segunda-feira, 7 de agosto de 2023

GRANDES ESPERANÇAS. CHARLES DICKENS.

Do Facebook: Mais ou menos assim: Em matéria de ciência sempre leia os livros mais novos, os mais atualizados. Em matéria de romances, de literatura, leia os mais antigos. Nem é preciso retroceder até Homero para conferir essa verdade. Estou escrevendo isso para dizer que eu li Grandes esperanças, de Charles Dickens. O livro foi escrito entre os anos de 1860-1861. O grande escritor britânico nasceu em 1812 e morreu em 1870. Ao término da leitura me sobrou uma exclamação: Que pena que a leitura terminou!. Em literatura, recorra aos mais antigos!

Grandes esperanças. Charles Dickens. Penguin & Companhia das Letras. 2022.
 

A minha edição do livro é da Penguin & Companhia das Letras, da coleção clássicos, com tradução de Paulo Henriques Britto, décima impressão, de 2022. O livro tem uma bela introdução, a cargo de David Trotter, além de uma nota sobre o texto, em que é mostrada a forma de sua publicação. Ele foi publicado por trechos semanais na revista All the Year Round, entre os anos de 1860 e 1861. Eu consigo imaginar a expectativa dos leitores em torno da ansiedade da espera do próximo capítulo. Eu tive uma experiência dessas com a minha mãe, nos anos 1950. Em Porto Alegre, naquele tempo circulava um jornal, com o título - A Nação -, basicamente destinado às colônias alemãs do Rio Grande do Sul. Ele publicava romances, nessa modalidade de folhetins. A próxima edição sempre era esperada com muita ansiedade e eu tinha que lê-la para a minha mãe. Este foi, inclusive, o meu primeiro contato com as letras e a alfabetização.

Mas deixando o saudosismo de lado, vamos para  As grandes esperanças. O que seriam essas grandes esperanças? E aí mais uma vez me volta o saudosismo, lembrando das minhas aulas de filosofia com o inesquecível professor Dom Antônio Cheuiche, na época, o simples frei Antônio. Ele dizia que o século XIX era o século das grandes esperanças, movidas pela ideia do progresso indefinido, motivado pelo avanço das ciências e pela capacidade de entendimento entre os humanos, com o fim do absolutismo político trazido pelo Iluminismo. Os conflitos seriam negociados pela mediação da racionalidade. O futuro seria determinado pelo progresso e pela paz. Tudo isso desmoronou já na segunda década do século XX, com a irrupção da Primeira Guerra Mundial e o que se seguiu.

Uma observação semelhante me levou à compra e à leitura do livro. Li, em algum lugar, que Charles Dickens era um cronista de sua época, colocando em sua obra os grandes temas e problemas da época do avanço da industrialização no Reino Unido. Tempos de progresso da Revolução Industrial e de problemas com a industrialização e a urbanização caótica. Do autor já tinha lido Um conto de natal, um clássico em que aparece Scrooge, personagem que inspirou o surgimento do famoso Tio Patinhas. Dele também tenho, mas ainda não li, As aventuras do Sr. Pickwick (1837), mas as letrinhas minúsculas da coleção - Os Imortais da Literatura Universal, ainda não me deram ânimo para a sua leitura. Mas vamos à obra, a sua grande obra derradeira.

O menino PIP é o grande personagem da obra. Sem pretender dar um spoiler, recorro a David Trotter, o autor da introdução da presente edição do livro, para um primeiro contato com a obra. Vejamos: "A característica mais imediata de Grandes esperanças é ser uma história de redenção moral. O protagonista, um órfão criado num lar humilde, nas primeiras décadas do século XIX, herda uma fortuna, e imediatamente rejeita os familiares e os amigos. Quando a fortuna perde o brilho, e depois desaparece por completo, ele é obrigado a assumir sua própria ingratidão, e aprende a amar o homem que o elevou e também o destruiu. A história é narrada pelo próprio protagonista..." Joe Gargery, e a irmã de PIP, a sra. Joe Gargery, além de Biddy são as personagens desse bloco da narrativa. Depois, o viver em Londres, entra em cena. Os personagens são múltiplos. Os movimentos da consciência de PIP se constituem no fundamental da obra. Um drama profundamente humano.

Nas palavras de Trotter, os grandes temas da obra são apresentados: "Questões de peso permeiam todo o romance, de todos os lados, deixando marcas em cada detalhe de descrição, cada lance da narrativa. À medida que vamos lendo, acompanhamos por dentro, por assim dizer, as formas que elas moldaram por fora. Tudo aquilo que o romance tem a dizer sobre a bondade (Joe e Biddy), sobre a culpa e o desejo (Pip), sobre a natureza do capitalismo (questões ligadas à herança..., a falsidade e a reverência ao dinheiro) e nenhuma dessas questões poderia ser deixada de lado numa introdução ao livro - ele o faz pela maneira como mede a pressão de cada uma e como lhes distribui os pesos". Swinburne, citado por Trotter, assim definiu o livro: "Os defeitos são quase tão imperceptíveis quanto manchas no sol ou sombras num mar ensolarado", passagem várias vezes presente no livro. Os entre parênteses são acréscimos meus.

O volumoso livro é dividido em três volumes. O primeiro com 19 capítulos; o segundo com 20 e o terceiro, também com vinte capítulos. O total de páginas é de 702. Ao final de sua leitura, um grande lamento: Que pena que terminou! Quero ainda ressaltar, em acordo com o autor da introdução, a presença da culpa na consciência de Pip, o menino querido, protagonista de todo o romance. Sem dúvida um grandioso tema - profundamente humano, que recebe sempre um merecido castigo.

Deixo ainda a contracapa do livro: "Considerado por muitos críticos o principal romance de Charles John Huffman Dickens (1812-1870) Grandes esperanças conta a história de Pip, um órfão de família humilde que ao receber uma herança renega o passado e muda-se para Londres para tentar inserir-se na alta sociedade. Saudado por autores como Bernard Shaw e G.K. Chesterton pela perfeição narrativa, este romance discute, na figura do protagonista, a imoralidade, a culpa, o desejo e a desilusão.

Esta edição traz o final considerado definitivo, escolhido por Dickens após ceder às críticas de que o primeiro era triste demais, e também um apêndice com o original, preferido por parte dos leitores (691-692).

A introdução de David Trotter, especialista em literatura britânica do século XIX, contextualiza o livro em sua época, revelando as ideias de reforma social defendidas pelo autor". Antes de terminar, uma questão sobre Grandes esperanças. Quais seriam elas? Um vida no fausto da riqueza mas de falsidades ou a vida simples mas autêntica vivida entre as pessoas simples e pobres. Um grande romance. Leitura atualíssima.



sexta-feira, 21 de julho de 2023

Água funda. Ruth Guimarães. Vestibular 2024. UFRGS.

Na retomada das leituras sugeridas para vestibular chegou a vez de Água funda, da escritora paulista, a primeira mulher negra a ingressar na Academia Paulista de Letras, Ruth Guimarães. A sugestão partiu da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O romance regional tem como cenário as fazendas do Vale do rio Paraíba, entre os estados de São Paulo e de Minas Gerais. O ano de publicação foi o de 1946, pela editora Globo, de Porto Alegre. A maior riqueza do livro é a sua linguagem, uma espécie de prosa poética, dando voz ao povo simples e humilde daquele tempo e daquela região. Isso ela conhecia muito bem.

Água funda. Ruth Guimarães.  Editora 34. 2023.

Ruth Guimarães nasceu em Cachoeira Paulista, mas desde cedo andou por cidades da região do Vale do Paraíba, e também por cidades de Minas Gerais, situadas nas proximidades. Em São Paulo fez a maior parte de seus estudos, passando pela sua grande universidade. A fortuna não a acompanhou. Trabalhou para se sustentar, bem como a dois irmãozinhos menores. Numa entrevista contou que sua avó era contadora de histórias. Dela certamente herdou a arte. Se ela não teve fortuna, muito menos os seus personagens da Água funda. Eles tinham dificuldades de entender as amarguras que a vida lhes reservava. Tudo era culpa do destino. Não havia valentia que com ele pudesse.

