sexta-feira, 13 de junho de 2025

Uma história da Leitura. Alberto Manguel.

Ao ler O Diário de H. L. Mencken me deparei com uma nota referente a Anthony Comstock, numa de suas diatribes com o escritor Garland. A nota diz o seguinte: "Anthony Comstock (1844-1915) era secretário da Sociedade para a supressão do Vício e empreendia uma guerra incessante contra todos os livros que, em seu juízo, eram obscenos ou pudessem causar um rubor de vergonha nas bochechas de alguma jovem virgem e pura" (página 121). Isso me fez lembrar do belo livro Uma história da leitura, de Alberto Manguel, que eu lera no ano de 2004.

Uma história da leitura. Alberto Manguel. Companhia das Letras. Tradução: Pedro Maia Soares.

Do livro, um capítulo em particular me chamou muito a atenção. Ele tem por título - Leituras proibidas, onde este secretário é citado e largamente analisado. Quis retomar esta leitura quando governadores, para ser bastante condescendente com eles, não muito afeitos com livros, submeteram o belo livro O avesso da pele, de Jeferson Tenório, sob censura. Entre esses governadores, lamentavelmente, figurava o governador do Paraná. Outras leituras, no entanto, me detiveram. Agora o retomei.

Alberto Manguel, como filho de pai diplomata, é um cidadão do mundo. Nasceu em Buenos Aires no ano de 1948 e atualmente é cidadão canadense. Um de seus feitos foi ter conhecido Jorge Luís Borges numa livraria e, para ele passou a fazer leituras, quando o escritor já estava acometido por um cegueira quase que total. Certamente este fato o influenciou bastante para dedicar uma vida toda ao mundo das letras.

O livro, de extrema erudição, está estruturado em quatro partes: A última página; atos de leitura; os poderes do leitor e páginas de guarda. De - A última página - destaco a primeira afirmação - a de que ler é como respirar e a segunda - a eterna relação de adversidade entre a leitura e as ditaduras. Vejamos: "Os regimes totalitários exigem que não pensemos, e portanto proíbem, ameaçam e censuram [...] exigem que nos tornemos estúpidos e que aceitemos nossa degradação docilmente" (página 36).

Da segunda parte - Dos atos de leitura - destaco os subtítulos: Leitura das sombras; os leitores silenciosos; o livro da memória; o aprendizado da leitura; a primeira página ausente; leitura de imagens; a leitura ouvida; a forma do livro; leitura na intimidade e metáforas da leitura. O destaque vai para para a mensagem para os leitores silenciosos. Para as possibilidades de diferentes interpretações, para o surgimento de heresias e para toda uma história do livro, até ele adquirir a sua forma atual e a sua comercialização.

Já os subtítulos da terceira parte - Os poderes do leitor são: Primórdios; ordenadores do universo; leitura do futuro; o leitor simbólico; leitura intramuros; roubo de livros; o autor como leitor; o tradutor como leitor; leituras proibidas e o louco por livros. O meu grande destaque vai para dois subtítulos: O já assinalado - leituras proibidas e o roubo de livros. Para o - leituras proibidas - darei um destaque especial, num post em separado e sobre o roubo de livros devo dizer e concordar que para os seus ladrões poderia ser aplicada a pena da excomunhão. 

No - páginas de guarda - um novo livro de Uma história da leitura se abre como uma possibilidade. Livros que não escrevi, livros que não li.

Gostei da apresentação do livro que consta da contracapa: "Leitor voraz e ciumento, um grão-vizir da Pérsia carregava sua biblioteca quando viajava, acomodando-a em quatrocentos camelos treinados para andar em ordem alfabética. Em 1536, a lista de preços das prostitutas de Veneza anunciava uma profissional que se dizia amante da poesia e tinha sempre à mão algum livrete de Petrarca, Virgílio ou Homero. Na segunda metade do século XIX, em Cuba, os operários de algumas fábricas de charuto pagavam um lector, um leitor que se sentava junto às bancadas de trabalho e lia alto enquanto eles manuseavam o fumo. Lia, por exemplo, romances didáticos, compêndios históricos e manuais de economia política. A ditadura de Pinochet baniu o Dom Quixote, identificando ali apelos à liberdade individual e ataques à autoridade instituída.

A leitura é a mais civilizada das paixões. Mesmo quando registra atos de barbarismo, sua história é uma celebração da alegria e da liberdade".

Tomo ainda as orelhas da capa e contracapa: "De certa forma, todo livro escolhe seu leitor, mas Uma história da leitura parece ter um modo muito particular de exercer essa escolha: talvez com uma ou outra exceção, todos os que se dispõem a lê-lo integram a comunidade das pessoas que gostam de ler. Por isso, cada uma delas encontra aqui certos fragmentos de sua própria experiência: o encantamento com o aprendizado da leitura, a leitura compulsiva de tudo (livrinhos de escola, cartazes de rua, rótulos de remédio), o prazer solitário de ser amigo do peito de Sinbad, o Marujo, de acompanhar a multiplicação dos significados de uma palavra, de descobrir o final da história. Como um volume da biblioteca impossível de Borges, o livro de Alberto Manguel contém um pouco da autobiografia de cada um de seus leitores.

E, sem dúvida, também do autor, cuja erudição ao falar de séculos e séculos de história é primeiro filtrada por uma vivência pessoal intensa. A clareza de texto de Alberto Manguel parece refletir uma generosidade, uma vontade de compartilhar informações, perspectivas e modos de sentir o ato de ler.

'Ler para viver', Flaubert escreveu, ou, na visão de Kafka, 'ler para fazer perguntas'. Das plaquinhas de argila da Suméria aos nossos cibertextos, sabemos que a história registra não só uma infinidade de motivações para a leitura, mas também para a sua proibição, como se fosse da natureza da palavra escrita penetrar a intimidade do leitor e fazê-lo agir, fazê-lo mover-se para lugares que só ele é capaz de escolher. O ato de ler pressupõe e, simultaneamente, cria uma liberdade.

Alberto Manguel é primeiro um leitor, e, nesta condição, se escolheu narrar as conformações da leitura ao longo do tempo, é porque está ciente de quantos tentáculos uma boa história pode ter".

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Educação como prática da liberdade. Uma apresentação para o ciclo de leituras.

