quinta-feira, 11 de setembro de 2025

UTOPIA AUTORITÁRIA BRASILEIRA. Carlos Fico.

Um livro simplesmente extraordinário. Mais atual, impossível! Estou me referindo ao Utopia autoritária brasileira - Como os militares ameaçam a democracia brasileira desde o nascimento da República até hoje, do renomado e rigoroso historiador, Carlos Fico, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Um relato histórico denso e rigoroso, acompanhando a interferência dos militares na política brasileira, desde os tempos que antecederam a proclamação da República, até a instauração da ditadura civil-militar de 1964. Na conclusão, algumas incursões sobre o momento atual da política brasileira, momento ímpar, em que militares estão sendo julgados pela Poder Judiciário, um fato inédito em nossa história.

Utopia autoritária brasileira. Carlos Fico. Crítica. 2025.

Num dos primeiros parágrafos, na apresentação do livro, o autor nos afirma categoricamente que "O Exército brasileiro sempre desrespeitou a democracia. As Forças Armadas violaram todas as constituições da República. Rebeliões contra decisões legítimas: sublevações motivadas por corporativismo; golpes de Estado e tentativas de golpe. Indisciplina e subversão marcam a trajetória dos militares no Brasil. Eles foram responsáveis por todas as crises institucionais do país desde a Proclamação da República e jamais foram efetivamente punidos. Esse intervencionismo militar expressa a fragilidade institucional da democracia brasileira até hoje - como ficou evidente nos anos recentes" (Página 8).

A comprovação dessa afirmação é o teor do longo livro do historiador. Ao todo ele tem 448 páginas, sendo as primeiras 379 dedicadas à análise dos fatos e as restantes, à bibliografia e notas das fontes trabalhadas. Vamos a um esboço, ou sumário do livro. Os capítulos não são numerados, mas são oito no total, mais a apresentação, conclusão, bibliografia e notas. Vejamos os capítulos e os seus tópicos: Vou enumerá-los: Capítulo I. Deposição de Pedro II: "Banco aceita transação". A guerra e o ressentimento contra os civis. Questão militar. O pecado original da República. Predomínio militar na nova Constituição. Capítulo II. A mocidade militar se revolta: Um golpe militar durante a Revolta da Vacina. A revolta da escola da Praia Vermelha. Punição e anistia.

Capítulo III. Fraudes, indignação e voluntarismo militar: Em busca da verdade eleitoral. O tenentismo. A glorificação dos tenentes. A "Reação Republicana" e as cartas falsas. 1922: tentativa de golpe no Rio de Janeiro. 1924: tentativa de golpe em São Paulo. Capítulo IV. Militares, revolução e ditadura: A deposição de Washington Luís. O autogolpe do Estado Novo. 1945: Deposição de Getúlio Vargas. Capítulo V. Cinco presidentes e dois golpes: General democrata ou sedicioso. O segundo governo Vargas. Contra a posse dos eleitos. Duplo golpe.

Capítulo VI. Voos turbulentos: Militarismo na aeronáutica. Jacareacanga. Aragarças. Capítulo VII. O pior da história do Brasil: A renúncia inesperada. Veto militar e imposição do parlamentarismo. Capítulo VIII. Deposição de João Goulart: Uma memória controvertida. Desestabilização e conspiração. Antecedentes. O golpe de 1964.

Depois da explanação desses temas, ainda no primeiro parágrafo da conclusão lemos: "Neste livro, eu quis enfatizar a obviedade de que o intervencionismo militar por meio de pronunciamentos, golpes e tentativas de golpes se fundamenta na força das armas. Não se constitui apenas em ação política equívoca, mas no recurso à violência contra aqueles que confiaram aos militares a defesa da nação. É um crime grave" (Página 367). Depois o autor afirma que essas intervenções sempre foram encobertas pelo mito da "história incruenta", isto é, sempre ocorreram sem o derramamento do "sangue generoso do povo brasileiro", para a seguir afirmar: 

"Entretanto, descrevi uma série de episódios em que houve confronto armado: nas fracassadas tentativas de golpe de 1904, 1922 e 1924; na vitoriosa mobilização de 1930 e nas duas tentativas malsucedidas contra JK em 1956 e 1959. Além disso, embora não tenha havido confronto, houve movimentação de tropas na Proclamação da República, nas deposições de Vargas, durante os golpes de Lott, no pronunciamento de 1961 e no golpe de 1964" (Página 368). No dizer de Eduardo Gomes a justificativa era a regeneração dos costumes políticos. 

Qual seria a origem desse espírito de intervenção, uma espécie de poder moderador permanente atribuído às Forças Armadas, presente em todas as Constituições brasileiras? Já na Constituição de 1891 estava inscrito, sob a influência de Rui Barbosa, que o Exército devia ser "respeitável e respeitado dentro dos limites da lei". Isto é: se os governantes transgredissem a lei, as Forças Armadas teriam o direito de intervir. Convenhamos, um princípio totalmente subjetivo. Isto ainda está presente na Constituição de 1988, por uma cláusula inegociável, segundo o autor, no confuso artigo 142. Pela sua importância, no atual momento, eu o nomino em seu caput: "As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem". Espaço para a famosa GLO.

E o título: Utopia autoritária. O autor assim o explica: "Tendo estudado os diversos aspectos da ditadura militar nos últimos trinta anos, desenvolvi algumas hipóteses. Creio que a principal foi a que eu chamei de utopia autoritária: o entendimento militar de que os problemas brasileiros seriam superados e o Brasil se tornaria uma 'grande potência' na medida em que fossem eliminados os obstáculos - chamados de 'óbices' pelos militares - que impediriam essa ascensão. Os principais seriam  a 'subversão comunista' e a 'corrupção dos políticos" (Página 377). A eliminação destes óbices gerou a chamada "linha dura" e justificou a censura, a tortura e as medidas excepcionais. As chamadas medidas "saneadoras". Nisso tudo também havia uma "dimensão pedagógica", assim descrita: "Em sua dimensão 'pedagógica', tal utopia considerava que os brasileiros eram despreparados e seria preciso educá-los, o que se verificava muito claramente, por exemplo, na propaganda política da ditadura, na censura das diversões públicas ou nas disciplinas de 'moral e cívica' que havia no período. Uma pedagogia obviamente autoritária" (Página 378).

E qual seria a utopia que almejavam construir? Quais seriam as suas perspectivas? "Ambas as dimensões compartilhavam, entretanto, algo fundamental: o futuro grandioso do "Brasil Potência" justificaria eventuais rupturas constitucionais, desde as ilegalidades criminosas e brutais praticadas pelos órgãos de repressão até os desvios menos notáveis, mas igualmente ilegais, da tentativa de doutrinação ideológica feita pela propaganda política ou da 'proteção' da sociedade com a censura moral que coibia 'abusos' como a nudez e o palavrão" (Página 378). Vejamos mais um parágrafo:

"Essa hipótese analítica orientou meus estudos sobre a ditadura militar. Entretanto, quando analisamos o período anterior e posterior, verificamos que aspectos dessa utopia autoritária têm longa duração e são persistentes. É o caso, por exemplo, da visão elitista do 'povo despreparado' e da classe simplista de que a corrupção é a causa fundamental de nossos males. De acordo com a perspectiva autoritária, se o povo é despreparado e o sistema político está comprometido, os desvios da Constituição se justificam, sendo o principal a tentativa de tomada do poder pela violência, o golpe de Estado, para o qual as Forças Armadas são indispensáveis. Note-se que muitos outros indícios de leniência com a ruptura da legalidade constitucional poderiam ser elencados, mas isso daria outro Livro" (Página 379).

Outro livro, com certeza, mas que o autor não está predisposto a escrever. Ele afirma que Utopia autoritária brasileira é o seu último livro. Uma pena, se ele cumprir ao que se propõe. Quanto a importância do livro, creio que todos já a perceberam. Vejamos ainda a orelha da capa:

"Neste que considera o último livro de sua carreira, o premiado historiador Carlos Fico examina, com rigor e profundidade, as principais intervenções militares que moldaram a história do Brasil: da Proclamação da República, em 1889, ao golpe de 1964, chegando ao intervencionismo militar dos anos recentes. Além de reconstruir esses momentos críticos, o autor desmonta a crença equivocada de que as Forças Armadas seriam as mais qualificadas para atuar como um  Poder Moderador republicano, à semelhança da prerrogativa imperial prevista na Constituição de 1824.

Utopia autoritária brasileira resgata, em ordem cronológica, mais de uma dezena de golpes e tentativas de golpes desde a proclamação, investigando os padrões recorrentes do intervencionismo militar: Ao longo dos capítulos, personagens reaparecem em diferentes momentos da história - golpistas persistentes, legalistas que mudam de lado, juristas coniventes - compondo um retrato multifacetado da política brasileira. Embora explore a 'melancólica trajetória nacional', como define o autor, esta obra cativante fascina a todos que se preocupam com os rumos do país". Nunca houve um momento tão oportuno, tanto para a publicação, quanto para a leitura desse livro, como o momento atual. 

Eu também tenho uma outra proposta de leitura. Ela versa sobre a ideologia que impregna as Forças Armadas, especialmente após a sua participação na Segunda Guerra Mundial, sob o comando dos Estados Unidos. É A ideologia da Segurança Nacional, do padre belga, Joseph Comblin.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/11/a-ideologia-da-seguranca-nacional-padre.html

ADENDO: DIA 11 de setembro de 2025. 15horas e quarenta e um minutos. A ministra Carmen Lúcia sela o destino de Jair Bolsonaro e seus asseclas golpistas. CONDENADOS. Inédito na história do país como lemos nesse magnífico livro. Que coincidência!. Publiquei o post no dia da condenação.


 

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

MORTE DE UM DISSIDENTE. O envenenamento de A. Litvinenko e a volta da KGB.

Mais um dos livros que ficou à espera de leitura por um bom tempo. Quase quinze anos. Comprei-o no ano de 2011, em promoção. O tema e a confiabilidade na editora certamente moveram a compra. Trata-se de Morte de um dissidente. O envenenamento de Alexander Litvineko (Sacha) e a volta da KGB. Os autores são Alex Goldfaber e Marina Litvinenko, sendo essa a esposa do morto, num dos muitos assassinatos atribuídos a Putin, ao seu grupo instalado no Kremlin. O crime aconteceu em Londres, em fevereiro de 2007.

Morte de um dissidente. Alex Goldfarb e Marina Litvinenko. Companhia das Letras. 2007


Este assassinato por envenenamento serve de pretexto para examinar a política da Rússia, após o esfacelamento da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Assim os temas centrais são a ascensão de Boris Iéltsin ao poder e as reformas de Estado por ele praticadas, a atuação das antigas instituições do Estado, especialmente as ligadas as investigações, como a KGB, agora respondendo sob a sigla de FSB e especialmente a sucessão de Iétsin, com a passagem do poder a Vladimir Putin, um antigo membro da KGB, a tão temida KGB, e, como nos sugere o subtítulo do livro, a sua volta aos círculos do poder. Os fatos relatados vão até fevereiro de 2007. 2007 é também o ano da publicação do livro, um lançamento certamente mundial, uma vez que a edição brasileira também é desta data.