A edição que tenho em mãos é da Editora 34. É caprichada. Tem prefácio de Antônio Cândido. Aliás, dois. O oficial data de 2003. Nele ele faz referência às notas que escrevera para a edição de 1946, que ele perdera. A editora as recupera e as põem ao final do livro. Uma preciosidade. Trata-se de Antônio Cândido, o de Os parceiros do Rio Bonito. Também tem outras críticas e trechos de entrevistas por ela concedidas. São de Brito Broca, Álvaro Lins e Nelson Vainer. De Antônio Cândido, de sua versão de 1946, tomo a apresentação do livro:

"A melhor qualidade do romance de estreia da sra. Ruth Guimarães, Água funda, é o tom pessoal. Num momento em que as nossas ficcionistas não resistem ao fascínio do livro de sucesso, à costumeira história neorrealista e sentimental, a jovem escritora ouviu apenas a sua vocação e, sem preocupar-se com moda ou tendências do público, escreveu uma obra que percebemos impulsionada por nítida exigência interior. Água funda, graças a esta impressão, refresca agradavelmente a nossa sensibilidade e revela uma escritora que poderá atingir um nível literário de primeira ordem. [...]

A sra. Ruth Guimarães conta duas histórias, saborosamente entremeadas de pequenos casos e embelezadas por um rico acervo de comparações sertanejas: a história dos fazendeiros primitivos dos Olhos D'Água e a história de Joca, caboclo que vive na mesma fazenda, meio século depois". Conta-nos a aventura amorosa de Dona Carolina com o moço de outra fazenda, posto para fora dela pelo proprietário, o seu pai. A história de Joca se complementa com a de Curiango. O destino lhes apronta das suas. Histórias de dor e de sofrimento.

A história da fazenda Água funda remonta aos tempos da escravidão. Ruim como só ela era a Dona Carolina. Mas a ruindade não acabara com a escravidão. Nem com a modernização e a mecanização. Até levavam gente para outras terras, sob um milhão de promessas, para voltarem sem absolutamente nada. Da vida tinham pouca compreensão. Crendices e superstições lhes davam direção. Por elas conseguem a sublimação. Das orelhas do livro, tomo ainda três parágrafos:

"Inspirado no pensamento caipira, cujo cerne é o medo, a autora formula não só o tema, mas o próprio estilo literário de Água funda. Há uma literatura residual, fragmentária e arcaica no misticismo popular e nos causos que o expressam. Mário de Andrade, amigo de Ruth, foi um dos garimpeiros dessas permanências inspiradoras do saber rústico.

Ela não se ateve aos arcaísmos da fala e do pensamento. Desvendou neles o mistério e as metamorfoses, a permanência do que se acaba, a poderosa Sinhá Carolina, enganada e desaparecida, retorna caduca e mendiga. A fazenda escravista se torna empresa em mãos alheias, transfigura todos que a tocam, é o instrumento da praga, da maldição que a todos suga para dentro do círculo dos andantes, os condenados a uma busca sem fim.

A peculiar ordenação do tempo do pensar e do narrar fazem desse livro de Ruth Guimarães, de 1946, uma obra tão original quanto Sagarana, de Guimarães Rosa, do mesmo ano. Além do que, Água funda é obra precursora e antecipadora do realismo fantástico latino-americano de autores como Manuel Scorza, Gabriel García Márquez, Juan Rulfo". Deixo ainda a parte final da obra:

"Pois essa praga caiu. Veja: o Bugre morreu de morte feia. Esse desconfio que não foi por causa de praga, pois não devia nada. Seu Pedro é que vive dizendo que aquela cobra foi mandada. 'Era um urutu preto, que nem um pecado. Pra mim foi mandada. Pois cobra mordeu o homem tanta vez e não aconteceu nada, como é que daquela ele foi'? O Santana morreu matado. O Antônio Olímpio matou a mulher e foi parar na cadeia. Aquele morre lá. O Pais encrencou com o patrão e foi embora com u'a mão adiante, outra atrás. Luís Rosa bebe de cair. Anda andando por essas estradas, com uns olhinhos de piaco-piaco. Com o Bebiano aconteceu o que aconteceu, no desastre da usina. Um dia está aqui, outro dia não se sabe dele. Aquele sossega só com a morte. Assim mesmo, não sei. Até em Curiango a praga acertou, de ricochete. Enquanto o pai foi vivo, foi um cabresto para ela, mas depois que morreu... Não pode contar com o marido e não é mulher pra ficar sozinha. É moça demais e é bonita demais. Tudo no diacho dessa mulher faz a gente lembrar de correnteza. Tem o andar bamboleado e macio de veio d'água. Tem uma risada de passarinho nascido perto de cachoeira. E o lustro daqueles olhos pretos é ver lustro de jabuticaba bem madura, molhada de chuva.

Agora que fechou a volta, a praga pode subir a serra, atrás de quem a rogou. A troco de que tudo isso aconteceu, não sei. E é um pecado. Curiango estar pagando o que não fez. Ê mundo errado!..

Bom. Não sei não. Não sei... Deus sabe o que faz, e a gente não sabe o que diz.

Cala-te, boca!

Se aconteceu, é porque era bom que acontecesse".

Ruth Guimarães nasceu no ano de 1920 e morreu em 2014, nascimento e morte na cidade de Cachoeira Paulista. Ingressou na Academia Paulista de Letras, em 2010. Que tempos!

terça-feira, 18 de julho de 2023

LISÍSTRATA. A greve do sexo. Aristófanes. Vestibular 2024 - UFRGS.

Retomei nesta semana a leitura de obras indicadas para vestibular. São sempre grandes indicações. Não é por acaso que um livro é indicado para tal. Recomecei com uma peça de fino humor, uma comédia. Trata-se de Lisístrata - A greve do sexo, de Aristófanes. A comédia data do ano de 411 a.C.. A comédia não tinha a mesma posição das tragédias, mas também contava com financiamentos públicos para a sua produção. Participavam também de competições. Lisístrata é uma indicação para o vestibular - 2024 - da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Lisístrata - a greve do sexo. Aristófanes. L&PM 2023. Tradução: Millôr Fernandes.

Lisístrata chama mais a atenção pelo seu subtítulo - A greve do sexo. Lisístrata é o nome da mulher que organizou e liderou esta famosa greve e o motivo pareceu muito mais do que justo. A Grécia, depois de derrotar os persas nas chamadas Guerras Médicas, travou inúmeras lutas entre as próprias cidades gregas, as chamadas guerras do Peloponeso (431 a 404 a.C.). A participação dos maridos nessas guerras os afastava de seus lares e, em consequência, também de suas esposas, estando elas em plena fase de desejos. E, quais eram os motivos para essas guerras? Enriquecerem pelos saques e pilhagens das riquezas das cidades vizinhas. Era demais!

Aristófanes, tudo faz constar, tinha refinada educação filosófica e musical. A produção de uma peça exigia de seu autor ser também o seu produtor, responsável também pela parte musical. Ele tinha que cuidar de tudo. Também vemos Aristófanes participar de O Banquete de Platão. Em seu discurso busca explicar as origens do amor, mas não deixa de mostrar também a sua profunda ironia com relação à sexualidade, ou à masculinidade dos políticos atenienses - "desinteressados pela família e voltados exclusivamente para as relações com os jovens" -, como lemos na introdução de O Banquete, escrita por J. Cavalcante de Souza, da editora DIFEL. Está aí, o tema, ou melhor, o motivo da greve. "Desinteressados pela família".

As protagonistas da peça são as mulheres das diferentes cidades gregas: Lisístrata, Cleonice, Mirrina e Lampito. Também participam um coro de velhos e de mulheres, soldados, marido e comissário. A força da peça está nos diálogos provocantes, refinados de ironia e sarcasmo e também fortes conotações de refinado erotismo. As mulheres, antes do ato da greve e usando de seus atributos de sedução, deixavam os maridos em total estado de pane, à beira de incontidas explosões. Resta dizer que as mulheres serão as vencedoras, a greve é bem sucedida e tem um final feliz. A tão desejada paz.

A peça termina numa grande confraternização. Vejamos o encerramento da comédia, num convite à festa, por um espartano e uma admoestação final de Lisístrata: " Venham todos depressa que a dança é bela, a música contagia, nossas donzelas são lírios a serem colhidos pelas mãos mais hábeis. Nossas mulheres estão lindas. Nunca foram tão lindas! Batem no chão com os pés velozes, lançam ao vento as longas cabeleiras; e as bacantes ondeiam o corpo sensual, em louca tentação, estimuladas pelo Deus do Vinho. Evoé! Evoé! Venham todos dançar e cantar em honra da vitória da mulher!"

Lisístrata: "E agora, basta! partam todos que eu também tenho direito ao meu descanso (risos, alegres, palmas, concordância). A comemoração pública terminou. Que cada um, agora, aproveite bem o seu prazer particular. Cada homem recolhe sua mulher e volta para casa. Mas atenção: os espartanos, as suas, os atenienses, as deles. Cada um deve se contentar com o que tem. Que ninguém se engane de propósito, trocando sua mulher por outra melhor, pois isso pode começar uma nova guerra".