Num certo dia, naquelas mensagens de lembranças trazidas pelo facebook, apareceu uma fala que eu fiz, contextualizando o primeiro grande livro de Paulo Freire - Educação como prática da liberdade. Revi a fala e deixei por isso mesmo. Alguns dias depois, a resgatei para deixá-la num espaço para que possa ser acessada mais facilmente. Mas antes de apresentá-la, quero deixar aqui a contextualização dessa fala.

Educação como prática da liberdade. Paulo Freire. Paz e Terra.

Duas datas relativas a Paulo Freire - o cinquentenário do lançamento de Pedagogia do oprimido (1968) e o centenário de seu nascimento (Recife 19 de setembro 1921) mereceram uma especial atenção nossa. Seguramente seriam datas a serem comemoradas. E resolvemos fazer isso. Quem e como isso foi feito? Na época, havia na APP-Sindicato, um grupo de oposição, capitaneado pelo Núcleo Sindical Curitiba Norte, mas com capilaridade em todo o Paraná, denominado APP-Independente. Desse Núcleo partiu a ideia da realização de ciclos de leitura denominados - Ciclos de Leituras e Estudos do Pensamento de Paulo Freire. Logo, a ideia foi abraçada pelos DEPLAE e NESEF, órgãos da UFPR e pelo Instituto Federal do Paraná, campus de Curitiba. Estes ciclos tiveram grande abrangência. No Brasil inteiro se formaram círculos de leitura, reunidos em cinco encontros, somados a um encontro final de celebração com os participantes possíveis de se reunirem.

Foi um dos trabalhos mais promissores dos quais eu participei ao longo de toda a minha vida. A fala, aqui resgatada, é datada de 21 de abril de 2021. Realizávamos o Terceiro Ciclo, com foco no Educação como prática da liberdade. Desse ciclo participaram mais de 150 grupos. Em outro desses ciclos, o foco se voltou, por óbvio, à Pedagogia do oprimido e ao seu magnífico - Pedagogia da autonomia. Em outros, vários livros, com os grupos escolhendo uma determinada obra. Foi um trabalho maravilhoso.

No presente vídeo, numa parceria com o professor Luís Paixão, apresentamos uma contextualização do meu primeiro contato com a obra de Paulo Freire, que é também o primeiro grande trabalho do Paulo - Educação como prática da liberdade. Com muito orgulho, devo ainda dizer, que conheci pessoalmente o grande educador, encontrando-o em vários e significativos momentos de minha vida. Deixo com vocês esta fala, datada do dia 26 de abril de 2021.

https://www.youtube.com/watch?v=S3SEEeKSWbo

Deixo ainda um post de uma das atividades promovidas pelo Ciclo, realizado na UFPR, uma peça de teatro denominada - Paulo Freire - o andarilho da utopia. 

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/09/paulo-freire-o-andarilho-da-utopia.html


quinta-feira, 5 de junho de 2025

O Diário de H. L. Mencken. Edição de Charles A. Fecher.

Na leitura de Babbitt encontrei uma referência a H. L. Mencken  Nela Babbitt encontra-se sozinho em sua residência, algo a que não estava acostumado. Eis a referência: "Estava desinquieto. Sentiu vagamente a necessidade de ler alguma coisa mais divertida que a seção cômica do jornal. Subiu ao quarto de Verona (filha), sentou-se no virginal leito azul e branco trauteando e grunhindo no tom de um cidadão sólido enquanto examinava os livros da filha: Rescue, de Conrad, um volume que trazia o título singular de Figuras de Terra, contendo poesias (extravagantes, disse Babbitt consigo) de Vachel Lindsay, e ensaios de H. L. Mencken - ensaios sumamente inconvenientes, que metiam a ridículo a Igreja e todas as coisas decentes. Nenhum dos livros lhe agradou". Página 308.


O Diário de H. L. Mencken. Edição de Charles A. Flecher. Tradução Bento Lima.

De Mencken (1880-1956) eu já tinha lido O livro dos insultos e como tenho em minha biblioteca outro livro seu - O Diário de H. L. Mencken, me dei à curiosidade de conhecer algo mais e encontrar as inconveniências e ridicularizações que C. S. Lewis, ironicamente atribuíra ao autor. Devo ter comprado o livro numa grande liquidação e procurei lê-lo quando da leitura de O livro dos insultos, mas não me atraiu tanta atenção. Agora o retomei e tomei fôlego.

Verifiquei a sua estrutura. Um diário. As datas limítrofes eram os anos de 1930 a 1946. Já sabia da fama do escritor e como o período retratado é de grande interesse, mergulhei na leitura. Devo confessar que ela não correspondeu a toda a minha expectativa. Sabia que ele era ferrenho adversário de Roosevelt e da política do New Deal e esperava que ele analisasse criticamente esses anos pós crise de 1929 e os anos da Segunda Guerra Mundial. O livro tem peculiaridades que precisam ser sabidas. Na capa, além do título, temos a anotação de que o livro foi editado por Charles A. Flecher. Será ele também o autor de um esclarecedor prefácio. Depois que ele apresenta o autor e sua obra ele assim se refere aos diários:

"Finalmente havia o diário. Quando o começou em 1930, manteve-o com regularidade, mas depois da morte de Sara (a esposa), por vários anos, tocava-o raramente e, mesmo quando o retomou, o fez de modo intermitente. Foi no início dos anos 40 que voltou a escrever nele com regularidade e de modo sistemático. Em 31 de dezembro de 1943, assinalou que apenas os registros daquele ano superavam 65 mil palavras, 'o equivalente a um livro de bom tamanho'. É claro que, também, o diário - quase sempre no tom direto e sem-cerimônia, que o caracterizava - tratava de pessoas que ainda estavam vivas e, mais uma vez, preocupou-se em não ferir ninguém. Ordenou que fosse lacrado por 25 anos depois de seu falecimento". Foi quando a edição veio a público.

Como um notável homem de imprensa, com um desgosto profundo assistiu a superação dos jornais pelo rádio, instrumento que, segundo ele, era dirigido para retardados mentais. Nos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial, mostrou-se implacável contra a política do New Deal e contra a entrada dos Estados Unidos na Guerra. Vejamos uma anotação sua, datada de 2 de novembro de 1944: "... Contudo, de modo geral, dificilmente sou afetado pelo enorme esforço  de salvar a humanidade e de arruinar os Estados Unidos". Ele era absolutamente conservador e considerava como o melhor governo a sua inexistência. Era descendente de alemães e considerava um erro, o fato de o seu avô ter migrado para os Estados Unidos.