Uma frase fantástica sintetiza bem o que foi esta passagem de poder. Ela foi retirada de uma reportagem da revista Time, que "comparou o confronto entre Putin e Boris Berezovski ao de Stalin com Trótski". O título do livro nos dá a posição do mote da dissidência. Litvichenko (mais tratado pelo apelido - Sacha) também foi um integrante da antiga KGB, mas adversária de Putin. Alex Goldarb, o autor, também pertencia ao grupo dissidente, uma vez que estava umbilicalmente ligado a Berezovski. Mas o tema que mais espaço ocupa no livro é o dos conflitos da guerra com a Tchetchênia, tão comentada na época e ao mesmo tempo, muito pouco conhecida. Ela merece um olhar mais particular. Ela é também a grande marca dos personagens deste livro. Vejamos:

"De uma forma ou de outra, a guerra na Tchetchênia tornou-se o contexto definidor da vida de Sacha e Marina, de Boris e Putin, de Akhmed Zakaiev, minha, e de todos que faziam parte dos nossos círculos coletivos. A Tchetchênia foi o cemitério da democracia russa e o motivo final que levou a Rússia a se afastar do Ocidente. O confronto de Boris com o Partido da Guerra e seus conflitos com o FSB, que arrastaram Sacha para o torvelinho das lutas pelo poder no Kremlin, começaram com a Tchetchênia. Para Putin, a Tchetchênia passou a ser uma interminável disputa de judô e a liga que cimentou sua destrutiva relação de dependência com George Bush" (Página 361). Para compreender bem esta situação, vejamos mais alguma coisa.

A Tchetchênia hoje integra a Federação Russa, mas mantém um forte sentimento de autonomia. Os conflitos tem sua origem na desintegração do Império Soviético. Houve duas guerras. A primeira, entre 1994 e 1996 e a segunda, na verdade, uma continuação da primeira, entre 1999 e 2009. Ela tem apenas 1,5 milhão de pessoas, sendo que a maioria pratica o credo muçulmano. São uma província autônoma, com Constituição e idioma próprios. Se situa na região do Cáucaso e a sua importância é enorme, devido aos dutos de petróleo e gás, que ligam o Mar Cáspio ao Mar Negro, donde atingem os mercados globais. A região, ainda hoje não está inteiramente pacificada. Persistem os movimentos de guerrilha. A atuação da FSB, mais contribuiu para agravar os problemas do que para pacificar a região. É, "o cemitério da democracia".

O livro está dividido em cinco partes e quinze capítulos. As partes são: I. Como se faz um dissidente (Sacha); II. Briga pelo Kremlin (A sucessão de Ieltsin entre Boris Berezovski e Putin e o posicionamento do Ocidente); III. Os tambores da guerra (Tchetchênia); IV. Como se faz um presidente (À moda russa). Putim emerge dos quadros da KGB; V. A volta da KGB (As transformações de Putin no Poder). Alex Goldfarb, o co-autor, em nota do autor, nos adverte: "Esta é uma história sobre a vida e a morte de um homem, mas é também uma narrativa de eventos históricos e de realizações e iniquidades de líderes mundiais". Destaca que são testemunhos seus, baseados em fatos e que "A verdade final pode ser revelada pela História".

O livro cresce em suspense ao seu final, com a narrativa do envenenamento de Sacha, em Londres. Venenos radioativos que provocam morte lenta. O último capítulo é sobre as investigações. O autor implica este assassinato às forças do Estado, por implicações óbvias. A sofisticação e o acesso ao veneno, apenas seria possível às forças do Estado. O Estado terrorista é uma das marcas do livro. Os atos maldosos e de terror, são sempre praticados pelo FSB, mas sempre recaem, ou são atribuídos aos opositores. Leitura atraente e que flui espontaneamente.

Vejamos a contracapa: "Em 2006, o dissidente russo Alexander Litvinenko (Sacha) foi envenenado e, diante das câmeras do mundo todo, anunciou que o responsável era ninguém menos que o presidente da Rússia, Vladimir Putin. Morte de um dissidente é a história desse crime, típico dos tempos da KGB, e também um retrato detalhado da Rússia atual, de sua nova dinâmica política e da subida de Putin ao poder.

Quem narra o caso é o ativista (e também dissidente) Alex Goldfarb, que ajudou Litvinenko a fugir da Rússia e cujas relações com o magnata Boris Berezovski - um dos protagonistas desta intrincada trama de espionagem - resultam num ponto de vista único dos acontecimentos, com a colaboração de Marina Litvinenko, viúva do espião, o que Goldfarb oferece neste verdadeiro Thriller político é uma visão privilegiada dos motivos que levaram a esse crime". 

Mas, o que Litvinenko anunciou em seu leito de morte? Ele ditou o seguinte:"... Por isso, acho que chegou a hora de dizer uma ou duas coisas ao responsável por esta minha doença.

Talvez o senhor consiga me silenciar, mas esse silêncio tem um preço. O senhor mostrou que é tão bárbaro e implacável quanto afirmam os seus críticos mais ferozes. Mostrou que não tem respeito pela vida, nem pela liberdade, nem por nenhum valor civilizado. Mostrou-se indigno do seu cargo, indigno da confiança de homens e mulheres civilizados.

Talvez o senhor consiga silenciar um homem. Mas um urro de protesto, no mundo todo, há de reverberar em seus ouvidos, sr. Putin, pelo resto de sua vida.

Que Deus perdoe o que o senhor fez, não só a mim, como também à amada Rússia e ao seu povo" (Páginas 413-4).

Putin reagiu falando da insignificância do assassinado. E o povo russo se dividiu sobre Litvinenko, entre o herói dissidente ou o traidor da pátria russa. Essa última versão é a que predominou. 








quarta-feira, 27 de agosto de 2025

O TIRANO. Valério Mássimo Manfredi.

A vez continua sendo a dos livros não lidos, encontrados em minha biblioteca. Desta vez a escolha recaiu sobre um livro maravilhoso e, pelas atuais circunstâncias históricas, extremamente atual. Trata-se de O Tirano, do professor italiano Valério Mássimo Manfredi. O cenário do livro é a fantástica ilha italiana da Sicília, ou a Trinácria, o seu nome original do tempo dos gregos. A cidade é a de Siracusa e o Tirano é Dionísio. Muita história para contar. Vamos a primeira dica, a da contracapa: 

O Tirano. Valério Massimo Manfredi. Rocco. 2005. Tradução: Mário Fondelli.

"Sicília, 412 a.C., começa o duelo infinito entre um homem e uma superpotência. O homem é Dionísio de Siracusa. A superpotência é Cartago, dona dos mares e megalópole mercantil. Com pouco mais de vinte anos, Dionísio, nas fileiras do exército siracusano, é forçado a testemunhar o pavoroso massacre de Selinunte devido às indecisões do governo democrático. A indignação e a raiva alimentam nele três férreas convicções. As democracias são ineficientes. Os cartagineses são os inimigos mortais do helenismo e precisam ser escorraçadas da Sicília. O único homem capaz de levar a cabo tal façanha é ele próprio".

O livro se estende por 31 capítulos, ao longo de 330 páginas. Mas antes um pouco de história. Observemos a data acima citada: 412 a.C.. A hegemonia grega já estava consolidada, após a sua vitória nas guerras médicas, as guerras contra os persas. Atenas era a mais importante das cidades, mas viu o seu poder ser contestado por outras cidades, fato que ocasionou as chamadas guerras do Peloponeso,  que terminaram com a vitória de Esparta e depois de Tebas. Em Atenas dominava a democracia. Na filosofia, o grande fato foi o julgamento e a condenação à morte de Sócrates, no ano de 399 a.C. e a ascendência de Platão, que inclusive tem os seus incidentes em Siracusa, como veremos. No teatro ainda se vivia o grande momento da tragédia.

Na Sicília havia várias cidades sob a influência da cultura grega, embora o fenômeno do helenismo propriamente dito, viria apenas lá adiante, junto com as conquistas de Alexandre Magno. A cidade dominante da cultura grega, que inclusive vivia o fenômeno da democracia, era Siracusa, mas também se destacava Agrigento, com o seu famoso Vale dos Templos. Já a disputa pelo domínio da Sicília, ou seja, a grande rival de Siracusa, era a cidade de Cartago (hoje nas proximidades de Túnis, a capital da Tunísia), a dona dos mares e do comércio marítimo. Dominavam a parte norte da ilha. As guerras eram constantes. Terminado um conflito, já se preparavam para novos e mais graves conflitos. Dionísio não se conformava com a situação. Culpava a democracia reinante na cidade, especialmente a lentidão na tomada de decisões, em momentos que exigiam agilidade extrema. Muitas vezes, quando as decisões eram tomadas, os fatos já tinham se sobreposto ao problema. Outra indignidade sua era relativa à acomodação dos dirigentes políticos. Estavam muito mais preocupados com a manutenção de seus postos do que com os efetivos problemas da população. 

Dionísio, com o tempo toma conta da situação. Quando ele chega ao poder, os cartagineses já haviam dominado as cidades de Solinunte  e Imera e, já sob o seu comando, ele próprio acumula derrotas na poderosa Agrigento e em Gela e Kamárina. Essas narrativas já incorporam o coração do livro. Outras partes são dedicadas ao comportamento do tirano. Monocrático e implacável. Não ouve ninguém. Celebra as mais espúrias alianças, inclusive com os povos bárbaros, atacando as próprias cidades helênicas. Afasta-se de seus ajudantes mais próximos, inclusive Filisto, o sábio mais próximo e de Leptines, o irmão. O estreito de Messina, altamente estratégico, também será palco de lutas. Para isso busca o domínio da cidade de Regio, na Calábria.

Em momentos de paz, ele é bom governante. Expande a cultura grega e se torna, tanto poderoso por suas qualidades, quanto temido por seu autoritarismo. Também tem interesse pela cultura, especialmente pelo teatro, mas detesta os filósofos. Creio ser este o momento de falar de sua relação com Platão. O episódio tem a seguinte narrativa:

" - Esqueci de mencionar a coisa mais engraçada - disse. - O negócio de Platão.

- Platão? repetiu Filisto arregalando os olhos. - Estamos falando do grande filósofo?