Quanta atualidade está contida nessa comédia de 411  anos a. C.. O tema do machismo, proeminência masculina nos debates públicos, mulher e finalidades de procriação e afazeres domésticos, a ganância humana, desejos de riqueza fácil pela pilhagem das riquezas dos outros, a busca pela paz e a aversão à guerra, ainda mais quando se trata de uma guerra entre cidades de um mesmo país. Uma outra coisa também não passa despercebida. Eles não eram tão moralistas como os moralistas de hoje. As hipocrisias do tempo presente. Não é por nada que uma das grandes características dos conservadores extremistas (fascistas) é a sua preocupação com o comportamento sexual dos outros.

O livro que eu li é da L&PM Pocket (2023). A tradução é de Millôr Fernandes. Ao final existe uma nota - sobre a peça. Na parte final lemos o seguinte: "Em meio a tal panorama de perigo iminente e de surda guerra civil foi encenada Lisístrata. Neste libelo pacifista, pró união dos estados gregos, as mulheres - que na vida real sequer eram consideradas cidadãs atenienses - reúnem-se, deliberam sobre o futuro de sua sociedade e dos seus, ameaçado pela guerra, e tomam uma atitude drástica. O caráter satírico dos gêneros cômicos facilitava com que se invertessem os costumes e fossem colocadas em cena mulheres com papéis importantes (o que também acontece com outras peças do autor). A obra de Aristófanes é recheada de recursos cênicos satíricos, por vezes absurdos e burlescos, e o tom obsceno do enredo - como as megaereções dos maridos das grevistas - provém, em parte, das origens mágicas e ritualísticas do teatro e das relações deste com os cultos pagãos e humanistas à fecundidade e à fertilidade.

Embora fizessem parte do caráter carnavalesco das comédias os mais diversos disparos contra as instituições e os cidadãos ilustres, Aristófanes usa e abusa de acusações e referências críticas a políticos, administradores da época e demais cidadãos (depois da encenação de Os babilônios, chegou a sofrer um processo judiciário devido aos ataques contidos na peça). A despeito do tom cômico, em Lisístrata - assim como nas outras obras do comediógrafo - há seriedade no trato de alguns sentimentos: o amor pela paz, a nostalgia pelos primórdios da democracia ateniense, ataques aos sofistas e aos seus novos princípios educativos, a ode ao campo e a denúncia dos perigos da cidade, local de perdição e corrupção.

Aclamado pelo público e desprezado pelos eruditos, mesmo assim o gênero da comédia antiga se desenvolveu e sua chama perdura até hoje, nas incontáveis formas cômicas que são suas herdeiras. Mas daquela comédia dramática antiga, que tanto sucesso obtinha, apenas peças de Aristófanes chegaram até nós". Uma notável indicação de leitura.

Um adendo. Em 17.06.2025. De Infinito em um junco - A invenção dos livros no mundo antigo, de Irene Vallejo. "De índole parecida (Chaplin), os personagens de Aristófanes tentam parar a guerra mediante uma greve sexual, ocupam a Assembleia ateniense para decretar a comunhão de bens, debocham de Sócrates ou planejam curar a miopia do deus da riqueza para que distribua melhor os patrimônios. Depois de uma série de andanças e artimanhas estapafúrdias, todas as obras acabam num banquete pantagruélico, multitudinário e festivo". Um pouco mais adiante, a autora cita Andrés Barba:

"'Para nós, Aristófanes inaugurou uma outra via, estabelecida e criada pela magia do teatro: chegar à paz por meio do riso, à liberdade por meio do riso, à ação política por meio do riso'". E a autora continua; "Esse tipo de comédia, a chamada comédia antiga, durou tanto quanto a democracia ateniense contra a qual investiu. 

O humor de Aristófanes não teve sucessor. Poderíamos dizer que acabou, mais do que com ele, antes dele. No fim do século V a. C., Atenas foi derrotada por Esparta, que apoiou um golpe de Estado oligárquico na cidade. Seguiram-se décadas de turbulência política e ânimos abalados pela derrota. O tempo da crítica desbocada havia passado. O próprio Aristófanes continuou a escrever comédias, mas elas se tornaram cautelosas, com argumentos cada vez mais alegóricos, sem alusões pessoais nem sátira aos governantes.

Na geração seguinte, os gregos foram anexados ao império de Alexandre e aos reinos de seus sucessores. Esses monarcas não toleravam piadas" (Páginas 211-212).

Mais um adendo. Em 17.06.2025. Há tempos eu queria fazer o registro de que Lisístrata também faz parte da história do Brasil. É inacreditável mas faz. Trago o fato por um relato de Elio Gaspari ocontido em seu livro - As ilusões armadas 1. A ditadura envergonhada. Vejamos parte do relato: "No dia 2 de setembro (1968), durante aquele horário sonolento da manhã que na Câmara se denomina pinga-fogo, no qual os parlamentares ocupam a tribuna para tratar de assuntos irrelevantes, o deputado Márcio Moreira Alves tomou a palavra para condenar uma invasão policial que acontecera dias antes na Universidade de Brasília". O discurso passou praticamente despercebido dos noticiários. Gaspari continua a nos dar detalhes do discurso e do episódio:

"Impressionado com a greve de mulheres proposta pela ateniense Lisístrata na peça de Aristófanes, que assistira havia pouco em São Paulo, Moreira Alves voltou à tribuna e sugeriu que, durante as comemorações da Semana da Pátria, houvesse um boicote às paradas. 'Esse boicote', acrescentou, 'pode passar também (...) às moças, às namoradas, àquelas que dançam com os cadetes e frequentam os jovens oficiais'".

Este episódio fez explodir uma grave crise no governo. Ela culminou com o fechamento do Congresso, que não concordara com o pedido de julgamento do deputado e com o ato mais terrível da ditadura civil-militar, com a edição do AI-5, de 13 de dezembro de 1968. Estes episódios estão narrados a partir da página 316.




sexta-feira, 14 de julho de 2023

O HOMEM REVOLTADO. Albert Camus. Nobel - 1957.

O homem revoltado ficou na minha estante desde 2001 para ser lido por inteiro. Não foi por falta de tentativas anteriores. Falta de fôlego e outras ocupações me fizeram desistir, ao menos em duas oportunidades. Confesso que não terminar a leitura de um livro não é uma característica minha. Ler O homem revoltado, de Albert Camus não é uma tarefa fácil. Trata-se, com certeza, de um dos livros mais eruditos que eu já li. Trata-se de um ensaio que analisa o ser humano em seu inconformismo ao longo de toda a história.

O homem revoltado. Albert Camus. Record. 1999.

Albert Camus é franco argelino. Nasceu na Argélia em 1913 e morreu na França em 1960, num acidente automobilístico, nas proximidades de Paris. Sobre este acidente pairam dúvidas de que foi um assassinato comandado a partir de Moscou. Haveria motivos para tal? Se considerarmos a possibilidade do sim, certamente - O homem revoltado - deverá ser apontado como uma das principais causas. Um dos temas preferidos do filósofo, escritor e jornalista era o totalitarismo soviético sob o comando do stalinismo. Assassinatos em série, em nome de uma causa, era um grande absurdo que ele reafirmava constantemente.

Albert Camus era um menino pobre a quem a primeira guerra fez órfão prematuramente. Viver, para ele, passou a ser um imperativo do sobreviver. Desde cedo, professores atentos perceberam o seu gênio e o ajudaram, até mais tarde, em seus estudos universitários. Certamente toda essa trajetória de dificuldades pessoais, das injustiças do colonialismo francês sobre a Argélia e o viver ao longo de duas guerras o transformaram, ele próprio, em um homem revoltado. A revolta o levou à militância. Causas não lhe faltaram.

Abri este post falando que O homem revoltado é uma obra de rara erudição. Quem é o homem revoltado? Quais são as suas características? Quando ele efetivamente existiu? Este é o tema deste monumental ensaio. A análise começa pelos gregos e não tem um término. Só acabará efetivamente com a morte do último homem. A revolta acompanha o ser humano em sua luta contra o seu destino, desde os gregos, passando por todos os grandes seres humanos que tiveram consciência do seu existir: filósofos, literatos, ideólogos, pintores, políticos. O homem revoltado se defronta com os temas comuns à filosofia: a revolta, a insubordinação, a revolução, justiça, injustiça, liberdade, igualdade, sofrimento, racionalidade, irracionalidade, autoritarismo, ideologias, alienação, massas e por aí vai, passando também pelos principais pensadores.