O livro é longo, são 574 páginas. Creio que a metade é dedicada a queixas sobre estados de saúde, quando não os seus, os de seus amigos. Quase outro tanto é dedicado a reuniões de trabalho de editores e jantares com os homens do mundo editorial, onde era uma pessoa de enorme influência. A ironia crítica está onipresente em suas anotações, em que a mediocridade da escrita é a anotação mais constante. Todos os grandes escritores do período fazem parte de seu diário, entre eles, com grande destaque, C.S. Lewis, de quem era grande amigo.

Vou transcrever duas passagens do ano de 1945, para ver um pouco da tonalidade da obra. A primeira é a sua visão dos Estados Unidos como a Pátria das liberdades: "Nestes dias que correm, até meu vocabulário é proibido. Não podia nem sequer mencionar Roosevelt, Churchill nem qualquer outro embusteiro sem ter de enfrentar um ataque violento, marcado por golpes baixos. A ideia tão difundida de que a liberdade de discurso prevalece nos Estados Unidos sempre me fez gargalhar" (página 449).  Na outra ele descreve o fim da guerra: 

"Na noite de ontem (ele escreve no dia 15 de agosto de 1945), quando se anunciou o fim da guerra, estava em meu escritório, trabalhando em minhas memórias nos dias de revista. As primeiras notícias do fato chegaram através dos sinos das igrejas. Até as freiras da Casa do Bom Pastor tocaram seu sino, embora apenas brevemente. Era 7:05 da noite. O barulho continuou intermitente por duas horas, com os debiloides andando em seus carros e tocando suas buzinas. às 8h50 fui até a esquina das ruas Baltimore e Gilmor (Ele morou a vida toda na cidade de Baltimore) para colocar algumas cartas na caixa do correio. Algumas dúzias de migrantes do campo, sulistas e gentalhas do gênero, estavam reunidos em grupos de esfarrapados, mas não faziam barulho...". Ele era acusado de nazista e de racista, fato negado pelo editor.

Não podia deixar de mencionar uma frase sobre Nietzsche e uma opinião sobre Freud. Como a de Freud é bem curtinha, começo por ela: "Adolf Meyer, diretor do Instituto Phipps, falou sobre livros de sexo em sua biblioteca com grande desdém. Guardava-os numa prateleira junto com livros a respeito de Freud e outras charlatanices do gênero" (página 154). A anotação sobre Nietzsche data de 15 de outubro de 1944. "Hoje completa-se o centenário de nascimento de Friedrich Wilhelm Nietzsche. Caso seja lembrado em algum lugar da América será porque era um sujeito nocivo e inventor de todas as diabruras de Hitler. Não consigo ver muita esperança para este grande país cristão. Por toda minha vida, assisto sua sistemática decadência e, ultimamente, o ritmo acelerou-se com rapidez" (página 422).Vejamos ainda as orelhas do livro:

..."O diário de H. L. Mencken, por expresso desejo seu, foi mantido em sigilo nos cofres da Biblioteca de Enoch Pratt de Baltimore, durante vinte e cinco anos depois de sua morte. O diário cobre os anos de 1930 a 1948 e proporciona um retrato vivo, autêntico e, às vezes, até chocante do próprio Mencken, de seu mundo, de seus amigos e antagonistas, dentre os quais aparecem personagens como Theodore Dreiser, F. Scott Fitzgerald, Sinclair Lewis, William Faulkner e até Franklin D. Roosevelt, por quem Mencken nutria um ódio especial que resultou em espetaculares e celebrados atos de ataques injuriosos.

Charles A. Flecher, estudioso de Mencken, trabalhou o manuscrito datilografado com mais de duas mil páginas, que agora se publicam, e fez uma generosa seleção de registros cuidadosamente escolhidos para que se preservasse toda a amplitude, o colorido e o impacto do diário. Aqui, em toda sua plenitude. Mencken surge como um observador ímpar e como perturbador da sociedade americana. Aparece também como ser humano com seus impulsos contraditórios: o cético preso a pequenas superstições, o destemido guerreiro que era um obcecado hipocondríaco, o marido apaixonado e o amigo generoso que, infelizmente, era um intolerante".

E, como foi Babbitt que me fez retomar o livro, deixo aqui a resenha.


E também o seu livro O livro dos insultos




sexta-feira, 30 de maio de 2025

Geografia da fome. Josué de Castro.

Creio que este livro - Geografia da fome -, de Josué de Castro, foi um dos livros que eu mais ouvia falar ao final dos anos 1960 e ao longo de toda a década de 1970. Era o tempo da minha conclusão da Faculdade de Filosofia em Viamão e o início de minha atividade profissional em Umuarama. Mas não o li na época. O adquiri num sebo, ao longo dos anos 2000, mas somente agora é que eu  fui lê-lo. Deveria tê-lo feito na época de sua escrita.

Geografia da fome. Josué de Castro. 1908 (Recife) 1973 (Paris).

Mas quando ele foi escrito? A sua primeira versão é do ano de 1946. No entanto, a versão hoje corrente e definitiva é o da 9ª edição, do ano de 1960. O próprio autor o conta no Prefácio desta edição. Vejamos a sua fala: "Este livro foi publicado pela primeira vez em 1946. Nele tentou o autor esboçar um retrato do Brasil de cerca de quinze anos atrás. Do Brasil que era então um país tipicamente subdesenvolvido, com sua característica economia de tipo colonial, na exclusiva dependência de uns poucos produtos primários de exportação, entre os quais se destacava o café. Ao retratarmos a fome no Brasil estávamos a evidenciar o seu subdesenvolvimento econômico, porque fome e subdesenvolvimento são uma mesma coisa. Foi esta conjuntura econômico-social com todas as suas trágicas consequências que inspirou este ensaio" (página 47). Anteriormente, mas no mesmo prefácio, ele falava de seus objetivos:

"Aparecendo na aurora dessa nova era social, onde a tenebrosa noite do fascismo ainda projeta as suas sombras, este livro pretende ser um documentário científico desta tragédia biológica, na qual inúmeros grupos humanos morreram e continuam morrendo de fome, ao finalizar-se esta escabrosa era do homem econômico.

Para se compreender bem e se possa perdoar o uso que faz o autor, em certas passagens do seu livro, de tintas um tanto negras (Opa! naquele tempo podia), é bom que o leitor se lembre de que esta obra, documentário de uma era de calamidade, foi pensada e escrita sob a influência psicológica da pesada atmosfera que o mundo vem respirando nos últimos vinte anos. Atmosfera abafada pela fumaceira das bombas e dos canhões, pela pressão das censuras políticas, pelos gritos de terror e de revolta dos povos oprimidos e pelos gemidos dos vencidos e aniquilados pela fome" (página 39).