- Ele mesmo. Estava viajando pela Itália nesta primavera e parou na Sicília, e aí em Siracusa. Recebeu muitos convites, como era de se esperar, nos círculos mais prestigiosos da cidade, e acredito até de alguma negociação da Companhia. Foi logo dizendo que o nosso luxo era deplorável: o hábito de comer três vezes por dia, de dormir com a mulher todas as noites, de morar em casas suntuosas demais. Ao mesmo tempo, numa conversa posterior começou a tratar dos vícios e da depravação das instituições num regime de tirania, especificando mesmo que no caso de não ser possível extirpar o mal, um caminho alternativo seria o de entregar aos filósofos a tarefa de educar o sucessor do próprio tirano, no intuito de fazer dele um estadista digno. Deu para entender? Estava praticamente se oferecendo como educador do jovem Dionísio". O relato continua com a afirmação de que os dois não chegaram a se encontrar e que o tirano mandou que ele fosse devolvido à Grécia, não sem antes recomendar que ele fosse vendido aos piratas. O relato termina desta forma:

"Por Heraclés! - Filisto exclamou pasmo. - Aos piratas?

Isto mesmo. Os discípulos tiveram de resgatá-lo num mercado de Egina, antes de o homem acabar não se sabe onde.

Filisto não pode evitar um sorriso ao lembrar um rompante de Dionísio: 'Os filósofos! Evito-os como a sujeira dos cães na rua" (Páginas 297-8). Como o visto, o ódio das ditaduras à filosofia vem de longe, ou, desde sempre.

A Companhia, a que a citação se refere é outra questão interessante. Dionísio era um de seus membros. Ela sempre intervinha em momentos decisivos. Em nota do autor, ao final do livro, Manfredi a relaciona com a origem da Máfia. É... Sicília, Calábria...

Ao final, o autor tece considerações acerca da democracia e da ditadura, pendendo para o lado da democracia. O argumento principal é o da sucessão. "Muito simples: não haverá um segundo Dionísio Tudo baseia-se nele, assim como o céu apoia-se nos ombros de Atlas. O melhor dos tiranos não pode ser preferível à pior das democracias. Ele não é substituível, e o dia que cair, a sua construção, por mais poderosa que seja, cairá com ele. É só uma questão de tempo" (Página 307). A educação do sucessor enseja uma bela discussão da educação sob os princípios do autoritarismo. Um bom tema para discutir num momento em que a ultra direita brasileira joga todas forças em cima de uma educação dita 'cívico militar'. 

Uma série de mapas ocupa as páginas finais do Livro. Há muito tempo eu ouvia a afirmação de que se você efetivamente quer conhecer a Grécia, em sua parte de arquitetura, visite a Sicília. Eu pude constatar isso. Em 2012, no mês de julho eu me afastei definitivamente da sala de aula. Me dei um presente. Trinta dias pela Grécia e Itália. Uma semana na Sicília. Visitamos Taormina - Siracusa - Noto - Agrigento - Érice - Trápani - Monreale e Palermo. Terminamos numa viagem de Cruzeiro de Palermo a Nápoles. Deixo o post que fiz sobre a cidade de Agrigento e o seu fabuloso vale dos Templos. No mesmo post, tem também Siracusa. Um mergulho fantástico na cultura clássica. Desejo a todos essa oportunidade única.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2012/10/diario-de-uma-viagem-siracusa-noto-e.html


terça-feira, 19 de agosto de 2025

ESPELHO CEGO. Robert Menasse.

Quando eu estava disposto a deixar a sala de aula em definitivo, quase que semanalmente eu visitava as livrarias. Estava de olho nas promoções. Comprava diferentes tipos de livros e nem sempre os motivos da compra estavam claros para mim. Um dos critérios pelos quais eu comprava era o da editora. Livros da Companhia das Letras eu sempre comprava. A Companhia era para mim, e ainda continua sendo, uma espécie de garantia de um bom livro. Sempre uma referência.

Espelho cego. Robert Menasse. Companhia das Letras. 2000. Tradução: George Bernard Sperber.

Um desses livros que comprei foi - Espelho cego. O autor, Robert Menasse, é um austríaco, com passagem pela Universidade de São Paulo, na qualidade de professor visitante, entre os anos de 1981 e 1986. Essa passagem lhe deu a ambientação para a escrita desse romance extremamente complexo. O autor nasceu em Viena, no ano de 1954. A edição alemã do livro data de 1991 e a brasileira, do ano de 2000. Hoje, o autor vive em Viena. os cenários do romance são as cidades de Viena e de São Paulo.

Os protagonistas do romance são o casal, Leo Singer e Judith Katz. Obsessões amorosas e filosóficas unem o casal. São de origem judaica, judeus austríacos. Ele nasceu em São Paulo e ela em Porto Alegre mas, ainda pequena, também viria a morar em São Paulo. Os pais se refugiaram no Brasil, fugindo das perseguições nazistas aos judeus na Europa. Os pais, embora bem sucedidos no Brasil, ao fim das perseguições, retornam à pátria de origem. Os acontecimentos maiores do romance, primeiramente ocorrem em Viena, onde as obsessões dos jovens efetivamente começam. Em São Paulo eles haviam conhecido um senhor de sobrenome Löwinger, que se tornará uma espécie de protetor de Leo. A grande obsessão de Leo era a de transformar o mundo, de forma definitiva. Hegel era o mote.

Para situar o romance, vamos à contracapa do livro. "Perdido no labirinto de espelhos da reflexão filosófica, Leo Singer, aspirante a filósofo, sai em busca da vida essencial como herói de uma epopeia inusitada, cujos caminhos não são mais aqueles bem-aventurados, iluminados pelas estrelas do mapa original do firmamento da filosofia. Os acasos deste périplo iniciado em Viena o conduzirão ao Brasil pós-golpe de 1964. As contradições de uma realidade mergulhada em plena ditadura somam-se às da trajetória do herói, gerando episódios hilariantes, como o de ver-se subitamente promovido a renomado especialista na filosofia de Hegel capaz de prever o futuro por força de um monumental equívoco, gerado na sumária apresentação da Fenomenologia do espírito - obra capital do filósofo alemão - à imprensa nativa. Entretanto, buscando a expressão contemporânea do descompasso entre o indivíduo e o mundo, a narrativa ultrapassa os contornos da novela quixotesca que lhe serve de paradigma, fazendo irromper a tragédia em meio à farsa, o humor corrosivo em meio à graça do ridículo".

Em Viena, Leo tinha todo o tempo à disposição para a escrita de sua obra. Estava livre de preocupações financeiras, por uma mesada, dada pelos pais, mas com a devida mesura. A mãe o controlava, fato ao qual ele reagia, devotando-lhe um enorme ódio. A escrita estava travada. Suas leituras e fichamentos eram os temas das conversas intermináveis, que, inclusive, travavam as relações amorosas. Essa era a sua vida em Viena. Hoje nós o qualificaríamos como um chato.

A grande mudança vem com a morte do pai. A mãe o manda para São Paulo para cuidar das heranças lá deixadas. Inúmeros terrenos, muito valorizados com a especulação imobiliária. Tarefa para advogados, lhe dizia Löwinger, a quem ele reencontrara. Tinha, portanto, à disposição todo o tempo necessário para concluir o seu tratado filosófico. Mas nada conseguia escrever. A história mais uma vez se altera, quando Judith, que ele considerava morta, de repente lhe aparece à porta. Aí é que escrita travou de vez.

O romance é longo e, haja imaginação! Por incrível que pareça, ele é escrito num estalo só. São 379 páginas, sem divisão em capítulos e poucos diálogos curtos. Muitas reflexões inconclusas. Já quase ao final, refletindo sobre "as aporias da existência de um intelectual" ele abandona tudo. "Leo tinha abdicado de sua pretensão de escrever a continuação da obra de Hegel. Bastava-lhe a cátedra no bar (lá o aclamavam como professor), a qual lhe dava pelo menos a sensação de ter cumprido de alguma forma com essa pretensão" (Páginas 334-5).

Bem antes, porém, um fato ocorrido no dia 2 de outubro de 1968, o impediu de ser alçado para a consagração como um grande filósofo, o maior intérprete de Hegel no Brasil. Ele havia sido convidado para uma palestra na Universidade Mackenzie. Foi o dia da briga da Rua Maria Antônia, entre os estudantes da USP e o Comando de Caça aos Comunistas da Mackenzie. Maldita ditadura militar!

Creio que a essas alturas todos já imaginam que o romance só poderia terminar em tragédia. Vou apresentar apenas uma delas.  Leo consegue terminar o seu livro. Judith tinha anotado tudo. Havia feito uma memorável síntese, que Leo apenas editou. Mas, o resultado...! "... E foi então que apareceu o livro de Leo. A fenomenologia da desespiritualização. História do desaparecimento do saber. Semanas cheias de tensão se passaram, durante as quais não foi publicada nenhuma resenha. Finalmente Leo redigiu um artigo, no qual chamava a atenção para o conteúdo e a importância do livrinho, e o publicou na revista Leia livros, como opinião de redação, claro que teve que pagar por isso. Deixou alguns exemplares dessa edição da revista no bar.

No fim do ano, recebeu a primeira prestação de contas da editora. Tinham sido vendidos cinco exemplares. As bibliotecas das universidades de São Paulo e de Porto Alegra tinham comprado um exemplar cada. Só três exemplares haviam sido vendidos nas livrarias.

Quatro meses depois Leo ficou sabendo que sua editora tinha falido" (Página 378, a penúltima página).

O espelho ou o Espelho cego, do título está onipresente ao longo do livro. Reflexos, simulações, jogos, espelhos quebrados. O título em alemão: Selige Zeiten, brüchige Welt. As observações sobre a ditadura militar são fantásticas, um fato a mais para tornar o livro muito valioso. 

 

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

O Gattopardo. Tomasi di Lampedusa.

"Tenho porém que confessar: quando ali em Aspremonte me vi diante daquela centena de descamisados, alguns com cara de fanáticos incuráveis, outros com jeito de revoltosos profissionais, fiquei feliz que as ordens coincidissem com aquilo que eu mesmo pensava: se não tivesse mandado atirar, aquela gente teria feito picadinho dos meus soldados e de mim, e o desastre não seria grande, mas acabaria provocando a intervenção francesa e a austríaca, uma confusão sem precedentes em que desabaria este Reino da Itália que se formou por milagre, não se sabe como" (Página 274). A fala é de Pallavicino, militar que participara da batalha.

O Gattopardo. Tomasi di Lampedusa. BestBolso. Tradução: Marina Colassanti.

Essa passagem do livro indica o seu tema principal, as lutas em torno da unificação italiana. Aspremonte foi uma das batalhas em que Garibaldi, vindo da Sicília, no rumo de Roma, venceu as tropas do reino italiano. Como este é o tema principal vamos a uma pequena contextualização em torno dessa unificação, iniciada no ano de 1860. Um tema bem complexo. Vejamos a situação anterior ao movimento.