O livro teve a sua publicação no ano de 1951, e como lemos na orelha da capa, ele lhe rendeu um verdadeiro linchamento: "Quando foi publicado pela primeira vez em 1951 O homem revoltado valeu a Albert Camus um verdadeiro linchamento promovido por intelectuais franceses encabeçados pelo romancista e filósofo Jean-Paul Sartre". E qual teria sido o motivo? Continuamos, na mesma orelha: "O ataque a Camus aos crimes perpetrados em nome da revolta repercutiu mal, e ele ainda foi acusado de defender a liberdade  de forma simplista, privilegiando a questão individual. Foi assim que, por várias décadas, a complexidade de seu pensamento foi reduzida a uma tese de direita". A explicação continua:

"Stálin ainda vivia, muita gente começava a se desentender com o Partido Comunista, mas apesar disso Camus não podia ser perdoado ao criticar igualmente a violência e o totalitarismo de direita e esquerda. Não se podia aceitar uma crítica tão forte contra as prisões e os assassinatos perpetrados em nome da revolução. O novo humanismo de Camus - talvez por vezes contraditório, mas certamente sincero - era repudiado radicalmente". 

A descrença no mundo do socialismo real, aquele que efetivamente existiu, ou o stalinismo entrou em decadência, em favor de um socialismo democrático, após 1956, com a realização do XX Congresso do Partido Comunista (XX - PCUS), quando Nikita Krushchov tornou públicos os crimes cometidos pelo regime stalinista. A partir de então, os próprios partidos comunistas, sob orientação da Terceira Internacional perdem terreno em favor dos partidos socialistas, que defendem o socialismo com democracia. (Citaria como exemplo, aqui do Brasil, o caso da ascensão de Lula e do PT e a queda do Partidão na luta hegemônica dos ideais socialistas). Este será o tempo da reabilitação de Camus e do seu O homem revoltado. Vejamos a parte final da apresentação do livro, agora já na orelha da contracapa.

"Mais de cinquenta anos depois de sua primeira publicação, com as disputas ideológicas e os questionamentos existenciais da humanidade radicalmente deslocados de seus eixos, o livro adquire uma dimensão especial. Não é possível mais ignorar crimes contra a humanidade seja quais forem seus pretextos revolucionários. A revolta não desculpa tudo. É assim que o humanismo proposto por Camus revela-se fundamental para aqueles que preferem defender os seres humanos antes de defenderem sistemas teóricos abstratos. E é por isso e muito mais que O homem revoltado é um dos livros mais importantes do século (XX)".

Em algum lugar, nas consultas que eu fiz ao longo da leitura, eu li que as polêmicas entre Sartre e Camus em torno de O homem revoltado se transformaram na "Guerra Fria Cultural" desse período. Muito apropriado. Já localizei. Trata-se de uma observação que fiz na primeira página do livro. Tem outra, que remete ao livro de Tony Judt, O mal ronda a terra, de que o livro promoveu a ruptura de Camus com o seu próprio passado.

O ensaio é longo. São, no total, 351 páginas divididas entre uma introdução, sob o título de - o absurdo e o assassinato -, e cinco capítulos: I. O homem revoltado; II. A revolta metafísica; III. A revolta histórica; IV. Revolta e arte; V. O pensamento mediterrâneo. A introdução merece um destaque todo especial. O seu primeiro parágrafo também aparece na contracapa como apresentação do livro. Vejamos:

"Há crimes de paixão e de lógica. O código penal distingue um do outro, bastante comodamente, pela premeditação. Estamos na época da premeditação e do crime perfeito. Nossos criminosos não são mais aquelas crianças desarmadas que invocam a desculpa do amor. São, ao contrário, adultos, e seu álibi é irrefutável: a filosofia pode servir para tudo, até mesmo para transformar assassinos em juízes". Albert Camus recebeu o Prêmio Nobel de Literatura do ano de 1957.


sexta-feira, 7 de julho de 2023

Tempo de reportagem. Histórias que marcaram época no jornalismos brasileiro. Audálio Dantas.

Dia de festa. Jantar na casa de Regina e Valdemar. Levo um livro (Padura) e um vinho. Lá também se encontrava o Pai Firmino, o venerável da sátira e do humor. Pai Firmino e a excelentíssima também trouxeram livros. Ganhei um. Devo dizer que meus olhos brilharam quando vi que o livro era de autoria do Audálio Dantas. Tempo de reportagem - histórias que marcaram época no jornalismo brasileiro. Era um encontro/celebração no moderno Jardim de Epicuro, numa de suas melhores versões.

Tempo de reportagem. Audálio Dantas. LeYa. 2012.

De Audálio Dantas eu sabia apenas o essencial, até o dia em que eu li, As duas guerras de Vlado Herzog - da perseguição nazista à morte sob tortura no Brasil. A partir daí, virei admirador incondicional. O que eu mais apreciei no livro e que eu agora localizei com facilidade, porque devidamente sublinhado, é a história de um jovem que estivera na Praça da Sé, por ocasião do culto ecumênico, na Catedral da Sé, em memória de Vlado, sétimo dia. O jovem tinha por nome Márcio José de Moraes. O que eu sublinhei estava num entre parênteses: "(Três anos mais tarde, iniciando sua carreira na magistratura, o jovem Márcio tomaria uma decisão que teria tudo a ver com a história que estava sendo contada naquela praça, acrescentando-lhe um novo capítulo - a sentença que condenou a União pela prisão ilegal, tortura e morte de Herzog -, o qual marcaria sua vida e a própria história do país"). Por ocasião da leitura fiz um post especial.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2016/01/a-sentenca-de-condenacao-da-uniao-pela.html

Agora eu li atentamente o livro com o qual eu fui agraciado. É uma preciosidade. São treze reportagens selecionadas e comentadas por Audálio, publicadas originalmente na Folha da Noite, revista O Cruzeiro, revista Realidade e, uma delas, na Playboy. A revista Realidade tem toda uma história singular no jornalismo brasileiro. Foi uma das que mais sofreu na ditadura militar brasileira. Ela simplesmente trombou com os "anos de chumbo". Eu falo das reportagens:

1. Diário de uma favelada: a reportagem que não terminou. Esta reportagem, desnecessário dizer, se transformou no famoso livro Quarto de despejo, da escritora favelada Carolina Maria de Jesus. A favela era o quarto de despejo da maior e mais rica metrópole brasileira. A dor da fome é a nova escravidão, ou a escravidão remanescente, a indenização permanente pela abolição. A reportagem foi publicada pela Folha da Noite, em maio de 1958, sob o título: O drama da favela escrito por uma favelada.

2. O circo do desespero. O fato narrado, um verdadeiro horror. Um concurso carnavalesco de resistência de dança. Das 15h00 de sábado até as 9h00 de terça-feira, com breves intervalos, controlados por rigorosos e empolados juízes. Uma promoção da TV Record, com patrocínio de um produto de limpeza. O local do surreal espetáculo era o Ibirapuera. Haja frevo, a dança que mais cansava os participantes. A premiação era uma merreca em dinheiro, necessidade primordial dos participantes. Profundamente desumano. A reportagem foi publicada na revista O Cruzeiro, em março de 1963, sob o título: O circo do desespero.

3. Nossos desamados irmãos loucos. Uma reportagem de inimaginável sofrimento humano. Mostra como eram tratados os "loucos", nessa época. Trata-se do hospital psiquiátrico do Juqueri, em Franco da Rocha, em São Paulo. É a descrição do "espetáculo" da miséria humana. Hoje o Juqueri está em toda parte. Nossos amados irmãos loucos foi publicada na revista O Cruzeiro, em março de 1963.

4. A nova guerra de Canudos. Possivelmente seja a mais impactante das reportagens. A nova guerra e a nova destruição é uma referência à construção de uma barragem no rio Vaza-Barris, soterrando a área do conflito. A história da primeira guerra também é recontada, por um menino sobrevivente, o menino Bruega, agora o velho Bruega. Nada, ou muito pouco, mudou. A nova guerra de Canudos foi publicada na revista O Cruzeiro, em dezembro de 1964.

5. Oh, Minas Gerais! Uma reportagem sobre o jeito mineiro de ser. Narra a chegada da minissaia na terra da Tradicional Família Mineira. Uma revolução nos costumes. Um desnudar de hipocrisias. Minas Gerais se industrializa Surge uma Belo Horizonte moderna. Oh, Minas Gerais! é uma publicação da revista Realidade, de janeiro de 1970.

6. Doença de menino. A mais triste das reportagens. A doença descrita é a mortalidade infantil. O cenário é o estado de Pernambuco, o bairro de Beberibe, no Recife e a cidade de Amaraji, na rica Zona da Mata-sul, em meio aos canaviais. Uma vida nada doce. A doença de menino é simplesmente naturalizada. É a vontade de Deus se cumprindo! (Pensei muito no SUS, criado junto com a Constituição de 1988. Não canso de dizer, em todas as minhas falas, que o SUS é o maior patrimônio do povo brasileiro). Doença de menino foi publicada na revista Realidade em fevereiro de 1970.