O que mais me chamou a atenção, já logo no início da leitura foi o entrelaçamento da fome e das carências alimentares sobre a constituição fisiológica do ser humano. Os terríveis efeitos da subnutrição e as deformações fisiológicas. Aí fui ver que não era um sociólogo quem escrevia o livro. Era sim, um médico, com o seu olhar científico. O livro pode ser visto assim como um mapa, ou documentário dos alimentos existentes nas diferentes regiões brasileiras, bem como o seu oposto, o das carências. As principais doenças da fome/subnutrição são: - beribéri, pelagra, escorbuto, xeroftalmia,, raquitismo, osteomalácia, bócios endêmicos, anemias, entre outras. O livro contem muita pesquisa, pesquisa em tempos pioneiros, quando a bibliografia era praticamente inexistente. São os tempos da FAO, da qual ele integrou o Conselho Mundial, vindo a morar em Paris.

Mas vamos falar um pouco da estrutura do livro. Começo pelas dedicatórias: A Rachel de Queiroz e José Américo de Almeida, romancistas da fome no Brasil e - A memória de Euclides da Cunha e Rodolfo Teófilo, sociólogos da fome no Brasil. Aí seguem três prefácios, entre eles o do autor. Segue então o cerne do livro com sete capítulos e os apêndices e entre eles uma breve biografia e uma valiosa bibliografia. Vamos aos capítulos.

I. Introdução. Nela ele apresenta um panorama da fome pelo mundo, as vinculações entre a fome e a subnutrição e as cinco diferentes regiões, que se constituem  nos próximos capítulos.

II. Área amazônica. Os alimentos da mandioca (básica), da economia de coleta, a pimenta e a juta. Depois fala das contribuições indígenas para esta alimentação e a dos nordestinos, que para lá migraram no ciclo da borracha (1870-1910). A maior parte do capítulo é, no entanto, dedicada às deficiências alimentares e as suas consequências, analisando ainda as experiências norte-americanas, da Fordlândia e de Belterra.

III. Área do Nordeste açucareiro. Quatro séculos de devastação da floresta tropical, transformada em campos abertos para o cultivo da cana-de-açúcar. Terras férteis (massapê) e de grande variedade de frutas. A desinteligência da monocultura e dos rápidos desgastes da terra. Os holandeses e a obrigatoriedade do plantio da mandioca. E como no capítulo anterior, aqui são apresentadas as contribuições dos indígenas e dos escravizados para a alimentação. E, também, mais uma vez, as principais carências alimentares e as suas consequências.

IV. Área do sertão do Nordeste. Este é o mais longo dos capítulos. Apresenta as suas terras como sendo agrofágicas, fala das misérias das epidemias da seca e do milho e a sua miséria alimentar. Divide a região em agreste, caatinga e o alto sertão, da pouca diversidade de plantas e o domínio das cactáceas. Descreve os períodos de seca e as migrações dos retirantes. Analisa as implicações entre o fanatismo religioso e o banditismo, dos jagunços e ao mesmo tempo seus traços de bom caráter. Grande ênfase é dada à pecuária, - bovinos, caprinos e muares. Carne e leite e a riqueza alimentar.

V. As áreas de subnutrição: Centro e Sul. O autor considera esta região com deficiências mais discretas, caso de subnutrição, mais do que fome. Da região centro-oeste fala da cultura do milho, da criação de porcos e alimentos típicos, especialmente os de Minas Gerais. Fala também dos efeitos de levar a capital do país para Brasília. Por sul, ele entende tudo o que está abaixo do Rio de Janeiro. Fala dos efeitos da imigração e, de maneira especial, dos japoneses e sua dedicação ao cultivo de hortaliças. Mas a região convive com subnutrição crônica. O espaço dedicado é bem menor do que ao das outras regiões.

VI. Estudo do conjunto brasileiro. É a parte mais política do livro. Começa pela análise do espírito bandeirante e o desejo do enriquecimento fácil, do imperativo do "fique rico depressa". Fala da drenagem dos recursos públicos para as regiões sul e sudeste. Fala do subdesenvolvimento e crítica as políticas liberais que desconsideram a necessidade e o valor do planejamento econômico. O Estado é visto como indutor do desenvolvimento. Critica a direção do pêndulo em favor da política industrial e a pouca atenção à questão agrária e defende a urgência da reforma agrária. Não seria possível atingir o desenvolvimento com a permanência de uma agricultura semifeudal.

VII. Glossário. Um pequeno dicionário de hábitos que criaram os principais pratos regionais. Maravilhoso. O livro é concluído com um apêndice à oitava edição, com dados biográficos do autor e uma bibliografia, que nos fornece um belo quadro da literatura existente na época sobre este tão importante tema.

Da biografia tomo os dados finais para este post. Josué de Castro nasceu no Recife no ano de 1908 e morreu em Paris, no ano de 1973. Por que em Paris? Lá ele cumpria a sua vida de exilado político, como um condenado pelo regime civil militar instaurado no ano de 1964. Combater a fome era considerado um crime, coisa dos perigosos comunistas. Explicava as causas da fome. Sobre a sua importância deixo a parte final da biografia, na qual é citada uma reportagem do Le Figaro: "Cheio de flama e de paixão pela grande causa a que ele servia, ajudando, por suas fórmulas marcantes, a tocar de perto as realidades do subdesenvolvimento, a tomar consciência do círculo vicioso no qual se encerrou o mundo, exerceu ele uma influência profunda e duradoura".

Das orelhas de capa e contracapa tomo dois depoimentos. Da capa:"(...) um dos estudiosos mais lúcidos dos problemas do Terceiro Mundo". Rádio do Vaticano. E da contracapa: "Se foi o caloroso advogado dos pobres, Castro jamais pleiteou a piedade ou o assistencialismo. Mas a justiça é uma outra ordem no mundo. Morreu poucos dias após os acontecimentos do Chile e, sem dúvida, mais consciente do que nunca de tudo que restava por fazer. Mas porque viveu entre nós, a ignorância já não é uma desculpa. Daqui para frente nós sabemos. Como um geógrafo implacável, Josué de Castro traçou, sob nossos olhos, o mapa da fome. E o mínimo que podemos dizer dessa geografia é que ela não nos honra nem um pouco". Rémy Montour, Panorame. Simplesmente - um livro necessário.

