeste.

Aproveitei o novo lançamento, em função do Oscar, do filme O Grande Hotel Budapeste, para vê-lo. É o contar de uma história, no cinema. É narrativa do começo ao fim. E que narrativa! E como foram bem empregados os recursos do cinema, cenários, figurinos, som e fotografia. O filme mistura drama e comédia mas prevalece a comédia. Isso se a disputa por herança não fosse sempre uma verdadeira tragédia.
O Grande Hotel Budapeste se situava na fictícia República Zubrowka.


A narrativa inicia num jantar entre um velho escritor e Zero Mustafa, o proprietário do agora decadente hotel Budapeste. Mustafa promete ao escritor contar a história, que remete aos anos 1930 e avança até o final de década de 1960.  O essencial gira em torno de um concierge, que pelo zelo extremo no exercício de sua função, chega a ser o proprietário do hotel. Como toda a história gira em torno deste personagem, vou dar o significado deste termo, que está ausente no Aurélio, mas não na Wikipédia. O seu significado mais amplo é o de porteiro, mas na hotelaria recebe um significado mais específico e ampliado. Vejamos:

"Em hotéis o concierge é um profissional que tem um balcão na entrada do hotel responsável por assistir os hóspedes em qualquer pedido que estes tenham, dos mais extravagantes aos mais simples como chamar um táxi, dar informações sobre o próprio hotel e seus serviços ou sobre a cidade e seus pontos turísticos, venda de passeios na região, locação de carros, reservas e indicações de restaurantes, ligar para farmácia, floricultura ou tabacaria...". O concierge da história atendia pelo nome de Gustave H.
O concierge Gustave e o mensageiro Zero. Esta dupla concerne o caráter de comédia ao filme.


Gustave era um concierge extremamente solícito. Se orgulhava de sua função e a ensinava ao seu ajudante, o mensageiro Zero Mustafa. Pronto, encontramos os dois personagens centrais do filme. Mustafa é um refugiado que encontrou emprego no hotel. Gustave, moralmente falando, extrapola em sua função. Atendia também aos desejos sexuais, especialmente, de senhoras idosas, de preferência bem idosas. O hotel era extremamente luxuoso e, portanto, atendia a hóspedes altamente endinheirados. Uma dessas senhoras veio a falecer, deixando em testamento parte de sua fortuna e um quadro de valor inestimável, para Gustave.

Aí começa a história policial. Os herdeiros não se conformam e o incriminam. Ele teria assassinado a rica senhora. Perseguições e fugas mirabolantes começam a acontecer. É a parte mais comédia do filme. Gustave conta em suas fugas com o auxílio do jovem Zero. Comédias precisam de trapalhadas. Em meio a essas trapalhadas existem também cenas de terror policial. Eram os anos 1930 e a ascensão dos regimes fascistas. Mas, enfim, foi dessa forma, pela via de herança testamentária que Gustave se tornou o proprietário do Grande Hotel Budapeste.
A rica senhora a quem o concierge prestava seus serviços. A origem da propriedade do hotel.


Em meio a esta narrativa também existe uma história de amor. Zero se apaixona por Agatha, que irá auxiliar também a dupla nos seus intentos. Será este vínculo sentimental que manterá o velho Zero Mustafa como hóspede de um dos quartos mais simples do hotel, fato que também promoveu o seu encontro com o escritor para que esta história fosse contada. O contar dessa história demorou apenas 99 minutos.
Cartaz promocional do premiado filme.

O filme era um dos favoritos ao Oscar principal. Junto com Birdman (http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/01/birdman-ou-inesperada-virtude-da.html), foi o campeão em indicações. Nove ao todo. Birdman levou o prêmio maior, de melhor filme. Também junto com Birdman, foi ganhador de quatro estatuetas, a saber: melhor figurino; melhor design de produção; melhor maquiagem e cabelo e a melhor trilha sonora. As outras cinco indicações eram para: melhor filme; melhor diretor; melhor roteiro original, melhor direção de fotografia e melhor edição.

A direção é de Wes Anderson. A segura e mágica interpretação de Gustave é de Ralph Fiennes e o jovem Zero Mustafa é de Tony Revolori e do velho, de F. Murray Abraham. O roteiro adaptado é do próprio Wes Anderson, retirado do original de um velho conhecido dos brasileiros, Stefan Zweig, do livro Coração Impaciente. Acima de tudo, é um filme muito agradável de se assistir. Mas concordo com a indicação de Birdman como o vencedor de o melhor filme.