7. Povo caranguejo. Reportagem sobre a captura de caranguejos nos mangues da foz do rio Sanhauá, na Paraíba. Nessa reportagem, além de mostrar as aflições dos caçadores de caranguejo, da captura até a venda, ele também interpreta a subjetividade dos coitados dos bichinhos, em busca da manutenção de sua liberdade. Povo caranguejo foi publicada na revista Realidade, de março de 1970.

8. Chile 1970. É uma reportagem sobre a cobertura das eleições chilenas do ano de 1970, que levaram Salvador Allende à presidência da República. O antes e o depois, com todos as suas tensões. Na volta, muitos amigos o esperavam no aeroporto em São Paulo, em função de boatos de sua prisão. Tempos da ditadura. Três anos depois o Chile sofreria o sanguinário golpe do general Pinochet. Chile 1970 foi publicada na Realidade, de novembro de 1970.

9. Oh, Canadá!. Mais uma reportagem internacional. É a tensão no pacífico e próspero país, causada pela sua dualidade na colonização. A parte francesa de Quebec queria se tornar independente do resto, de colonização inglesa. Audálio chegou a entrevistar o primeiro ministro Trudeau, que tinha um pé nas duas origens históricas. Em Toronto teve um encontro com Florestan Fernandes, então ali exilado. Oh, Canadá! foi publicada em Realidade, em dezembro de 1970.

10. Joaquim Salário Mínimo. Nessa reportagem, além de contar a história do salário mínimo, conta também as dificuldades de quem o recebe e dele tem que viver. Reportagem difícil de fazer, pois, pelo medo da censura, o governo deveria estar totalmente isento de culpa, embora fosse ele a fixar o seu preço. A Vila Guilherme, na cidade de São Paulo é o cenário dessa reportagem. É lá que morava o Joaquim Salário Mínimo. Reportagem publicada em Realidade, no mês de janeiro de 1971.

11. O prédio. Outra reportagem de cunho social. O "personagem" da vez é o edifício Martinelli. De seu esplendor até a sua mais degradante decadência. É um relato do que se passava nesse verdadeiro antro da esplendorosa São Paulo. Tem muito da história de São Paulo, de um dos seus centros de maior efervescência, sob todos os aspectos, no triângulo traçado entre as ruas São João, São Bento e Líbero Badaró. O edifício sobrevive, sendo a Prefeitura de São Paulo, a proprietária. O Prédio foi publicada em Realidade, em abril de 1971.

12. À margem. Belíssima reportagem descrevendo as margens do rio São Francisco, o rio da integração nacional. Quanta miséria e quanta tristeza. Personagens únicos. Essa reportagem me proporcionou um reencontro. Nos meus tempos de filosofia, em Viamão, RS., nossos olhares de reverência estavam voltados para um estudante, já da teologia. Era Carlos Moraes, tido por todos como a maior inteligência que já passara por Viamão. Sabíamos, por boatos, que ele estava encrencado com a ditadura e que fora trabalhar na revista Realidade. Nunca mais tinha ouvido falar. Ele era da diocese de Bagé. As dioceses circunscreviam a geografia do imenso seminário de Viamão. Já encomendei livros seus. Faleceu em São Paulo, onde foi jornalista e escritor, em 2019. Carlos propôs o Nobel da Paz para o rio São Francisco. Ele teve que interromper sua participação nessa reportagem por ordem militar, vinda da cidade de Bagé. Os horrores da ditadura militar. Reportagem da Realidade, março de 1972.

13. A maratona do beijo. Uma reportagem semelhante a de O circo do desespero, o concurso sobre a resistência de dançar no carnaval. Agora era o tempo da maior duração de beijo. Uma maratona de sessenta dias, com os intervalos mínimos possíveis e necessários. Reportagem para a Playboy, de agosto de 1993. Na apresentação dessa reportagem é contado um pouco de sua história à frente do Sindicato dos jornalistas, em 1975.

São estas as treze reportagens, mas o livro não acaba ali. Ele tem um apêndice, tão precioso quanto o próprio livro. Uma entrevista/ homenagem, conduzida por Claudiney Ferreira, com a participação de Eliane Brum e Ricardo Kotscho. A reconstituição de sua vida, desde Tanque d'Arca (AL), até a sua trajetória de vida e resistência em São Paulo. Audálio traz em sua vida um prêmio da ONU, por sua atuação em defesa dos Direitos Humanos. O livro teve a sua publicação no ano de 2012, numa publicação da LeYa. O livro é prefaciado pelo amigo Fernando Moraes. Deixo ainda a resenha do livro sobre Herzog, com um adendo.

As duas guerras de Vlado Herzog. Audálio Dantas. Civilização Brasileira. 2012.


http://www.blogdopedroeloi.com.br/2016/01/as-duas-guerras-de-vlado-herzog-audalio.html

segunda-feira, 3 de julho de 2023

BRANDEMBURGO. Henry Porter. Romance de espionagem.

Me aposentei definitivamente da sala de aula no segundo semestre do ano de 2012. Para não ter uma recaída e permanecer por mais tempo, empreendi uma viagem para o berço da civilização (Grécia e Itália) para os dias que teria que voltar para o segundo semestre. Não queria ter mais obrigações sistemáticas. Após a volta, lembro, havia muitas promoções de livros em liquidação nas Livrarias Curitiba. Comprei muitos, mesmo sem os ler de imediato. Semana passada retomei um deles, que como está assinalado, foi comprado em 2012. Ele ainda tem a etiqueta com o preço: $ 12,90.

Brandemburgo. Hernry Porter. Record.2005.

Trata-se de Brandemburgo, romance de espionagem do editor britânico da Vanity Fair, Henry Porter. Devo dizer que não sou muito afeito a esse tipo de leituras, mas como o livro mistura muita história com a espionagem, eu me dei como muito satisfeito com a leitura. A narrativa fluiu bem e sempre colocava o passo seguinte em perspectiva. Foram 487 páginas, lidas de um só fôlego. O livro oferece grandes surpresas ao longo de sua leitura e um final absolutamente surpreendente. Na capa, junto com o título e o autor há uma observação do The Economist: Brandemburgo é uma reconstrução minuciosa da Guerra Fria em seus momentos mais insidiosos..."

Ao final do livro Porter insere uma Nota do autor. Dela selecionei algumas passagens, a começar pelo parágrafo inicial: "A Alemanha Oriental foi o único integrante do bloco comunista a desaparecer como um Estado. Uma década e meia após o Muro ter caído e o processo de unificação alemão ter começado, muitas pessoas teriam dificuldades em traçar num mapa a fronteira entre as Alemanhas Ocidental e Oriental. A própria noção de duas Alemanhas, de uma Cortina de Ferro cortando a Europa em duas, parece surpreendente hoje, especialmente para aqueles nascidos depois de 1975. E nada era mais bizarro durante essa era de divisão que a situação de Berlim Ocidental, um enclave livre 160 quilômetros para dentro do território comunista, inabalavelmente garantido pelos aliados ocidentais, mas cercado por torres de vigia, arame farpado e concreto do Muro de Berlim".

O famoso portão de Brandemburgo, cenário da parte final do romance.

Creio que estão dadas as primeiras dicas em torno do romance, mas tem mais: "Tentei o máximo possível tecer minha história em torno da sucessão de eventos que ocorreram entre o começo de setembro e o fim de semana de 11-12 de novembro de 1989. As datas do fechamento das fronteiras na Tchecoslováquia, do transporte de refugiados orientais para a Alemanha Ocidental, os horários e as rotas das manifestações de Leipzig, e a sequência de eventos de 9 de novembro são todos, espero, acurados. Também tive o cuidado de usar as palavras exatas ditas por Gorbachev em 6 de outubro, pelos pastores da Nikolaikirche, em Leipzig, e pelas pessoas que estavam presentes na crucial entrevista que Gunther Schabowski deu em Berlim Oriental em 9 de novembro. Trechos de transmissões de rádio e televisão dos dois lados do Muro também foram reproduzidos palavra por palavra"

Tem mais, agora envolvendo personagens: "Embora esta seja claramente uma obra de ficção, algumas pessoas reais nela aparecem. Erich Mielke, o chefe da Stasi, faz uma ponta. Espero ter feito justiça a ele. O tenente-coronel Vladimir Putin era na época da ação um agente da KGB em Dresden. Seus deveres incluíam espionar a Universidade Técnica da cidade e depois que o Muro caiu foi ele de fato responsável por resgatar alguns arquivos importantes do quartel-general da Stasi em Dresden. Mas seu papel nesta trama foi inteiramente inventado, claro...."