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Pró e contra. MAO. organização do texto: M. Bodino e C. Pastengo.

A China sempre foi vivo tema de meus interesses. Isso me levou a compra de livros que nem sempre foram lidos, em função de outras prioridades, especialmente a de estar em sala de aula. Um desses livros é o da coleção Pró e contra - O julgamento da história - Mao - . Edições Melhoramentos. A primeira edição do livro é de 1971 e a que tenho em mãos é de 1975. Essas datas trazem os limites do livro. Ele é valioso, na análise da Revolução chinesa, seus antecedentes e a sua consolidação. Como a centralidade desses acontecimentos gira em torno da pessoa de Mao Tse-tung, o livro, em parte é apresentado como uma biografia sua. Mao nasceu no ano de 1893 e morreu em 1976.

Pró e contra. Mao. Texto organizado por M. Bodino e C. Pastengo. Tradução: Raul de Polillo. 1975.

Digo em parte, porque ela ocupa a parte superior das páginas, enquanto que as inferiores são dedicadas à análise dos fatos históricos. O pai de Mao era militar. Sempre conseguia algumas economias de seu soldo, economias essas que lhe permitiram a condição de ser um pequeno proprietário de terras. Era extremamente autoritário. Na formação de Mao, o grande destaque vai para o seu gosto por leituras e a reflexão sobre elas. Muito cedo entrou em contato com a literatura marxista, tornando-se, inclusive, tradutor delas. Politicamente a China era um império, dominado pelas potências ocidentais, em particular pela Inglaterra. Movimentos rebeldes eram constantes.

A Revolução russa impacta profundamente a vida do país. Logo será criado o Partido Comunista Chinês, vinculado ao P.C. Soviético, o KOMINTERN, da Terceira Internacional (1919). Mao, desde logo, será um de seus militantes. Desde o início ele também será um voz dissonante. Em vez de basear a ação política na organização do proletariado, ele pretende centrar a sua organização nos pequenos camponeses, um vez que o desenvolvimento industrial ainda era muito pequeno. Ao longo dos anos 1920 surgem duas grandes forças políticas, que levarão o país a uma longa guerra civil, que começa em 1927 e termina apenas no ano de 1949. Duas grandes forças disputam o poder: O Partido Nacionalista Chinês, o Kuomintang, liderado por Chiang Kai-shek e o Partido Comunista Chinês, dentro do qual, com o tempo se afirma a liderança de Mao. A Guerra Civil se desenvolve ao longo de todos os anos de 1930. Ela é interrompida ao longo da Segunda Guerra, quando o Japão se torna o seu inimigo comum. Ao final da guerra a luta é retomada. Mao, com o seu exército de camponeses e as suas táticas de guerrilha, sai vencedor e em 1949 é proclamada a República Popular da China.

Como as forças dos derrotados são exprimidas para o mar, Chiang Kai-shek, se refugia na ilha de Formosa (Taiwan), e em 1950, com a ajuda dos Estados Unidos funda a China Nacionalista. Ela se transforma num grande problema, pois, as potências ocidentais, apenas a ela reconhecem e negociam. Tentam isolar a República Popular, emergente do longo processo revolucionário.

Isolado e merecedor de poucas atenções de Stalin, Mao praticamente está sozinho na consolidação da Revolução. Com alguma ajuda russa ele se dedica ao empreendimento. A primeira questão a ser enfrentada será a do latifúndio, poupando as pequenas propriedades. Além da expropriação ofereceu meios de assistência e já em 1951 a reforma agrária estava consolidada. Antes de começar as demais reformas houve a Guerra da Coreia (1950-1953), gastando ali enormes energias. Conta-se que Mao teria preferido empregar estas energias contra Chiang Kai-shek. Além disso enfrentou duramente os contra-revolucionários. Como a persuasão não foi suficiente, cerca de oitocentos mil proprietários foram executados. Em 1952 é lançado o Primeiro Plano Quinquenal. Inicia a politização das massas.

Em 1954 é aprovada a Nova Constituição e é feito um grande incremento à produção industrial, agrícola e comercial. Uma abertura política interna e externa é buscada. Em 1955, os países em desenvolvimento procuram um alinhamento, em Bandung. A China procura ser protagonista no cenário mundial. Enquanto isso Estados Unidos e Rússia procuram a Coexistência Pacífica. Internamente, em função do desviacionismo, uma política de retificação é ativada. Novas repressões.

Em 1959 ocorrem crises, especialmente em função de crises climáticas.  Mao se afasta da presidência, mas não do Partido. São feitas readequações. Planos anuais. Produção de alimentos ganham prioridade sobre a indústria pesada. Em 1961 a situação se estabiliza. Mas as divergências com a União Soviética aumentam. Em 1965 retoma o poder e já no ano seguinte inicia a famosa "revolução cultural", com a qual procura moldar o "homem novo", com a destruição das "superestruturas burguesa". Este novo homem será despido do egoísmo e estará totalmente voltado ao bem-comum. Isso com modificações nos sistemas de ensino, da literatura, da arte, do teatro e a modificação dos hábitos cotidianos. Os carcomas do país, ou seja, os burgueses seriam destruídos, numa guerra sem quarteis. Os nascidos depois de 1949 foram arregimentados como os protagonistas do processo.

Já no início dos anos 1970 a Revolução está consolidada. A República Popular da China é reconhecida pelos Estados Unidos e o país  integra a Organização das Nações Unidas, ocupando inclusive uma das cadeiras permanentes no Conselho de Segurança. Estavam lançadas as bases para a grande potência mundial. Qual o seu tamanho e dimensão, o futuro, em breve, o dirá. A data inaugural está aí. O ano de 1949 e o seu líder, Mao Tse-tung, também. Em breve eu atualizo. O depois dos anos 1970.

Este post foi escrito no dia 14.05.2025. Momento de grande aproximação do Brasil com a China, após visita do presidente Lula a este país.

Como o livro  A condição humana de André Malraux também fala da Guerra Civil chinesa que levou ao 1949, deixo o link da resenha.








  

   

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Bandeirantes e pioneiros. Paralelo entre duas culturas. Vianna Moog.