O atual território italiano era fragmentado em diversas cidades estado (reinos, principados, repúblicas) onde predominava fortemente uma economia agrícola e não havia um sentimento de unidade nacional. A fragmentação resultava em fragilidade, que despertava a cobiça das potências já estabelecidas como a Áustria e a França. Os reis borbônios, que tanto aparecem no romance, é uma alusão aos reis Bourbons. Um desses estados tomará a dianteira: o reino do Piemonte-Sardenha. A capital do Piemonte é a cidade de Turim. Ali também está em marcha uma processo de industrialização. Alguns nomes ligados ao processo: o rei Vitório Emanuel II, Mazzini, o intelectual e ideólogo do movimento, e pelo grande chefe militar, Garibaldi, fundamental nas lutas na Sicília e em todo o sul. Garibaldi, o aclamado herói de dois mundos, é velho conhecido dos brasileiros por sua participação na Revolução Farroupilha (1835-1845) Em 1861 será proclamada a monarquia constitucional da Itália, sendo Vitorio Emanuel II o rei e Cavour o seu primeiro ministro. Creio que estes dados são suficientes para se ter a devida compreensão do romance.

Creio que podemos afirmar, sem erro, que as lutas em torno da unificação italiana são, ou constituem o que se pode chamar de - a revolução burguesa na Itália. A partir desse dado vamos aos grandes personagens, aos protagonistas de O Gattopardo. Em primeiríssimo plano aparece Dom Fabrício Salina, o nobre todo poderoso de Palermo, na Sicília. Pertence, portanto, à nobreza decadente. Do outro lado, pela burguesia emergente, está a família Calogero Sedara. Muita atenção aos personagens mais próximos: Tancredi, o sobrinho de Dom Fabrício e Angélica, a bela filha de Dom Calogero. Os personagens coadjuvantes serão os ligados à família Salina, mulher, filhos e em especial as três filhas, com destaque para Concetta, o padre Pirroni, um jesuíta e, não dá para esquecer de Bendicò, o onipresente cachorro da nobre família.

Creio que o enunciar dos personagens já dá uma pista fabulosa em torno da trama, mas vou dar mais uma. "Se nós não estivermos presentes, eles aprontam a República. Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude. Fui claro"? (Página 69). Assim proclama Dom Fabrício. E um pouco mais adiante ele pergunta: "E então, o que vai acontecer? Negociações pontuadas por tiroteios quase inócuos, e depois tudo continuará igual quando tudo terá mudado" (Página 73).

Como assim? Mudar para não mudar? Em outras palavras, depois da unificação consolidada, tudo continuará igual. Para isso, basta apenas usar muita astúcia. O casamento será o grande instrumento. Fabrício entrará com o noivo, Tancredi, enquanto que a bela Angélica representará a aliança com a burguesia. A permanência do estado de coisas estará garantida. Os casamentos, o seu fazer e desfazer, não foram sempre marcados pela utilidade? Coitada de Concetta!

O romance é de autoria de Giuseppe Tomasi di Lampedusa (Palermo, 1896 - Roma, 1957) e o seu livro aparece no ano de 1958. Veio acompanhado de muita polêmica. O livro está dividido em oito partes, com os temas bem marcados. Não é muito longo. A edição da BestBolso, que eu li, tem 348 páginas, com muitas notas de introdução e posfácio. Os acontecimentos dos capítulos são datados, o que facilita bastante.

"Nunc et in hora mortis nostrae. Amen. Assim começa a primeira parte (Maio-1860). Um capítulo maravilhoso sobre os costumes da Sicília, a fantástica Trinácria do tempo dos gregos. O final da oração da Ave Maria nos indica a força do catolicismo na ilha. Dos costumes deve-se ressaltar o patriarcalismo e o poder absoluto e incontestável de Dom Fabrício. Na segunda parte (Agosto-1860), a família vai passar férias na vila de Donnafugata, a resplandecente propriedade dos Salina. Na terceira parte (Outubro-1860) a questão italiana nos é apresentada. Os resultados do plebiscito, com o fabuloso resultado de 512 sim contra 0 não, embora sob protestos de que alguns votos no não, tenham sido transformados em sim. Também veremos Tancredi se decidindo por Angélica, em detrimento de Concetta, sob fortes protestos de sua mãe.

A quarta parte (Novembro-1860) se constitui num extraordinário capítulo em que é relatado o acordo nupcial, costurado por Dom Fabrício. Este também recebe a visita de um agente do Piemonte, junto com um convite para o senado, que ele gentilmente recusa, para "não enganar a si próprio". Ao menos é isso que ele afirma. A quinta parte (Fevereiro-1861) é dedicada ao padre Pirroni. Na sexta parte (Novembro-1862) é mostrado um baile, em que brilham Tancredi e Angélica, enquanto Fabrício e o coronel Pallavicini confabulam longamente. E um parágrafo notável sobre os resultados da unificação, nas palavras do coronel: "O Senhor não esteve no continente depois da fundação do reino? Sorte sua. Não é um belo espetáculo. Nunca estivemos tão divididos como desde que estamos unidos. Turim não quer deixar de ser capital, Milão acha nossa administração inferior à austríaca, Florença teme que lhe levem as obras de arte, Nápoles chora pelas indústrias que perde, e aqui, na Sicília, está em gestação algum grande, irracional desastre..." (Página 276).

A sétima parte (Julho-1883) é dedicada ao fim, à morte de Fabrício, sem antes passar por suas mais ricas reminiscências. Morte com assistência de padre, confissão, comunhão e encomendação. A oitava e última parte (Maio- 1910) também é fantástica. É dedicada às três filhas Salina, nos seus setenta anos. Referência especial a Concetta e as mágoas de uma vida inteira. Psicanálise pura. Fanatismos religiosos e correções por parte das autoridades eclesiásticas. Apenas cinco das 74 relíquias que acumularam foram reconhecidas.

O Gattopardo é uma referência a Dom Fabrício e ele está no brasão da família Tomasi. Mas há no livro uma passagem notável referente ao Gattopardo: "...e depois será diferente, porém pior. Nós fomos os Gattopardos e os leões; os que vão nos substituir serão pequenos chacais, hienas; e todos, Gattopardos, chacais e ovelhas continuaremos a crer que somos o sal da terra" (Página 224-5).

Quando se conclui o processo da unificação italiana? Nos conta a história, que isso ocorreu com a conquista de Roma, em 1870. Mas eu diria que ela ainda está em curso. Em 2012 viajei pela Itália por quase um mês. Uma semana foi dedicada a fabulosa Sicília. Num dos trechos, tivemos um guia basco. Um primor no seu ácido humor. Nos contava ele que a Itália ainda estava longe de ser um país unificado. O sul brigava com o norte e o norte brigava com o sul. E, tanto o norte quanto o sul, brigavam com Roma. O Gattopardo é um livro imperdível. Absolutamente ímpar. Mudar para não mudar.


terça-feira, 29 de julho de 2025

Suave é a noite. F. Scott Fitzgerald.

O meu contato com a obra de Francis Scott Fitzgerald, se deu por uma indicação de livros de Luís Fernando Veríssimo, provavelmente feita numa das feiras de livro da cidade de Paraty, no Rio de Janeiro. Na ocasião, lhe foi solicitada a lista de seus dez livros preferidos. Entre eles estavam os dois de Scott: O grande Gatsby e Suave é a noite. O comentário de um leitor no post do blog de 2012sobre os livros indicados, me fez retomar a leitura dos dois. Desta vez o fiz pela ordem de sua escrita. Primeiro O grande Gatsby, escrito em 1925 e Suave é a noite, em 1934.

Suave é a noite. Scott Fitzgerald. BestBolso. 2008. Tradução: Lígia Junqueira.

O cenário do primeiro romance é o dos arredores luxuosos de Nova York, enquanto que o do segundo é o da Riviera Francesa. Em comum, os dois tem como protagonistas pessoas riquíssimas que vivem em ambientes de muito luxo e de poucos momentos felizes, em meio às suas graves crises existenciais. Em comum, os dois tem também a década de 1920, década em que os Estados Unidos decolam ruma a maior potência econômica e mergulham em profundas contradições morais, em meio ao puritanismo da Lei Seca (1920- 1933) e a rápida ascensão econômica proporcionada por meios ilegais de atividades comerciais duvidosas. É também a década da geração perdida, a era do jazz, em que muitos escritores norte americanos foram viver em Paris, entre eles, Scott.

Suave é a noite tem uma outra característica peculiar ao seu tempo. Os tempos da psicanálise. Dick Diver é um psiquiatra que, em clínicas suíças, envereda por esses campos. Dick e Nicole serão os protagonistas do romance. Eles são, respectivamente, o médico e a paciente. Outra característica particular deste romance é o seu caráter autobiográfico. Vejamos o fato na descrição de Roberto Muggiati, no prefácio:

"Se o perfil social foi inspirado em Gerald e Sara Murphy (inspiradores do cenário, na Riviera), o perfil psicológico do casal protagonista de Suave é a noite acabaria ganhando os contornos de Scott e Zelda neste que é o mais autobiográfico dos textos de Fitzgerald. Scott e Zelda casaram-se no Sábado de Aleluia de 1920, na catedral de São Patrício, em Nova York. Ele tinha 24 anos, ela 20. Um ano depois nasceu a única filha, Scottie. Jovens na primeira década transgressora do século XX, gostavam de passear de táxi (sentados no capô, é claro), de dançar e de beber. Eram os anos turbulentos que Scott batizou de 'A Era do jazz': a América vivia sob a Lei Seca, proliferavam os bares clandestinos, a bebida falsificada; a trilha sonora da década era o jazz e as metralhadoras dos gângsteres. [...] Espírito inquieto e crítico, Zelda antecipou de certa forma o feminismo e a guerra dos sexos. [...] Ela e Scott defendiam um casamento mais aberto e menos hipócrita do que os da geração de seus pais. Em 1924, na praia de Garoupe - enquanto Scott passava o dia inteiro escrevendo O grande Gatsby -, Zelda conheceu um jovem aviador francês. [...] O caso não durou muito, mas levou Zelda a uma tentativa de suicídio e criou uma chaga viva no casal". E já que enveredamos nos dados biográficos, vamos ao seu final:

"Seria o último romance escrito por Fitzgerald (Suave é a noite) - ele morreu de um ataque do coração em 1940, aos 44 anos, deixando inacabado O último magnata. Zelda continuaria a perambular pelos asilos - em meio a lampejos de lucidez - até morrer em 1948 no incêndio do hospital Asheville. Tinha 47 anos e foi identificada por um chinelo debaixo do corpo carbonizado".