Uma foto da histórica cidade de Dresden, um dos cenários do romance.

Também tem sobre o personagem principal, Rosenharte: "Nunca houve alguém sequer remotamente semelhante ao Dr. Rudi Rosenharte trabalhando na Dresden Gemäldegalerie durante a década de 1980. O passado de Rosenharte foi inspirado num relato sobre o programa Lebensborn dos nazistas que se encontra no excelente estudo de Caroline Moorehead sobre a Cruz Vermelha, Dunart's Dream (Harper Collins)". Que horror esse programa. Ele dá a tonalidade dos dois últimos capítulos.

O livro é dividido em três partes e quarenta capítulos. Se inicia em Trieste, na Itália e termina na quinta feira do dia 9 de novembro de 1989, no Portão de Brandemburgo, com a queda do Muro de Berlim, passando pelas cidades de Leipzig e Dresden, especialmente. Na página final, de agradecimentos, Hernry Porter lista os principais livros sobre a RDA e a queda do Muro de Berlim. O livro foi escrito em Londres, no ano de 2004.

O tema do livro está assim enunciado na orelha e na contracapa do livro: "Historiador de arte e agente aposentado da Stasi, Rudi Rosenharte recebeu uma missão impossível: arrancar segredos de Annalise Schering, sua antiga amante, que mora na Itália. O problema: Rudi sabe que Annalise morreu há 15 anos, mas os chefes da espionagem comunista não acreditam nisso. Para eles, Rudi está escondendo uma valiosa informação. Agora, a sobrevivência dele e da família está em risco. Um thriller histórico emocionante, ambientado nos dias que antecederam o colapso do Muro de Berlim". 

terça-feira, 20 de junho de 2023

Cleópatra - histórias, sonhos e distorções. Lucy Hughes-Hallett.

"Já houve muitas Cleópatras. Provavelmente, haverá muitas mais. As diferentes formas que a rainha do Egito até hoje assumiu ainda estão longe de esgotar seu potencial para a metamorfose. Na massa de anedotas e imagens que formam a sua lenda, é possível rastrear os contornos de incontáveis Cleópatras mais - Cleópatras ainda não escritas, não filmadas.

Em sua própria época, Cleópatra era comparada a Helena, Semíramis, Ônfale, Dido e a Ísis. Sua imagem foi criada a partir de moldes já existentes. Depois foi refeita para se encaixar em numerosos outros moldes, enquanto gradualmente ela própria se tornava um molde para formas posteriores. [...] Uma 'Cleópatra é um objeto identificável, no entanto mutável. Elizabeth Taylor tornou-se uma Cleópatra. A propaganda sugere a você ou eu também podemos fazer o mesmo, basta usar o sabonete Cleópatra. Uma imagem é uma máscara, e uma máscara pode ser emprestada. Sendo um pedaço de artifício vazio, é facilmente destacável da pessoa que supostamente representa. Com igual facilidade, pode ser imposta a outro corpo. A consumidora do sabonete Cleópatra pode não se tornar de fato uma 'Cleópatra', mas nem mesmo a própria Cleópatra conseguiria isso". O livro é uma viagem ao longo do tempo, na busca das diferentes representações de Cleópatra.

Cleópatra - histórias, sonhos e distorções. Lucy Hughes-Hallett. Record. 2005. 

A citação é retirada da abertura da conclusão do livro, Cleópatra - histórias, sonhos e distorções, de autoria da jornalista, historiadora e biógrafa londrina, nascida em 1951, Lucy Hughes-Hallett. Na contracapa temos mais informações a respeito do conteúdo de seu rico e maravilhoso livro, em que são mostradas as diferentes faces dessa fantástica personagem: "tirana, frívola, devassa, cruel, nos são oferecidas sob a ótica ocidental. O fato é que esta rainha desempenhou um papel crucial nas questões políticas do Ocidente, como a adversária de Roma e também no papel da Outra: mulher, oriental e estrangeira. Preconceitos de raça e gênero aqui se misturam, pois em um mundo de valores masculinos toda mulher é uma forasteira". Já temos aqui uma bela imagem do livro.

Como começamos com a abertura da conclusão da autora, vamos agora ver as frases finais dessa mesma conclusão: "É verdade que ela é uma mulher estranhamente dotada de um poder masculino. É verdade que é uma estrangeira exótica que põe em questão a hegemonia cultural do Ocidente. É verdade que ela é uma celebração sensual dos pecados mortais da carne. Mas sua imagem, que escarnece de forma tão abrangente da ordem estabelecida, pode ser entendida como um presságio, não do caos, mas da ampliação da possibilidade humana. Aqueles que a vislumbram com a mente livre, sem ansiedade sexual e arrogância racial, aqueles que (diferentemente de Baudelaire) são capazes de contemplar o próprio coração e o corpo sem repulsa, aqueles que não se agarram à moral fácil do certo e do errado podem enxergar sua beleza e ouvir sua tolerante risada".

Antes de apresentar a estrutura do livro, devo dizer que ele é extremamente erudito, como já devem ter percebido. Nele estão apresentadas as principais representações que a "rainha do Egito", ou a Femme fatale, teve ao longo da história, na literatura, no teatro e, finalmente no cinema. São os diferentes olhares lançados a ela, pelos olhos de cada tempo histórico e por seus valores morais dominantes. E também os interesses dominantes em cada uma dessas épocas, onde aflora a construção no imaginário das representações de poder e de dominação, bem como de seus inimigos.

O livro, que ganhei de presente em 2005, junto com uma bela dedicatória, é estruturado em duas partes, com onze capítulos e mais uma apresentação, conclusão, referências e bibliografia, ao longo de 486 páginas. Três são os seus personagens: Cleópatra, Antônio e Otávio. Mas também Júlio César. A primeira parte é formada por três capítulos: 1. O fato e a fantasia; 2. A história segundo Otávio; 3. A versão de Cleópatra. É a parte que apresenta a história dos personagens envolvidos, com destaque, por óbvio, à personagem do título.

A segunda parte ocupa o restante dos capítulos: 4. A suicida; 5. A amante; 6. A mulher; 7. A rainha; 8. A estrangeira; 9. A assassina. 10. A criança (versão de Bernard Shaw); 11. E Cleópatra pisca. Este último é a sua versão para o cinema, com destaque para o filme de 1963, de Mankiewicz, com Richard Burton e Elizabeth Taylor no papel de Antônio e Cleópatra, que reacendeu todo o imaginário em torno do lendário casal. O próprio filme se transformou numa lenda, por seus custos e escândalos.

Sobre o livro, ainda duas informações que o referenciam, contidas na contracapa: "(...) relato fascinante sobre as formas como sucessivas gerações têm visto Cleópatra: a suicida virtuosa, a dona de casa ineficiente, a amante exuberante, a cortesã profissional, a manipuladora ardilosa, a femme fatale, a encarnação de Ísis, a devassa". The Economist. E ainda:

"Nesta análise vibrante, Lucy Hughes-Hallett mostra como a imagem de Cleópatra foi constantemente modificada pela moda feminina predominante, ética política, neuroses sexuais. (...) um livro sobre fabricação e persuasão." The Observer. Mas, afinal de contas, quem foi Cleópatra? Uma breve resposta da orelha da capa:

"Última rainha da dinastia Lágida, filha de Ptolomeu XII, Cleópatra nasceu em 69 a. C. De origem grega, e à frente do governo de Alexandria após a morte misteriosa de seus dois irmãos (dos quais foi também esposa) e de suas duas irmãs, Cleópatra foi uma administradora eficiente: diplomata hábil, reformulou a política e equilibrou a economia egípcia, promoveu projetos de engenharia refinados e falava nove idiomas. Inteligente e sedutora, sem ter parâmetro de beleza, seduziu os imperadores romanos Júlio César e Marco Antônio, embora tenha ficado sozinha  parte de sua vida adulta".


quarta-feira, 14 de junho de 2023

O livro das semelhanças. Ana Martins Marques. Vestibular UFPR - 2024.

Entre os livros indicados para o vestibular da UFPR para o ingresso nela, no ano de 2024, está o livro de poemas O livro das semelhanças - poemas, de Ana Martins Marques. Ana é mineira, nascida em Belo Horizonte, no ano de 1977. É graduada em letras e tem doutorado em literatura comparada pela Universidade Federal de Minas Gerias (UFMG). O livro é de 2015 e a oitava reimpressão, que eu tenho em mãos, data do ano de 2022. É uma edição da Companhia das Letras, o que por si só já indica prestígio.

O livro das semelhanças - poemas. Ana Martins Marques. Companhia das Letras. 