Começo esta resenha de - Bandeirantes e Pioneiros - paralelo entre duas culturas -, de Vianna Moog, contando a forma pela qual adquiri o livro, provavelmente em meados dos anos 1970. Após me formar em filosofia, na Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição, da cidade de Viamão, no ano de 1968 e, já no ano seguinte, eu me estabelecia na cidade de Umuarama (PR), como professor. Enquanto meus pais estavam vivos, uma ou até duas vezes por ano, eu ia visitá-los. E eu ia de ônibus, passando por Curitiba. Assim Curitiba - Porto Alegre, via serra, estava em meu roteiro.

Bandeirantes e pioneiros. Paralelo entre duas culturas. Vianna Moog. Civilização brasileira.

Bem, numa dessas viagens, havia uma parada para almoço, na cidade de Vacaria. No restaurante havia uma banca de jornais e revistas e também alguns livros. Entre os livros, estava o próprio: Bandeirantes e Pioneiros. O dinheiro era escasso, mas não tive dúvidas em adquiri-lo. Nunca fui pão-duro para a compra de livros. Coisas daquele tempo. Creio que nos dias de hoje não encontraria o livro tão à mão. O livro teve a sua primeira edição no ano de 1954 e, o exemplar que eu adquiri foi o da 9ª edição, do ano de 1969. Vianna Moog é gaúcho de São Leopoldo, nascido no ano de 1906. Veio a falecer em 1988, na cidade do Rio de Janeiro. Integrou a Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira de número 4.

A grandeza do livro começa pelo seu título e sub-título. Nada mais claro e preciso. Creio que cabe perfeitamente no imaginário de qualquer pessoa a diferença entre um bandeirante e um pioneiro, a de um explorador, de um colonizador. Essa diferença chama o sub-título: paralelo entre duas culturas. As duas culturas são as de dois países: Brasil e Estados Unidos. O livro tem um curto prefácio do autor. Nele enuncia o tema ou a grande razão de ser do livro: Como pode haver tanta diferença entre dois países, sendo os Estados Unidos, a grande potência e o Brasil sendo o que é. Quais seriam as razões para toda essa diferença. A resposta, ou as respostas estão ao longo das 361 páginas do livro

Ele está estruturado em seis capítulos, prefácio, epílogo e bibliografia. Dou os títulos dos capítulos: 1.Raça e geografia; 2. Ética e economia; 3. Conquista e colonização; 4. Imagem e símbolo; 5. Fé e símbolo; 6. Sinais dos tempos. Mais uma vez, observamos que conquista e colonização. Estas palavras também nos remetem ao título. A conquista é obra do bandeirante, da exploração predatória e a colonização é fruto do trabalho, do árduo trabalho do pioneiro. Concepções de vida totalmente diferentes. Mas há também outros fatores, bem visíveis, nos outros capítulos. Ainda no prefácio, o autor nos adverte sobre as polêmicas que o tema provoca. Mas ele diz topar o mexer nos marimbondos.

Dou em pequenos tópicos, alguns itens básicos sobre cada capítulo. Assim, no primeiro, veremos o racismo, a escravidão e a miscigenação nos USA e no Brasil, a questão da disposição das cadeias montanhosas nesses países e, também da mesma forma, os rios. Teriam esses fatores facilitado ou dificultado a ocupação do continente? São analisadas algumas experiências. O segundo capítulo, provavelmente o que mais bibliografia e estudos acumula, mostra o Brasil como um país católico e os USA como um país protestante. Protestantes calvinistas. Isso importa, pois eles tem uma visão muito particular sobre o trabalho. Trabalhar é a melhor forma de orar e engrandecer a Deus. Também são mostradas as implicações da visão calvinista com a teoria agostiniana da predestinação e desta, com a prosperidade. Há muitas referências a Max Weber.  A ética protestante e o espírito do capitalismo. Outra parte do capítulo é destinada à análise das riquezas de solo e subsolo dos dois países e suas influências, ou não, no desenvolvimento econômico.

Em conquista e colonização, o tema do terceiro capítulo, a abordagem passa pela análise dessas palavras e suas implicações. As influências religiosas e suas concepções sobre o trabalho são vistas pelos olhos de pioneiros e de bandeirantes, além do espírito prático e inventivo do pioneiro, contra o espírito aventureiro e o desejo de enriquecimento fácil e rápido do bandeirante.  Os desdobramentos dos temas desses três primeiros capítulos são o material para os outros três. No quarto capítulo são mostrados os fatores que marcaram a passagem do pioneiro para o ianque e à Guerra da Secessão. É mostrada ainda a figura de Lincoln e a sua ação na pacificação e na manutenção da unidade do país. Já do Brasil, vamos ver as primeiras experiências de colonização pela imigração no sul do país.

No quinto capítulo é observada a não permanência dos princípios pioneiros e fundadores e o seu rompimento com o plasmar da grande nação, quando no Brasil só se vislumbra pessimismo em seu futuro. A miscigenação piora as raças misturadas.  Dois personagens fantásticos são apresentados nessa visão. Babbit, de H.S. Lewis e José Dias., o personagem de Dom Casmurro, do grande Machado de Assis. Babbit representa o comerciante ianque, que se torna grande, já despido das virtudes do pioneiro. Enquanto isso, persiste em José Dias o desejo do enriquecimento fácil e sem trabalho penoso.

Em Sinais dos tempos, no sexto capítulo, mais dois personagens nos são apresentados. Lincoln pelos Estados Unidos e o Aleijadinho pelo lado brasileiro. Um belíssimo capítulo. Figuras míticas, muito veneradas. Da orelha da capa e contracapa do livro tomo mais algumas referências:

"Bandeirantes e Pioneiros, de Vianna Moog, é uma primeira tentativa séria de interpretação comparativa.

O segundo capítulo, intitulado Ética e economia, é dos que mais estimulam o debate. Nele se coloca, paralelamente, o desenvolvimento de dois tipos de capitalismo: a progressão geométrica norte-americana, no quadro do protestantismo, a progressão aritmética brasileira, no quadro do catolicismo. Trabalho de erudição e pesquisa, equivale a um verdadeiro ensaio que, sozinho, justificaria prolongada e frutífera polêmica.

Polêmico, aliás, é o livro todo. Vianna Moog suscita o diálogo com a crítica, já que admite - em seu prefácio - ter abordado 'um tema essencialmente dinâmico, com um número quase ilimitado de incógnitas, todas a variarem umas em função das outras'. um tema, em suma, que 'não é propriamente dos que comportam pronunciamentos definitivos ou julgamentos isentos de erros de observação, de emoção e de interpretação'".