Mas vamos ao romance, identificando os principais personagens. Dick e Nicole formam o casal protagonista (médico e paciente). Rosemary Hoyt e Tommy Barban rodearão o casal. Rosemary é bela e jovem, do mundo cinema. Já Tommy seria o "jovem aviador francês"? Os personagens periféricos seriam Abe North, amigo de Dick, Baby Warren, a irmã e tutora de Nicole e rica herdeira de uma imensurável fortuna. e a senhora Speers, mãe de Rosemary. Estão aí os personagens para a envolvente trama que se passa nas clínicas, nos bares e nas calorosas recepções oferecidas na Riviera Francesa. Muito luxo, paixões ardentes e o penetrar nos mais recônditos refúgios de seres humanos envolvidos em seus mistérios mais profundos. O livro é dividido em três partes, que ocupam 445 páginas 

Vejamos a contracapa: "Ambientado na Riviera Francesa em fins da década de 1920, este livro narra a história de Dick Diver, brilhante psiquiatra que se casa com a paciente Nicole Warren. A vida do casal não é mais do que uma farsa: dominados pelo tédio, incapazes de dialogar, entre interessantes coquetéis, recepções e dinheiro, vivem numa atmosfera de falsa euforia. Fitzgerald foi o autor que melhor captou a aura da riqueza e seu efeito sobre a alma humana, mostrando a rotina dos privilegiados numa época em que a América decolava num binômio de prosperidade e hipocrisia. Obra marcante da Geração Perdida, Suave é a noite, em tom marcadamente autobiográfico, revela personagens com uma excepcional carga de realismo".

Vamos ainda ao último parágrafo do prefácio de Roberto Muggiati, sobre a permanência da obra. "Suave é a noite permanece como testemunho da arte de um escritor que teve a coragem de enfrentar a selva das relações afetivas e de estudar a fundo o amor numa época em que a sensação imperou sobre o sentimento. Melhor do que qualquer outro romancista do século XX, Scott Fitzgerald soube navegar  por águas turvas no seu empenho de traçar a cartografia do desejo humano".

Deixo também a resenha de O grande Gatsby. 

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/07/o-grande-gatsby-f-scott-fitzgerald.html



 

quarta-feira, 23 de julho de 2025

O grande Gatsby. F. Scott Fitzgerald.

Ainda em 2012, ano em que eu comecei este blog, publiquei os dez livros preferidos de Luís Fernando Veríssimo. Ele manifestou esta sua preferência provavelmente numa das Feiras Literárias de Paraty. Para não vou deixar vocês curiosos, eu apresento a lista:

O grande Gatsby. Scott Fitzgerald. Penguin & Companhia. 2011. Tradução: Vanessa Barbara.


Tarzan dos macacos. Edgar Rice Burroughs.

O grande Gatsby. Francis Scott Fitzgerald.

O tempo e o vento. Érico Veríssimo.

Lolita. Vladimir Nobokov.

USA. John dos Passos.

O encontro marcado. Fernando Sabino.

Ulisses. James Joyce.

Put out More Flags. Evelyn Waugh.

Suave é a noite. Francis Scott Fitzgerald.

Fim de caso. Graham Greene.

Apresento esta lista porque ela despertou a minha curiosidade e me fez procurar estes livros. Alguns eu nem mesmo encontrei. Outros eu li. Entre eles O grande Gatsby. Agora, lendo alguns livros da literatura norte americana, me decidi a fazer a sua releitura.

Um dos últimos livros dessa literatura foi Babbitt, de Sinclair Lewis, publicado em 1922. Embora o livro de Scott Fitzgerald aparecesse apenas em 1925, ele foi escrito no início da década. e, de uma forma ou de outra, existe uma semelhança entre eles, ao menos quanto a abordagem do tema. Foi o tempo em que imperou a Lei Seca (1920-1933), um período de muitas transgressões e um tempo em que se fizeram grandes fortunas. É óbvio que isso não passaria despercebido pelos escritores desse período. Literatura rica e farta.

O livro que eu li pertence a coleção clássicos, da Penguin & Companhia, 2011. Nele tem uma longa introdução em  que o crítico literário inglês Antony Tanner, nos apresenta a obra. Dela eu tomo o primeiro parágrafo e um pedaço do segundo, como uma introdução ao tema:

"De início, não era para se chamar O grande Gatsby. Numa carta a Maxwell Perkins, Fitzgerald escreveu: 'Decidi que vou insistir com o título que dei ao livro, Trimalchio em West Egg'. Trimálquio é o novo-rico vulgar e de imensa fortuna do Satyricon, de Petrônio; um mestre das alegrias gastronômicas e sexuais que oferece um banquete de luxo inimaginável, do qual indiscutivelmente participa - ao contrário de Gatsby, que é um espectador sóbrio e isolado das próprias festas. É um verdadeiro glutão, ao passo que Gatsby mantém uma curiosa distância de tudo o que possui e exibe, tanto que às vezes recua do próprio discurso e o submete à avaliação, como se fossem palavras alheias, e tanto que ostenta camisas que nunca usou, livros que nunca leu e convites para nadar na piscina que nunca utilizou.

Se Fitzgerald concebia Gatsby como uma espécie de Trimálquio americano urdido pela licenciosidade desenfreada dos anos 1920, por certo o sujeitara a uma notável metamorfose. (Gatsby é chamado de Trimálquio apenas uma vez no romance.) Mas há alguns claros traços genealógicos do remoto ancestral de Gatsby". E uma pergunta incômoda paira no ar . O sonho americano é uma aspiração ou uma privação? Gatsby alimenta uma enorme paixão por Daisy, mas quando eles se encontram permanecem desajeitados e com os "olhos tensos e infelizes".

Mas vamos aos personagens desses afortunados. Ou seriam desafortunados? Nick Carraway é o narrador. Jay Gatsby, por óbvio, é o personagem central. Gatsby entra em cena pela primeira vez apenas no terceiro capítulo, quando Nick veio morar no estreito de Long Island, um paraíso terrestre dos novos ricos, nas proximidades de Nova York. Nick será vizinho de Gatsby, sempre observando e, mais tarde, participando de suas enormes festas. Nas proximidades, mas do outro lado da casa de Gatsby, morava um casal. Daisy e Tom Buchanan, amigos de Nick e de Jordan Baker, uma atleta, amiga de todos. Existem ainda outros dois personagens centrais na trama. Myrtle Wilson, esposa de um pacato e apaixonado marido, dono de uma oficina mecânica, mas amante de Tom e Meyer Wolsheim, um homem em permanente "estado de negócios" e mentor de Gatsby. Bem, eu paro por aí, mas não sem antes dizer duas coisas: Gatsby sempre fora apaixonada por Daisy e tudo fez para dela se aproximar. Essa era a razão das grandes festas, uma tentativa de aproximação. E a segunda, que tudo acaba numa grande tragédia. O romance busca desvendar quem era efetivamente Jay Gatsby e qual teria sido a origem de sua enorme fortuna. 

Ao final Nick fala do casal Tom e Daisy: "Tudo decorrera de forma descuidada e confusa. Eles eram todos descuidados e confusos. Eram descuidados, Tom e Daisy - esmagavam coisas e criaturas e depois se protegiam por trás da riqueza ou de sua vasta falta de consideração, ou o que quer que os mantivesse juntos, e deixavam para os outros limparem a bagunça eles haviam feito" (página 239). Também já eram os tempos da psicanálise. Deixo ainda as anotações da contracapa:

"Seus pais eram fazendeiros preguiçosos e fracassados - sua imaginação nunca os reconhecera como pais. A verdade era que Jay Gatsby de West Egg, Long Island, havia saído da própria concepção platônica de si mesmo. Ele era um filho de Deus".

"Se Scott Fitzgerald (1896-1940) foi o escritor da Era do Jazz, nenhum de seus livros foi capaz de captar o espírito da época como O grande Gatsby. Entre a música e a vida extravagante da década de 1920, a saga de Jay Gatsby reproduz uma ideia comum a toda a sua obra: o sonho americano, mais do que uma realização, pode ser frustrante.

Fitzgerald escreveu este romance durante sua estadia em Paris, para onde, na mesma época, se mudaram Ernest Hemingway e Gertrud Stein, a 'geração perdida' da literatura americana. Egresso da classe média alta, Fitzgerald usou a própria experiência para fazer um alerta sobre o materialismo. Ainda que o narrador Nick Carraway não seja um alter ego do autor, ambos compartilham conclusões amargas a respeito da falsidade e do dinheiro. O grande Gatsby é uma obra que valoriza os ideais e a força do desencanto por trás de uma aparente narrativa".

Deixo aqui o post de Babbitt, também um termo para designar o novo-rico.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/05/babbitt-harry-sinclair-lewis-1922-nobel.html

E é impossível compreender os Estados Unidos sem o livro de Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/01/a-etica-protestante-e-o-espirito-do.html



terça-feira, 15 de julho de 2025

Minhas viagens com Heródoto. Ryszard Kapuscinski.

Depois de uma série de leituras que envolveram história, a busca por origens, me lembrei de um livro cuja leitura me impressionou muito quando o li. Isso foi lá no ano de 2007. Resolvi retomá-lo. Trata-se de Minhas viagens com Heródoto - Entre a história e o jornalismo. O autor é o polonês Ryszard Kapuscinski, um jornalista a recordar as suas primeiras reportagens, quando fora destacado pela sua agência, a fazer reportagens mundo afora, para muito além de sua pátria. Ele próprio conta que sempre fora movido pelo desejo de conhecer o outro lado, o lado de fora, o lado diferente. Uma curiosidade infinita.

Minhas viagens com Heródoto. Ryszard Kapuscinski. Companhia das Letras. 2006. Tradução: Tomasz Barcinski.

Na contracapa temos a explicação de sua situação, o contexto do surgimento de sua obra: "Criado numa Polônia ocupada primeiro pelos nazistas e depois pelos soviéticos, Ryszard Kapuscinski cresceu com a obsessão de conhecer o que havia 'do outro lado da fronteira'. Essa motivação, que o transformaria num dos mais importantes jornalistas internacionais de nosso tempo, foi confirmada e iluminada pela leitura do clássico História, escrito no século V antes de Cristo pelo grego Heródoto de Halincarnasso".

Ryszard ou Richard frequentava os bancos escolares da universidade quando tem os seus primeiros contatos com os gregos. Ele mesmo nos conta, logo no primeiro capítulo de seu livro: "A guerra terminara cinco anos antes (Devia ser então o ano de 1950), a cidade jazia em ruínas, as bibliotecas haviam sido consumidas pelo fogo. Diante disso, não tínhamos compêndios, faltavam-nos livros". Richard ainda nos informa que História começou a circular na Polônia apenas no ano de 1955, dois anos após a morte de Stálin. Foi também nesse período que Richard começou a trabalhar, num jornal chamado "Estandarte dos Jovens'. Seus primeiros trabalhos chamaram a atenção de sua diretora, da qual, num certo dia, recebeu a notícia para o seu primeiro grande trabalho: "Vamos enviá-lo para a Índia".