Devo confessar que não aprendi a ler poesias. Tenho enormes dificuldades com a sua leitura até os dias de hoje. Mas também nunca a desprezei em função disso. O azar, tenho certeza, é todo meu. Já fiz muito esforço, mas acho que não levo mesmo jeito. Não me atrevo a fazer comentários e por isso vou me ater às observações constantes na orelha do livro e à escolha de um poema de cada uma das quatro partes em que o livro está dividido: Livro - cartografia - visitas ao lugar comum e - o livro das semelhanças. Vamos a um trecho da orelha:

"Pois graças a esses e a outros textos, esta nova reunião dos poemas de Ana Martins Marques parece ser a culminação de um dos caminhos mais relevantes da lírica brasileira dos últimos anos. Estão aqui, com uma força que já podia ser antecipada em seus livros anteriores, peças que versam, sobretudo, a respeito da tentativa - sempre temerária, mas também desafiadora - de recuperar o mundo e as coisas por meio da palavra. Porém a autora sabe que vivemos tempos fraturados, em que experimentamos aquilo que poderia ser nomeado como uma certa falência da mimese (figura que consiste no uso do discurso direto e principalmente na imitação do gesto, voz e palavras de outrem - imitação ou representação do real na arte literária, ou seja, a recriação da realidade - conforme o AURÉLIO), pois traduzir o real literariamente é deparar com o abismo que se interpõe entre o mundo sensível e a folha em branco. E Ana desconfia do quanto isso tem de frágil, de problemático - e de igualmente fascinante". E na sequência:

"Esta obra desperta o leitor para o prazer sempre iluminador e sensível de uma das vozes mais originais da poesia brasileira. Do amor à percepção de que há um espaço - geográfico, quase - para o lugar comum, do entendimento da precariedade do nosso tempo no mundo à graça (mineira, matreira) proporcionada pela memória: eis uma poeta que nos fala diretamente. Ou como diz um de seus versos: 'Ainda que não te fossem dedicadas / todas as palavras nos livros / pareciam escritas para você'". Então vamos às escolhas. Da primeira parte - Livro - fiz a seguinte escolha:

Último Poema:

Agora deixa o livro                                                                                                                                        volta os olhos                                                                                                                                                para a janela                                                                                                                                                  a cidade                                                                                                                                                          a rua                                                                                                                                                              o chão                                                                                                                                                            o corpo mais próximo                                                                                                                                    tuas próprias mãos:                                                                                                                                        aí também                                                                                                                                                      se lê

Da segunda parte - cartografias - o que segue:

Você assinala no mapa                                                                                                                                  o lugar prometido do encontro                                                                                                                      para o qual no dia seguinte me dirijo                                                                                                          com apenas café preto o bilhete só de ida do metrô a pressa feroz do desejo                                              deixando no entanto esquecido sobre a mesa o mapa que me levaria                                                          onde?   

Da terceira parte - Visitas ao lugar comum - o poema de número 8.

Cortar relações                                                                                                                                              e depois voltar-se                                                                                                                                          verificar se o que restou                                                                                                                                suporta                                                                                                                                                          remendo                                                                                                                                                        demorar-se                                                                                                                                                    sobre a cicatriz                                                                                                                                              do corte     

Da quarta parte - o livro das semelhanças - Ícaro.

Quando Ícaro                                                                                                                                          caiu                                                                                                                                                                no mar                                                                                                                                                            a sereia que                                                                                                                                                    que primeiro                                                                                                                                                  o encontrou                                                                                                                                                    amou nele                                                                                                                                                      o pássaro                                                                                                                                                        ele amou nela                                                                                                                                                o peixe

Os restos de suas asas                                                                                                                                    desfeitas                                                                                                                                                        forma dar na praia                                                                                                                                          entre embalagens                                                                                                                                          de plástico preservativos                                                                                                                              garrafas vazias latas                                                                                                                                      de cerveja                                                                                                                                                                                                               

segunda-feira, 12 de junho de 2023

O livro dos insultos. Henry Louis Mencken. "O espetáculo da estupidez humana".

Sábado por volta do meio dia recebo uma ligação do meu amigo Valdemar. "Venha aqui para o restaurante São Francisco", disse-me ele. O motivo era para conversar com Cristovam Buarque, que ali viera para almoçar. Lembrando que Cristovam foi, entre outras funções e atividades, reitor da Universidade de Brasília (UNB). governador do Distrito Federal, ministro da educação, senador e candidato a presidente da República. A conversa foi pouca e se reportou mais à escravidão, tema de um livro seu. Sobrou uma fotografia como lembrança.

O livro dos insultos. H.L. Mencken. Companhia das Letras.2009.

No almoço também se encontrava Firmino Ribeiro, o venerável Pai Firmino, um venerável do humor, da ironia e da sátira. Ele passara antes por um sebo, do qual ele trazia alguns livros. Entre eles, O livro dos insultos, de H. L. Mencken (1880-1956). Perguntando se eu o tinha lido e se eu o tinha e, diante de minha resposta negativa, me presenteou com o livro. Registro aqui os meus agradecimentos. O livro, além de seu chamativo título, traz duas informações de capa: Seleção, tradução e posfácio de Ruy Castro e - A língua mais afiada do jornalismo americano em uma reunião de seus melhores (e piores) momentos.

Fui à leitura. Eu estava à frente de 18 temas da civilização mundial em geral e da estadosunidense, em particular. Eu estava diante de um dos mestres do humor e da fina ironia e diante dos mais sagrados temas da civilização ocidental e cristã, profundamente cristã, para a qual a sua flecha, com muito veneno, estava apontada na maioria das vezes. Junto com a civilização cristã (os protestantes com larga preferência) e a sua irmão gêmea, a moral, sua hipocrisia e farsa, são os seus temas preferidos. Vejamos os 18 temas presentes nas agudas percepções do iconoclasta Mencken:

1. Homo sapiens. 2. Tipos de homens (o romântico, o cético, o crédulo, o operário, o médico, o cientista, o empresário, o rei, o metafísco, o homem médio, o dono da verdade, o parente, o contraparente, o amigo, o filósofo, o altruísta, o iconoclasta, o chefe de família, o solteiro, o homem perfeito, o eterno macho, o escravo). 3. Mulheres (a mente feminina, mulheres fora da lei, a mulher fria, intermezzo sobre a monogamia, a libertina, a isca da beleza). 4. Religião (funcionários da fé, o secretariado cósmico, a natureza da fé, a restauração da beleza, o colapso do protestantismo, imune, um novo uso para as igrejas, livre-arbítrio, meditação de sábado, a imortalidade da alma, quod est veritas?, Sagrada escritura, cerimônia memorial). Daqui para frente não darei mais os subtítulos.

5. Moral -, onde além de sua gênese, volta ao tema do livre-arbítrio. 6. Morte. 7. Governo. 8. Democracia. 9. Homens em combate. 10. Economia. 11. Psicologia. 12. Tempos modernos. 13. A literatura dolorosa. 14. Litterati. 15. Música. 16. Artes menores. 18. Bufonarias. 18. Sententiae. Dessas sentenças eu escolhi uma: "Mostre-me um puritano e eu lhe mostrarei um filho da puta". Assim, na lata. Também escolhi um aforisma sobre o livre arbítrio, tema que super recomendo: "Se Ele sabe que vou trabalhar esta noite escrevendo este livro tão ímpio, para escândalo da fé e terrível ameaça às almas, por que não me induz a um trabalho mais decente? Impossível imaginar, à luz daquela fé, que Ele não saiba o que estou fazendo, assim como é impossível imaginar que não possa me deter. Ergo, deve assumir pelo menos parte da culpa por meu pecado e fará um papelão se tentar me punir por ele no inferno". Ah! a onipotência e a onisciência. Deus tudo vê e tudo pode! Imperdível mesmo é o capítulo - Tempos modernos. Nele ele aborda a Lei Seca, que durou entre os anos de 1920 e 1933. Inacreditável.

Mas vamos a juízos mais abalizados: Para a publicação brasileira do livro de 1988 houve um anexo de autoria de Paulo Francis. Ele assim encerra o seu breve comentário: "Nada de solene em Mencken. Ele era um jornalista literário e um satírico, por excelência. O espetáculo da estupidez humana 'fazia o dia dele, como Rambo faz o de Ronald Reagan (babamos de antecipação frustrada em imaginar o que Mencken diria de Reagan). Chamava o sul dos Estados Unidos de 'Sara do Bozart' (trocadilho de bobo com Mozart). Ridicularizava, em particular, os fundamentalistas cristãos. Fez o estado do Tennessee mundialmente célebre e infame, quando, em 1925, descreveu o julgamento do professor secundário John Scopes, que ensinava Darwin em biologia, e não a Bíblia (O episódio está presente no livro).