Um livro que, embora a sua data de publicação seja de 1954, continua sendo muito atual e que explica muito das diferenças entre os dois países. As grandes interpretações de Brasil são bem tardias e uma visão positiva de nosso país ocorre apenas a partir de Gilberto Freyre, com Casa-Grande & Senzala, publicado em 1933.

Deixo ainda duas resenhas de livros abordados nas análises. Babbitt, o comerciante ianque.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/05/babbitt-harry-sinclair-lewis-1922-nobel.html

E também o A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/01/a-etica-protestante-e-o-espirito-do.html


terça-feira, 13 de maio de 2025

ESCRAVIDÃO. Laurentino Gomes. Os três volumes. Mais - O abolicionismo e Ser escravo no Brasil.

A finalidade deste post é agrupar as três resenhas dos livros de Laurentino Gomes sobre a escravidão no Brasil. Os três livros, sem favor, se constituem na grande pesquisa brasileira sobre tema. Um esforço inaudito e sob um olhar perspicaz  e de um posicionamento de indignação diante dos horrores praticados. Os seus livros certamente se integram no esforço de, no dizer de Joaquim Nabuco, nos levar também, não apenas à abolição, mas também à sua obra. A obra da escravidão.

O livro indicado por Antônio Cândido, como o grande livro de referência. Ser escravo no Brasil.

Deixo também a resenha do livro que o grande Antônio Cândido indica como o grande livro de referência sobre o tema, o livro de Kátia de Queirós Mattoso, nascida na Grécia e professora da Universidade Federal da Bahia, Ser escravo no Brasil. 

Reúno estes posts na data de treze de maio - 2025, com a intenção de facilitar o acesso. Com certeza, a escravidão brasileira teve as suas peculiaridades, sem deixar de ter, por um único momento que seja, a sua grande característica de perversidade moral. Deixo ainda a obra de Joaquim Nabuco, um pensador monarquista e liberal, que no meu entender foi a voz mais lúcida e propositiva desta página de nossa história. A sua grande obra foi O abolicionismo.

Então vamos lá. Ao primeiro volume. Escravidão - Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. 

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/03/escravidao-volume-1-laurentino-gomes.html

O segundo volume. Escravidão - Da corrida do ouro em Minas Gerais até a chegada da corte de dom João ao Brasil. 

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2021/10/escravidao-volume-ii-laurentino-gomes.html

O terceiro volume. Escravidão. Da Independência do Brasil à Lei Áurea.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/09/escravidao-volume-iii-da-independencia.html

O livro Ser escravo no Brasil. Kátia de Queirós Mattoso.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2013/11/ser-escravo-no-brasil-katia-de-queiros.html

E Joaquim Nabuco com o seu O abolicionismo. O livro foi escrito no calor da campanha abolicionista.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/06/o-abolicionismo-1883-joaquim-nabuco_29.html

Que estes posts possam estimular novas leituras. É a minha intenção.

quinta-feira, 8 de maio de 2025

LEÃO XIV. Robert Prevost. O primeiro papa Estadunidense.

A eleição de um novo papa me afeta profundamente. Mexe muito com as minhas memórias e com a minha formação. O tema não me é novo. Já passei pelas escolhas de João XXIII (outubro de 1958), Paulo VI (1963), João Paulo I (1978), João Paulo II (1978), Bento XVI (2005), Francisco (2013) e agora, em 2025, Leão XIV. Creio que a indicação mais distante é a que me traz a mais viva de todas as memórias e, também a que, seguramente, mais profundamente marcou a minha formação.

Leão XIV. Foto divulgação CNBB - Sul.

Era outubro de 1958. Eu me encontrava no seminário São João Maria Vianney, na cidade gaúcha, mais alemã do que gaúcha, de Bom Princípio. Tinha 12 anos e cursava o meu primeiro ano do ginásio. Sem entender de muita coisa, recebíamos as informações através dos padres do seminário. Chorei e rezei com toda a devoção possível. Do mesmo ano, alguns meses antes, ouvi distantes informações sobre Pelé e sobre a primeira conquista brasileira no futebol mundial. Era na Suécia.

Reconstituindo um pouco a história, nomino os papas que antecederam a João XXIII, para logo a seguir entrar nos feitos de João XXIII e também entender um dos fatores, se não o mais importante, que levou o cardeal Robert Prevost, à escolha do nome de Leão XIV. Então vamos lá. Leão XIII teve um longo pontificado de 25 anos (1878-1903). Foi sucedido por Pio X (1903-1914), Bento XV (1914-1922), Pio XI (1922-1939) e Pio XII (1939-1958). Então o escolhido foi João XXIII. Os Pios, talvez não tão pios assim, ou talvez pios demais, centravam suas preocupações mais com os aspectos doutrinários da Igreja. Foram papas que viveram os tormentosos cinquenta primeiros anos do século XX. Duas Guerras mundiais, entremeadas por crises econômicas e políticas, como a ascensão dos regimes autoritários do fascismo e do nazismo e do comunismo na União Soviética.

Leão XIII foi marcado pela publicação da Encíclica Rerum Novarum, a primeira manifestação da Igreja católica sobre os problemas surgidos com o mundo moderno, especialmente pelo surgimento da industrialização e os conflitos decorrentes no mundo do trabalho. Luta ou conciliação de classes. De que lado se posicionar. Me lembro bem, - foi uma das disciplinas que estudei, - agora já no seminário São José de Gravataí, onde terminei os meus anos de ginásio e onde fiz também o meu ensino médio. A disciplina - Doutrina Social Cristã, retornou depois no curso de filosofia, feito na Faculdade de Filosofia N.S. da Imaculada Conceição, em Viamão. 

Depois, já no exercício de professor, em Umuarama, retomei o tema em algumas aulas do ensino médio, numa disciplina chamada - estudos sociais. Guardo comigo, até hoje um livro, um livro monumental, que tomei como referências. - Cristianismo, sociedade e revolução, do padre Paul-Eugène Charbonneau. O livro é da Editora Herder. Charbonneau já examinava mais de perto as encíclicas posteriores como a Gaudium et Spes e a Populorum Progressio, ambas de Paulo VI, sem deixar de focar nos documentos originários.