Richard nos informa a sequência daquela conversa: "Ao término daquela conversa, durante a qual fui informado de que partiria para o mundo, a senhora Tarlowska foi até um armário, tirou de lá um livro e, entregando-o a mim, disse: 'Um presente meu para a sua viagem'. Era um livro grosso, cuja capa dura estava coberta por um pano amarelado. Nela, em letras douradas, pude ler o nome do autor e o título: Heródoto. História". Assim começa a missão do grande repórter internacional que ele viria a ser. Parte para a Índia, para a China, para o Congo e outros países africanos convulsionados após a conquista de suas independências, para o Irã... Haja mundo diferente e, quantas diferenças. Ao longo da descrição dessas viagens, ele sempre as intercala com a leitura de Heródoto. Com o livro de Richard, você praticamente tem dois livros. O livro História de Heródoto e Minhas viagens com Heródoto, de Kapuscinski.

O livro tem 28 capítulos, tendo cada um em torno de dez páginas. Sempre, numa alternância entre os locais visitados e as histórias dos povos visitados por Heródoto e a sua forma de contar o diferente. Verdadeiras aulas, tanto de história, quanto de jornalismo, especialmente de reportagem. História é considerado como o primeiro grande livro reportagem, detalhando como Heródoto as fazia. Riquíssimo. São, ao todo, 305 páginas de um magistral aprendizado. Na contracapa temos a continuação da apresentação do livro:

"Em Minhas viagens com Heródoto, Kapuscinski relata de modo caloroso e bem humorado seus primeiros tempos de repórter, quando recém saído da universidade, foi enviado a países remotos e indecifráveis como a Índia, a China e o Congo para contar a seus compatriotas o que se passava por lá. Felizmente, o jovem aprendiz de jornalista levava na bagagem o livro de Heródoto, que ele considera 'a primeira grande reportagem da literatura mundial'. Ao ler sobre a expansão do império persa ou a batalha de Salamina, mais do que técnicas de coleta e organização de informações, Kapuscinski aprendeu a lição essencial de que conhecer e buscar compreender outras culturas é um exercício de tolerância e autocrítica".

Sublinhei muitas passagens. Entre elas esta, já ao final da obra: "Heródoto viaja para poder responder a uma pergunta formulada na infância: de onde vêm os navios que vemos no horizonte? Eles surgem de onde? Qual sua procedência? Quer dizer que o que vemos com nossos olhos ainda não é a fronteira do mundo? Existem outros mundos? Quais? Quando crescer, vai querer conhecê-los. Mas é melhor que não cresça por completo, que permaneça algo de criança em sua alma, pois só elas fazem perguntas importantes e querem, realmente, aprender.

E, com entusiasmo e encantamento infantis, Heródoto se lança à descoberta de seus mundos. Eis sua maior descoberta: eles são muitos, diferentes entre si, mas importantes cada um à sua maneira.

É preciso conhecê-los porque esses mundos e essas culturas são espelhos nos quais nos miramos - nós e a nossa cultura - e nos quais ela se reflete. Graças a eles, entendemos melhor a nós mesmos, já que não podemos definir a nossa singularidade se não a confrontarmos com outras.

Tendo feito essa descoberta - a descoberta de que as outras culturas são espelhos nos quais podemos nos olhar para compreender melhor quem somos -, Heródoto, a cada manhã, infatigavelmente, de novo e mais uma vez, parte em viagem" (Páginas 292- 3).Que lição maravilhosa. Compreensão de mundo. E também uma concepção de educação: trabalhar a curiosidade da criança. E, que vontade de viajar...

E para terminar, uma historinha. É sobre os trausos e sobre um costume seu: "[...] são em tudo semelhantes (os seus costumes) aos dos outros Trácios, exceto com relação aos recém nascidos e aos mortos. Quando nasce, entre eles uma criança, os parentes, sentados em torno dela, enumeram os males a que está sujeita a natureza humana e lamentam, com gemidos, a sorte ingrata que fatalmente a acompanhará enquanto viver; mas, quando morre um deles, enterram-no alegremente, regozijando-se com a felicidade desse que acaba de libertar-se de tantos males" (páginas 172-3).

quarta-feira, 9 de julho de 2025

História universal da destruição dos livros. Das tábuas sumérias à guerra do Iraque. Fernando Báez.

Uma série de leituras em sequência. Uma história da leitura, de Alberto Manguel, O infinito em um junco - A invenção dos livros no mundo antigo, livro maravilhoso de Irene Vallejo, e agora, História universal da destruição dos livros - Das tábuas sumérias à guerra do Iraque, do venezuelano Fernando Báez. Essas leituras proporcionam uma ampla visão sobre o tema dos livros, especialmente sobre a sua importância e muito mais ainda, sobre o verdadeiro pavor que eles provocam em determinadas mentes. Sobre este pavor, História universal da destruição dos livros é absolutamente insubstituível.

História universal da destruição dos livros. Fernando Báez. Ediouro. 2006. Tradução: Léo Schlafman.

Não houve um único momento ao longo da história em que não se tenha buscado a sua não chegada aos leitores, seja pela censura ou pela sua radical destruição. O fogo foi sempre o principal meio utilizado. Por outro lado, a censura e a destruição, também sempre provocaram a curiosidade e o aumento do desejo das chamadas leituras proibidas. Deixo inicialmente as duas frases em epígrafe do livro. Pelo seu poder de síntese, eu aprecio muito epígrafes bem postas. Vejamos:

"Onde queimam livros, acabam queimando homens". Heinrich Heine, Almansor, 1821.

"...cada livro queimado ilumina o mundo...". Ralf Waldo Emerson, Essays, First series, 1841. A realidade contida nessas epígrafes são facilmente constatadas ao longo do livro. Vejamos a  sua apresentação, contida na contracapa:

"Desde que surgiram as primeiras formas de livro na Suméria, o homem empreendeu uma verdadeira saga que reduziria em cinzas um número incalculável de obras. Medo, ódio, soberba, intolerância e sede de poder são o que sempre motivaram os biblioclastas, cuja intenção na verdade nunca foi simplesmente destruir o objeto em si, mas, o que este representava: o vínculo com a memória, o patrimônio de ideias de toda uma civilização.

História universal da destruição dos livros é o resultado de um estudo de 12 anos, em que Báez nos oferece uma visão aterradora da devastação sistemática, que se inicia no Mundo Antigo, passando pela Inquisição e tempo de conquistas, até a catástrofe mais recente: a destruição de um milhão de livros no Iraque como consequência de uma guerra absurda. Para o autor, trata-se de mais uma manifestação da inexorável necessidade de impor uma cultura sobre a outra.

Mais do que um levantamento minucioso dos prejuízos, esta obra denuncia os crimes cuja maior vítima é a própria humanidade, pois 'onde se queimam livros, acabam queimando homens', assim disse o poeta alemão Heinrich Heine". Na mesma contracapa se lê um elogio mais do que grandioso; pela sua origem; de Noam Chomsky: "Impressionante. O maior livro escrito sobre este tema". Báez nos conta sobre a origem, sobre os motivos que o levaram a esta escrita:

"E assim começou esta pesquisa, por um erro, como todas as coisas importantes. Munido com esse livro em ruínas como único amuleto, descobri que, além de centenas de milhares de mortos, a Guerra Civil Espanhola provocou um desastre cultural oculto durante décadas". Ele dá detalhes. Ele se encontrava num sebo em Madri, em busca de um livro de Unamuno. Não o encontrou, mas em compensação, encontrou um livro em frangalhos. Ele narra: "A duras penas, reconheci entre os fragmentos uma antologia de poemas de Federico García Lorca. Li, fascinado, um dos textos e, enquanto segurava as páginas, pedaços inteiros caíram no chão. O livro não tinha índice e faltavam as páginas finais, arrancadas com pouco cuidado. Havia uma nota oficial de algum censor: 'Livro proibido. Astúrias, El Infierno.'. Intrigado, corri para perguntar o preço e o implacável dono me pediu que o levasse, visivelmente incomodado. Diante de minha perturbação, o homem disse: 'Leve-o, não sei quem pôde trazer até aqui o livro desse comunista'". Eis a provocação da qual saiu este livro e um dos motivos - sempre entre os mais presentes - na obra da destruição.

O livro é relativamente longo e é também uma viagem na geografia, passando pelos mais diversos lugares do mundo, uma vez que o desejo da destruição dos livros é uma fenômeno universal. Ele tem 438 páginas, divididas em Introdução, três partes e notas com a indicação de suas preciosas fontes, além da bibliografia. As partes tem os seguintes títulos: Primeira parte: O mundo antigo; Segunda parte: Da era de Bizâncio ao século XIX; Terceira parte: O século XX e o início do século XXI.

Convido a uma viagem pelos capítulos das diferentes partes:

Primeira parte: O mundo antigo, com dez capítulos: 1. Oriente médio; 2. Egito; 3. Grécia; 4. Apogeu e fim da biblioteca de Alexandria; 5. Outras antigas bibliotecas destruídas; 6. Israel; 7. China; 8. Roma; 9. As origens radicais do cristianismo; 10. O esquecimento e a fragilidade dos livros.

Segunda parte: Da era de Bizâncio ao século XIX, com 14 capítulos: 1. Os livros perdidos de Constantinopla; 2. Entre monges e bárbaros; 3. O mundo árabe; 4. Um confuso fervor medieval; 5. Espanha muçulmana e outras histórias; 6. Os códices queimados no México; 7. Em pleno Renascimento; 8. A Inquisição; 9. A condenação dos astrólogos. 10. A censura inglesa; 11. Entre incêndios, guerras e erros; 12. De revoluções e provocações; 13. Em busca de pureza; 14. Alguns estudos sobre a destruição de livros.

Terceira parte: O século XX e o início do século XXI, com 11 capítulos: 1. Os livros destruídos durante a Guerra Civil Espanhola; 2. O bibliocausto nazista; 3. As bibliotecas bombardeadas na Segunda Guerra Mundial; 4. Censura e autocensura literárias modernas; 5. Um século de desastres; 6. Os regimes de terror; 7. O ódio étnico; 8. Religião, ideologia, sexo; 9. Entre inimigos naturais e legais; 10. O terrorismo e a guerra eletrônica; 11. Os livros destruídos no Iraque.

Por óbvio, também os clássicos da literatura universal são citados, assim como as maiores e mais famosas bibliotecas. Também os grandes inimigos dos livros são nominados. Da segunda parte o destaque vai para a Inquisição, enquanto que na terceira, o destaque vai para o bibliocausto (um paralelo com o holocausto) nazista e a Guerra Civil Espanhola. Do livro também pincei a minha frase preferida. É de Pascal. Ela data de 1657. Ocorreu em resposta à queima de suas Cartas provinciais, onde ele denunciou desvios morais de jesuítas. Pascal assim se expressou: "Os homens nunca agem mal de maneira tão perfeita e aplaudida como quando o fazem movidos pela convicção religiosa" (Página 202).