E Mencken também não gostava dos ricos exibicionistas daqui. Chamava-os de boobosie. Os ensaios reunidos neste livro dão uma dimensão variada do estilo e incisividade de Mencken. Em pessoa, ele era mais conservador do que por escrito. Sua ideia de uma noite feliz era ouvir e tocar Brahms e Schubert, se bem que ele e Nathan (autor da frase 'bebo para tornar os outros interessantes') tomaram pileques homéricos, enquanto riam dos outros. Mencken é atualíssimo. O mundo regrediu para a jequice de que ele tirou os Estados Unidos. Que ao menos ressuscite sua prosa neste livro".

Do posfácio de Ruy Castro também tomo a sua última frase, após ele descrever seus anos finais de vida, consagrados a Beethoven e Johnny Walker: "Quando morreu de enfarte, em 1956, a grande dificuldade dos redatores de seus obituários foi escolher uma classificação que melhor o definisse. Repórter, crítico, colunista, editor, polemista, escritor, filólogo, humorista? Eu escolheria todas".

Ainda, breves dados biográficos, contidos na contracapa do livro: "Henry Louis Mencken nasceu em Baltimore, Maryland, em 1880. Fez boa parte da sua carreira nos jornais da cidade, o Sun e o Evening Sun, enquanto editava as revistas Smart Set e American Mercuy, com Jorge Jean Nathan. Depois de um derrame, em 1948, ele não conseguiu mais escrever. Morreu dormindo na noite de 28 para 29 de janeiro de 1956. Quando foi se deitar, ouvia uma sinfonia transmitida pelo rádio". Também deve ser dito que era autodidata.

Memória do encontro. Com Cristovam e Pai Firmino.

E na contracapa: "Embora o próprio Mencken fizesse questão de difundir a sua imagem de iconoclasta e irreverente, Edmond Wilson afirmava que havia por trás desta máscara  'um crítico, um evangelista e um artista; ele é uma mente de extraordinário interesse.  Gore Vidal diz que H.L. Mencken foi o jornalista mais influente de sua época e 'também o mais sagaz'".


segunda-feira, 5 de junho de 2023

Noite na taverna. Álvares de Azevedo. Vestibular 2024 - UFPR.

Creio que poucas vezes demorei tanto para ler um livro. A sua leitura não foi nada agradável. Histórias extremamente escabrosas. Estou falando de Uma noite na taverna, de Álvares de Azevedo. O livro é uma indicação para o vestibular da Universidade Federal do Paraná para o ano de 2024. Fui buscar ajudas, para compreender a obra. Algumas informações preliminares: A obra é uma publicação póstuma do ano de 1855, três anos após a sua morte, absolutamente prematura. Álvares de Azevedo nasceu em São Paulo, no ano de 1831 e em 1840 muda-se, com sua família, para o Rio de Janeiro. Em 1848 volta para São Paulo para cursar a faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Morre em 1852, no Rio de Janeiro, aos 21 anos de idade. 

Noite na taverna. Álvares de Azevedo. Principis. 2019.

Por óbvio, a sua breve vida me chamou muita atenção. Ele é um daqueles poetas românticos, de vida curta, dos quais ouvimos falar ao longo do ensino médio. Ele foi uma das tantas vítimas da tuberculose, que tantas vidas ceifara, em tempos em que não havia antibióticos. Um poeta romântico. Talvez seja esta a maior dica para compreender a sua obra. Ele era um romântico da segunda geração, ou um ultrarromântico. O romantismo brasileiro já saíra de sua primeira geração, em que os temas eram essencialmente nacionais, para se ocupar dos temas universais. A obra é extremamente erudita, com um sem fim de citações de autores clássicos e dos românticos europeus, que tanto o influenciaram e que, por meio dele, chegaram ao Brasil.

Mais alguns dados preliminares: Ele pertencia a uma família de posses. No Rio de Janeiro ele frequentava a corte. A mudança para São Paulo se deveu exclusivamente em função da Faculdade de Direito. Havia apenas duas no Brasil, na época. A de São Paulo e a do Recife. A São Paulo da época não devia oferecer muitas atrações, o que favorecia as noites de bebedeira e orgia, como a dos contos presentes no livro. O livro é de muita ousadia e, possivelmente, a sua publicação póstuma tenha sido proposital. Seria uma ousadia ainda maior publicá-la em vida. Os contos são um horror, uma afronta, o que repercutiu sobre a recepção da obra pela crítica. Muitos juízos morais em vez de literários.

Vamos à obra. Cinco jovens encontram-se em uma taverna, entre prostitutas, embriaguez, vinho e muito fumo. Depois de absolutamente bêbados, eles fazem uma espécie de concurso para ver quem consegue a proeza do conto mais escabroso. São sete os contos, ou se preferirem cinco. O primeiro é uma espécie de preâmbulo ou prólogo e o último, um posfácio. Vamos a eles. Uma parte do preâmbulo está contida na contracapa: " - Agora ouvi-me, senhores! [...] o que nos cabe é uma história sanguinolenta, um daqueles contos fantásticos como Hoffmann os delirava ao clarão dourado do Johannisberg! - Uma história medonha, não Archibald? - falou um moço pálido que a esse reclamo erguera a cabeça amarelenta. - Pois bem, dir-vos-ei uma história. Mas quanto a essa, podeis tremer a gosto, podeis suar a frio da fronte grossa de bagas de terror. Não é um conto, é uma lembrança do passado". Hoffmann (1776-1822) é um dos tantos autores do romantismo que por meio dele chegaram ao Brasil. Neste preâmbulo está contido o cenário dos contos, bem como os temas e os participantes da Noite na taverna. 

O conto de número dois (vamos adotar o critério dos sete) é contado por Solfieri e tem Roma, a cidade da perdição e do fanatismo como cenário. No conto aparece a sombra de uma mulher, com a qual ele irá parar num cemitério. Não era uma sombra, mas sim, uma mulher de verdade. Na saída, carregando-a, ele tropeça no coveiro, passa por uma patrulha policial, a qual ele dribla, beijando-a para provar que não era um cadáver. Ao chegar a seu quarto, após dois dias ela morre. Ele manda fazer dela uma estátua, mas enquanto ela não fica pronta, ele dorme sob a sua lápide. Ele abre o peito para mostrar o amuleto que carregava, o seu crânio. Uma amostra.

O terceiro conto  é de Bertram e é o mais longo. Envolve várias situações, com proezas escabrosas diversas, envolvendo mulheres, duelos, túmulos, velórios, degolas, traições, desonras, venda de mulher por dívida, suicídio, blasfêmias, piratas, antropofagia e necrofilia. Precisa mais!

O quarto conto é o de Gennaro, que conta uma história de seus tempos de aprendiz de pintor. O mestre vivia com a sua segunda mulher e uma filha. Meninas novas. Este é o cenário e os horrores que, creio, são de fáceis de imaginar. O quinto conto é o de Claudius Hermann, um conto também um pouco mais longo, alongado por divagações românticas. Envolve uma história de sedução e de traição, que termina em leito ensanguentado. O conto de número seis é o de Johann e tem como cenário um encontro em um bilhar de Paris e, as consequências. Envolve duelo, morte de irmão e encontro com a irmã.

O sétimo conto, ou o epílogo, ocorre já ao amanhecer, quando uma mulher entra na taverna e, um punhal reluz ao contato com os primeiros raios de sol. Envolve morte e é uma sequência do conto de número seis. Vingança contra o irmão.

Bem, mais dados gerais. Álvares de Azevedo, apesar da precocidade de sua obra (fundamentalmente composta por Noite na taverna e Lira dos vinte anos, coletânea de suas poesias) teve enorme repercussão e influenciou profundamente as gerações posteriores. Ele já pensava numa Academia de Letras, e a Academia Brasileira de Letras, como reconhecimento, o nomeou patrono da cadeira de número dois. A sua maior marca é a de ser o precursor brasileiro do ultrarromantismo e de ter trazido para o Brasil, a geração desses escritores estrangeiros ao Brasil. E depois do ultrarromantismo, certamente vocês conhecem a sequência de realismo, naturalismo...

O livro que eu li é o da editora Principis, 2019. Senti muita falta de um prefácio, de notas explicativas ao longo do texto e de um posfácio. Isso me levou a buscas em outros espaços. Aproveito para deixar uma recomendação: o comentário de Isabela Lubrano - do Ler antes de morrer. Uma exposição bem humorada e com teor. Deixo ainda alguns dos autores que o influenciaram: Lord Byron (1788-1824), Schiller (1759-1805), Goethe (1749-1832) e Edgar Allan Poe (1809-1849), este, dos Estados Unidos.