Vejamos ainda as orelhas do livro: "Incêndios, enchentes, terremotos, guerras e regimes autoritários causaram a morte de milhões de pessoas . Mas nesta notável obra temos a chance de conhecer uma história nunca antes contada de forma tão minuciosa: a da destruição dos livros. O autor venezuelano Fernando Báez nos leva de volta ao Mundo Antigo para acompanhar, desde o início, a trajetória dessa prática que teve entre seus adeptos não só homens ignorantes ou perversos, mas também grandes filósofos, eruditos e escritores, como Descartes, Platão e Heidegger. Alguns porque acreditavam que, eliminando os vestígios do pensamento de uma determinada época, estariam promovendo a superação do conhecimento humano. Outros, mais modestos, lançavam ao fogo suas obras simplesmente por vergonha do que haviam escrito. No entanto, os principais destruidores de livros sempre tiveram como maior motivação o desejo de aniquilar o pensamento livre. Os conquistadores atribuíam à queima da biblioteca do inimigo a consagração de sua vitória.

E assim o autor nos conduz através dos tempos e pelos mais diversos continentes para refazer o percurso dessa pesquisa dolorosa, mas que ironicamente ameniza o nosso sofrimento. Afinal, ao remontar à perda de incontáveis obras, ideias, conhecimentos e memórias, é possível reconstruir e desvendar muitas épocas, mentiras, lendas e mistérios que envolveram essa história de horror que parece não ter chegado ao fim.

Em 2003, a guerra levou à extinção mais de um milhão de livros e dez milhões de documentos da Biblioteca Nacional do Iraque, berço da civilização ocidental. Inertes, assistimos em tempo real a um verdadeiro genocídio cultural, cujas consequências para as próximas gerações serão irreparáveis". 

Deixo também os posts dos livros referenciados no início: 

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/06/uma-historia-da-leitura-alberto-manguel.html

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/06/leituras-proibidas-uma-historia-da.html 


quinta-feira, 3 de julho de 2025

O Infinito em um junco. A invenção dos livros no mundo antigo. Irene Vallejo.

Este livro eu ganhei de presente. Presente de uma pessoa muito querida e plena de significados em minha vida. Trata-se de O Infinito em um junco - A invenção dos livros no mundo antigo, da romancista e ensaísta espanhola Irene Vallejo. Sempre considerei muito o fato de os livros serem objetos para presentear. Acima de tudo eles referenciam a pessoa que as presenteia. Esta abertura do post é a minha forma de agradecer, publicamente, o presente recebido. Também, não o nego, um livro também referencia e reverencia a pessoa que o recebe. Vamos ao livro.

O Infinito em um junco. Irene Vallejo. Intrínseca. 2022. Tradução: Ari Roitman e Paulina Wacht.

O livro é um maravilhoso tributo à escrita, aos livros, à sua preservação, bem como à leitura e aos leitores. Somente uma pessoa muito apaixonada pela causa conseguiria escrevê-lo, e, escrevê-lo tão bem. É uma agradável viagem no tempo, um penetrar no mundo antigo, no seu tempo lento em avanços, como que, para absorver todos os seus profundos significados. E que belo título: O infinito em um junco. Tudo remete às origens.

O livro é longo. Ele contem 493 páginas e está dividido em duas partes: I. A Grécia imagina o futuro; 2. Os caminhos de Roma. A parte sobre a Grécia tem vários subtítulos e 87 tópicos, enquanto a que versa sobre Roma também tem seus subtítulos e 48 tópicos. É uma questão de organização. A organização e estruturação dos livros, ao longo da história, é também um dos temas do livro. Tem também Prólogo, epílogo, notas e agradecimentos. O epílogo tem por título: Os esquecidos, as anônimas. Tem também várias frases em epígrafe, das quais transcrevo as duas últimas:

"Ler é sempre uma translação, uma viagem, um ir embora para se encontrar. Ler, mesmo sendo normalmente um ato sedentário, leva-nos de volta à nossa condição de nômades". Antonio Basanta, Leer conta la nada. E,

"O livro é, acima de tudo, um recipiente onde o tempo repousa. Uma prodigiosa armadilha com a qual a inteligência e a sensibilidade humanas venceram a condição efêmera, fluida, que levava a experiência do viver para o vazio do esquecimento". Emilio Lledó, Los libros y la libertad.

O livro também se constitui numa belíssima aula de história e de literatura clássica. A primeira parte, a que versa sobre a Grécia é dedicada à cidade de Alexandria, à sua Biblioteca, ao seu Museu e ao seu Farol. O grande personagem é Alexandre, o Grande. Alexandre nunca, em sua breve vida de viagens e combates se desfez da Ilíada, livro no qual buscava inspiração. Fala de Ptolomeu e dos Ptolomeus, os artífices da biblioteca, da grandeza do Egito, do papiro e dos pergaminhos. E, como não poderia deixar de ser, da fusão cultural do helenismo, da Ilíada, da Odisseia, do teatro, das tragédias e de toda a literatura grega e de seus significados.

A parte dedicada a Roma, fala da má reputação inicial da cidade, nascida de um fratricídio e de, apesar de toda a grandeza de seu império, terem sido dominados pela cultura dos gregos. Fala da Magna Grécia e dos horrores da escravidão que rondava como possibilidade e ameaça para todos. Fala da separação de classes e dos privilégios dos dominantes, entre eles, a escrita e a leitura. Fala dos primeiros livreiros e de seu ofício de copistas. Fala de Herculano e de Pompeia, cidades de prazeres, banhos e salas de leitura  e também dos fétidos pregadores contra os prazeres e os perigos dos banhos. Fala da perseguição aos livros e de suas queimas por temor de seus efeitos e de toda uma Idade Média, tempo de carência de livros. Apesar disso, não se consegue impedir o surgimento do Renascimento. 

Dessa segunda parte destaco um dos parágrafos finais, com destaque para beleza da escrita e do posicionamento da autora: "Devemos aos livros a sobrevivência das melhores ideias projetadas pela espécie humana. Sem eles, provavelmente teríamos nos esquecido daquele punhado de gregos temerários que decidiram entregar o poder ao povo e chamaram esse ousado experimento de 'democracia'; dos médicos hipocráticos, que criaram o primeiro código deontológico da história, no qual se comprometiam a cuidar também dos pobres e dos escravos: 'Leva em consideração os meios do seu paciente. Em determinadas ocasiões deves prestar teus serviços até gratuitamente; e, se tiveres oportunidade de atender um estrangeiro que se encontra em dificuldades econômicas, dá-lhe plena assistência'; de Aristóteles, que fundou uma das primeiras universidades e dizia aos alunos que a diferença entre o sábio e o ignorante é a mesma que entre o vivo e o morto; de Eratóstenes, que usou o poder do raciocínio para calcular a circunferência da Terra, com uma pequena margem de erro de oitenta quilômetros, utilizando apenas um pedaço de pau e um camelo; ou os códigos legais daqueles romanos doidos que um dia concederam a cidadania a todos os habitantes do seu enorme império; ou daquele grego cristão, Paulo de Tarso, que pronunciou o que possivelmente foi o primeiro discurso igualitário quando disse: 'Não há judeu nem grego, não há escravo nem homem livre, não há homem, nem há mulher'. Conhecer todos esses precedentes nos inspirou ideias tão extravagantes no reino animal, quanto direitos humanos, democracia, confiança na ciência, saúde universal, educação obrigatória, direito a um julgamento justo e preocupação social pelos mais fracos" (Páginas 434-435). E por aí vai. E, no mesmo tom, encerra o livro:

"Os livros legitimaram, é verdade, fatos terríveis, mas também sustentaram os melhores relatos, símbolos, saberes e invenções que a humanidade construiu no passado. Na Ilíada assistimos ao lancinante encontro entre um velho e o assassino do seu filho; nos versos de Safo descobrimos que o desejo é uma forma de rebeldia; em História, de Heródoto, aprendemos a buscar a versão do outro; em Antígona vislumbramos a existência da lei internacional; nas Troianas nos deparamos com a barbárie própria; numa epístola de Horácio encontramos a máxima iluminista 'atreva-se a saber'; na Arte de amar, de Ovídio, fizemos um curso intensivo de prazer; nos livros de Tácito compreendemos os mecanismos da ditadura; e na voz de Sêneca ouvimos o primeiro grito pacifista. Os livros nos legaram algumas ideias dos nossos antepassados que realmente não envelheceram de todo mal: a igualdade entre os seres humanos, a possibilidade de escolher os nossos dirigentes, a intuição de que talvez seja melhor para as crianças ficarem na escola do que trabalhando, a vontade de usar - e gastar - o erário para cuidar dos doentes, dos velhos e dos desvalidos. Sem os livros, as melhores coisas do nosso mundo teriam se dissipado no esquecimento" (Página 437).

Deixo ainda a apresentação da orelha da capa: "De fumaça, de pedra, de argila, de seda, de pele, de árvores, de plástico e de luz. O Infinito em um junco nos conduz pela vida do livro, em seus variados formatos, e pela vida daqueles que o preservaram há quase cinco milênios".

"Este é um livro sobre a evolução dos livros. Um passeio pela trajetória desse artefato fascinante que inventamos para que as palavras pudessem viajar no espaço e no tempo. É a história de sua fabricação e de todos os modelos e formatos ao longo da jornada humana.

É também um livro de viagem. Uma rota com paradas nos campos de batalha de Alexandre e na Vila dos Papiros sepultada pelas lavas do Vesúvio, nos palácios de Cleópatra e na cena do crime de Hipátia, nas primeiras livrarias e nas oficinas de cópia manuscrita, nas fogueiras em que eram queimados códices proibidos, no gulag, na Biblioteca de Sarajevo e no labirinto subterrâneo de Oxford no ano 2000. Um fio que une os clássicos ao vertiginoso mundo contemporâneo, conectando-os aos debates atuais: Aristófanes e os processos judiciais contra os humoristas, Safo e a voz literária das mulheres, Tito Lívio e o fenômeno dos fãs, Sêneca e a pós-verdade.

Mas, acima de tudo, esta é uma fabulosa aventura coletiva protagonizada por milhares de pessoas que, ao longo do tempo, tornaram o livro possível e o protegeram: contadores de histórias, escribas, iluminadores, tradutores, vendedores ambulantes, professores, sábios, espiões, rebeldes, freiras, aventureiros; leitores de todos os cantos, nas capitais onde se concentra o poder e nas regiões mais remotas, onde o conhecimento se refugia em tempos de caos. Pessoas comuns cujos nomes, muitas vezes, são apagados da história; gente que salva livros, os verdadeiros protagonistas desta história".

Enfim, um mergulho nas origens e mitos fundadores da cultura ocidental, nos fundamentos da cultura clássica, greco-romana, da qual Irene Vallejo é notória autoridade. E, se você, ao querer presentear alguém, se defrontar com dúvidas, eis aí uma bela sugestão. Com certeza você se dará muito bem. É impossível não agradar.

Deixo também a leitura anterior, em dois posts que versam sobre o tema.


quarta-feira, 25 de junho de 2025

LEITURAS PROIBIDAS. Uma história da leitura. Alberto Manguel.

Ao ler O diário de H. L. Mencken me deparei com uma nota de rodapé sobre um tal de Comstock. Essa nota me fez brotar da memória uma leitura dos anos 2000. Trata-se do livro Uma história da leitura, do escritor argentino, mas cosmopolita, Alberto Manguel. Um capítulo em particular que versava sobre leituras proibidas. Nele aparece o notável censor de livros, Anthony Comstock, presidente de uma sociedade que tinha por finalidade a extinção do vício.

Uma história da leitura. Alberto Manguel. Companhia das Letras. 2002.

O livro de Manguel é notável. É, como diz o título, um passeio pelo mundo da leitura. Os livros nunca provocaram a indiferença das pessoas. Ou eles são amados, ou então, profundamente odiados. O capítulo das leituras proibidas nos remete ao ano de 1660, a Carlos II, rei da Inglaterra. O rei nos é apresentado como um monarca alegre "por seu amor ao prazer e aversão aos negócios". Ele acreditava, de acordo com Lutero, que "a salvação da alma dependia da capacidade de cada um ler a palavra de Deus por si mesmo". Os escravocratas discordavam. "Não acreditavam nos argumentos de que uma alfabetização restrita à Bíblia fortaleceria os laços da sociedade; percebiam que, se os escravos pudessem ler a Bíblia, poderiam ler também panfletos abolicionistas e que mesmo nas Escrituras seriam capazes de encontrar noções incendiárias de revolta e liberdade". 

Depois de algumas digressões, Manguel volta a Carlos II, desta vez sendo confrontado por Comstock. "Em 1872, pouco mais de dois séculos após o decreto otimista de Carlos II, Anthony Comstock - um descendente dos antigos colonos que tinham se oposto aos impulsos pedagógicos de seu soberano - fundou em Nova York a Sociedade para a Extinção do Vício, o primeiro conselho de censura efetivo dos Estados Unidos. Pensando bem, Comstock teria preferido que a leitura jamais tivesse sido inventada, mas, já que o fora, estava decidido a controlar seu uso.  Comstock considerava-se um leitor dos leitores, aquele que sabia o que era boa e o que era má literatura, e fazia todo o possível para impor suas ideias aos outros". Em seu diário se lia:

"Quanto a mim, estou decidido, com a força de Deus, a não ceder à opinião dos outros, e se sentir e acreditar que estou certo, hei de me manter firme. Jesus jamais foi afastado do caminho do dever, por mais duro que fosse, pela opinião pública. Por que eu o seria?" Manguel nos fornece alguns dados de seu personagem:

"Anthony Comstock nasceu em New Canaan, Connecticut, em 7 de março de 1844. Era um sujeito corpulento e, no decorrer da carreira de censor, utilizou muitas vezes seu tamanho para derrotar fisicamente os oponentes. Um de seus contemporâneos descreveu-o assim: 'Com um metro e meio (de sapatos), carrega tão bem seus 95 quilos de músculos e ossos que você diria que não pesa mais de oitenta. Seus ombros de Atlas, de enorme circunferência, encimados por um pescoço de touro, estão de acordo com um bíceps e uma panturrilha de tamanhos excepcionais e solidez de ferro. Suas pernas são curtas e lembram troncos de árvore'". E a narrativa continua:

"Comstock tinha vinte e poucos anos quando chegou a Nova York com 3,45 dólares no bolso. Conseguiu emprego como vendedor de tecidos e artigos de armarinho e logo economizou os quinhentos dólares necessários para comprar uma pequena casa no Brooklin. Poucos anos depois, casou com a filha de um ministro presbiteriano, dez anos mais velha que ele. Em Nova York, Comstock descobriu muita coisa que julgava censurável. Em 1868, depois que um amigo lhe contou como fora 'desencaminhado, corrompido e pervertido' por um certo livro (o título dessa poderosa obra não chegou até nós), Comstock comprou um exemplar na loja e depois, acompanhado por um policial, fez prender seu dono e confiscar o estoque. O sucesso desse primeiro ataque foi tal que ele decidiu continuar, provocando periodicamente a prisão de editores e impressores de material excitante.

Com a ajuda de amigos da Associação Cristã de Moços que lhe forneceram 8500 dólares, Comstock pôde fundar a sociedade pela qual ficou famoso. Dois anos antes de morrer, disse a um entrevistador em Nova York: 'Nos 41 anos em que estive aqui, condenei um número suficiente de pessoas para encher um trem de passageiros de 61 vagões, sessenta vagões com sessenta passageiros cada, e o sexagésimo primeiro cheio. Destruí 160 toneladas de literatura obscena'.

O fervor de Comstock foi também responsável no mínimo por quinze suicídios. Depois que conseguiu mandar o ex-cirurgião irlandês Willian Haynes para a prisão, Haynes se matou. Um pouco mais tarde, Comstock estava prestes a tomar a barca para o Brooklin (relembrou posteriormente) quando 'uma Voz' lhe disse que fosse até a casa de Haynes. Lá chegou quando a viúva estava descarregando de uma carroça as chapas de impressão de livros proibidos. Com grande agilidade, Comstock saltou para o assento do condutor e levou a carroça para a ACM, onde as chapas foram destruídas". E vamos deixar a a escrita de Manguel fluir:

"Que livros lia Comstock? Ele era um seguidor involuntário do conselho jocoso de Oscar Wilde: 'Jamais leio um livro que devo resenhar; ele o torna muito parcial'. Às vezes, porém, folheava os livros antes de destruí-los e ficava horrorizado com o que lia. Achava a literatura da França e da Itália 'pouco melhor que histórias de bordeis e prostitutas nessas nações lúbricas. Com que frequência se encontram nessas histórias torpes heroínas adoráveis, excelentes, cultivadas, ricas, e encantadoras em todos os aspectos, as quais têm por amantes homens casados; ou, depois do casamento, os amantes cercam a jovem esposa, gozando de privilégios que pertencem somente ao marido!'. Até mesmo os clássicos não estavam acima da exprobação. 'Tome-se, por exemplo, uma obra bem conhecida de Boccaccio', escreveu em seu Traps for the young [Armadilhas para os jovens]. O livro era tão imundo que Comstock faria qualquer coisa para 'evitar que ele, como uma besta selvagem, se soltasse e destruísse a juventude do país'. Balzac, Rabelais, Walt Whitman, Bernard Shaw e Tolstoi estavam entre suas vítimas. A leitura cotidiana de Comstock, dizia ele, era a Bíblia". Depois Manguel vai além em suas análises:

"Os métodos de Comstock eram selvagens, mas superficiais. Faltava-lhe a percepção e a paciência de censores mais sofisticados, que escavavam o texto com um torturante cuidado em busca de mensagens enterradas. Em 1981, por exemplo, a junta militar liderada pelo general Pinochet baniu Dom Quixote do Chile porque o general achava (com bastante razão) que o livro continha um apelo pela liberdade individual e um ataque à autoridade instituída.

A censura de Comstock limitava-se, num ataque de ultraje, a pôr as obras suspeitas em um catálogo dos amaldiçoados. Seu acesso aos livros também era limitado: só podia caçá-los se aparecessem em público, quando muitos já tinham escapado para as mãos de leitores ávidos. Em 1559, a Sagrada Congregação da Inquisição Romana publicara o primeiro Índice dos livros proibidos - uma lista de livros que a Igreja considerava perigosos para a fé e a moral dos católicos. O Index, que incluía livros censurados antes da publicação, bem como livros imorais já publicados, jamais pretendeu ser um catálogo completo de todos os livros banidos pela Igreja. Porém, quando foi abandonado, em junho de 1966, continha, entre centenas de obras teológicas, outras tantas obras de autores seculares, de Voltaire e Diderot a Colette e Graham Greene. Comstock certamente acharia essa lista muito útil.

'A arte não está acima da moral. A moral vem primeiro', escreveu Comstock. 'A lei vem em seguida, como defensora da moral pública. A arte só entra em conflito com a lei quando sua tendência é obscena, lasciva ou indecente'. Isso levou o New York World  a perguntar num editorial : 'Foi realmente determinado que não há nada de saudável e proveitoso na arte a não ser que ela esteja vestida?'. A definição de Comstock de arte imoral, como a de todos os censores, foge da dificuldade. Comstock morreu em 1915. Dois anos depois, o ensaísta americano H. L. Mencken definiu a cruzada de Comstock como 'o novo puritanismo', não ascético, mas militante. Seu objetivo não é elevar santos, mas derrubar pecadores'.

Manguel continua suas análises, rumando para o oriente, afirmando antes que a censura não era apenas uma exclusividade do mundo ocidental. Termino por fazer um insistente apelo para a leitura do belo livro de Manguel, do qual deixo a sua resenha. Lembrando ainda, que recentemente, o livro de Jeferson Tenório, O avesso da pele, foi motivo de censura de diversos governadores brasileiros, entre eles, o do Paraná. Permaneceu sob análise, alegou o governador do Paraná.

Segue a resenha de Uma história da leitura.


Adendo. 1 de julho 2025. Do livro: História universal da destruição de livros. Das tábuas sumérias à guerra do Iraque, de Fernando Báez. Um inquisidor em Nova York: "Em 21 de setembro de 1915 morreu Anthony Comstock, aos 71 anos. Durante quarenta longos anos foi o inquisidor religioso mais temido do mundo e ainda hoje seu nome está relacionado com a destruição do maior número de livros dos Estados Unidos.

Comstock nasceu em 7 de março de 1844, em Nova Canaã, Connecticut. Lutou na Guerra Civil e no exército da União, e algo do que viu ou não viu determinou suas ações posteriores. Instalou-se em Nova York e, em 1872, trabalhou na Young Men's Christian Association. Lia a Bíblia com um fervor que assustou todos seus amigos. No seu entender, o demônio se apoderara de muitos escritores e sua missão na Terra era por fim a essa atrocidade. Nada o deteve nessa inexplicável cruzada moral.

Em 1873 fundou a Sociedade de Nova York para a Eliminação do Vício e, como se não bastasse, conseguiu a aprovação no Congresso da chamada Lei Comstock, que impôs a proibição de transportar pelo correio qualquer texto considerado imoral. Revisou de graça milhares de livros e revistas e com uma única folheada podia encontrar as verdadeiras agressões aos bons costumes.

Cerca de 120 toneladas de livros, revistas e folhetos foram queimados publicamente. Sabe-se que odiava a obra de George Bernard Shaw" (Páginas 217-218).