Voltando às memórias. João XXIII foi Revolução Pura. Aggiornamento era a palavra de ordem. Atualizar a Igreja aos novos tempos, às grandes transformações do mundo moderno. Para não assumir sozinho tão grande responsabilidade, convocou os bispos e os reuniu em concílio, em assembleia, para deliberar, para modernizar, para aggiornar. Coisas simples, - uso de língua vernácula, missa de frente para os fieis, abertura para leigos, ecumenismo. As aberturas não pararam mais. Novas inovações foram feitas e continuarão a ser feitas. Visões abertas para a pluralidade do mundo e seus anseios.

Pelo Concílio Vaticano II o olhar também se voltou mais para a América Latina e para as suas peculiaridades, para os seus problemas. Em Puebla os bispos definiram sua opção preferencial pelos pobres, na França surgiram os padres operários. Também na América Latina surge e se afirma a Teologia da Libertação. Tudo isso me marcou profundamente em meus anos de formação inicial.

Uma palavra sobre Francisco. Apenas uma. Um atributo que lhe foi dado por Umberto Eco. "Francisco é um jesuíta paraguaio". O que isso quer dizer? Que o papa Francisco é um papa missioneiro. Quem conhece a fantástica experiência das Missões sabe da força dessa atribuição. Um papa missioneiro.

Vendo o cerimonial magnífico desses dias entre a morte de Francisco e a eleição de Leão XIV, me lembro de um dos últimos fatos de minha vida no seminário. Isso já ao fim da filosofia, em Viamão. Nos dizia o padre reitor, posteriormente também bispo e cardeal. -"Vocês pertencem a maior instituição do mundo e é ela que pensa por vocês". Tudo dentro da perfeita lógica da hierarquia, da hieros - archei. Da ordem ou do governo sagrado. Me familiarizei com uma linguagem mais leiga. Mas aos padres devo a minha formação. Luto pela preservação do humano. Só trago comigo agradecimentos.

Quanto a Leão XIV, assim como Francisco, o simples nome já é um indicativo de caminhos. Meu filho me apontou para um postagem de direita, referente ao tema, nas redes sociais. Ela dizia. "Duas coisas me preocupam. A TL e a proximidade com Francisco". Já para mim - afirmo bem alto. - É o que me anima, é a utopia que me faz andar, e andar em transcendência - de trans - scandere, de travessia em escalada. Em ascensão. Da leveza. Na preservação do humano e da humanidade, ao lado de Francisco, dos dois Franciscos, de Leão, dos dois Leões - dos abridores de caminhos.

E, uma pequena lembrança de sua primeira mensagem; "Permitam-me dar sequência àquela mesma bênção (De Francisco): Deus nos quer bem, Deus nos ama a todos. O mal não prevalecerá. Estamos todos nas mãos de Deus. Portanto, sem medo, unidos, mão na mão com Deus e entre nós, sigamos adiante. Somos discípulos de Cristo. Cristo nos precede"... "SEM Medo". "A todos".

terça-feira, 6 de maio de 2025

BABBITT. Harry Sinclair Lewis. 1922. Nobel de Literatura - 1930.

 A cultura dos Estados Unidos no divã. Isso é Babbitt, o romance de Harry Sinclair Lewis, datado do ano de 1922. Babbitt é o sobrenome do comerciante George Babbitt, da fictícia cidade de Zenith. Ele é do ramo imobiliário. H.S. Lewis foi o primeiro Nobel de Literatura das Américas, laureado no ano de 1930. É ele e a sua família que estão no divã da psicanálise. Hipocrisia, falsidade, mentiras e camuflagens, humor ácido e ironia são os seus grandes ingredientes. Creio que o primeiro dado importante a observar é o ano de sua publicação, o ano de 1922. Depois da Primeira Guerra Mundial, serão os Estados Unidos que estarão no rumo da construção da maior potência mundial, ao mesmo tempo em que se prenunciam graves crises.

Babbitt. Sinclair Lewis. Abril Cultural. 1972. Tradução: Leonel Vallandro.

Observemos também os principais personagens. Em primeiro lugar os de sua família: Myra, ou a senhora Babbitt e os filhos Verona, Ted e Tinka.  Seguem-se os amigos, especialmente os do tempo de escola, com grande destaque para Paul Riesling e a esposa Zilla, os vizinhos e as instituições. Ah! As instituições! As instituições e os seus valores. O conservadorismo. O Partido Republicano e a Igreja Presbiteriana. Para além dos diversos clubes, que tem nos "cidadãos de bem" os seus sócios.

O tema é fascinante. Sempre me aguçou muita curiosidade. Dou os livros de maior destaque: O de um dos meus primeiros contatos com o tema -  Bandeirantes e Pioneiros - Paralelo entre duas culturas, de Vianna Moog, o clássico Da democracia na América, de Alexis de Tocqueville, o extraordinário Antiintelectualismo nos Estados Unidos, de Richard Hofstadter, o necessário A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber e, já que entramos no campo religioso, os muitos livros que analisam a cultura americana e a sua visão de celebração de uma Nova Aliança e suas implicações, que resultaram nas tais - teologias da prosperidade. Não poderia deixar de citar aqui a fantástica e incomparável obra de Philip Roth.

Mas, a obra em análise é Babbitt, de H. S. Lewis (1885-1951). Após as primeiras manifestações vamos a estrutura da obra. O livro que eu li é a da coleção Os Imortais da Literatura Universal. A obra tem 441 páginas, divididas entre 34 capítulos, todos eles divididos em pequenos tópicos, sem títulos. Já vimos que o tempo do livro é dos antecedentes da década de 1920 e o cenário é o da cidade de Zenith, uma fictícia cidade média dos Estados Unidos, com uma população média em torno de 350.000 habitantes, rumo a um progresso sem par, aspirando a figurar entre as maiores cidades do país. Babbitt é um comerciante do ramo imobiliário, lidando com seguros, aluguéis e compra e venda. Ele vive confortavelmente, com um padrão de vida de classe média alta. A sua rotina é atordoante e agradar a pessoas intoleráveis é o seu ofício. Já que nada produz, ele praticamente vive de relações públicas das quais busca tirar proveito. Isso o obriga a transgressões alheias à sua vontade. E, lembrando, é tempo de Lei Seca. Bebidas obrigam a mais e novas transgressões. 

Babbitt é absolutamente conservador e fervoroso combatente do comunismo. Pertence ao casmurro Partido Republicano e à puritana igreja presbiteriana. Este conservadorismo emoldura sua vida, seus hábitos e práticas diárias. Enquanto frequenta regularmente as instituições e pratica a ética prescrita pelas mesmas, ele obtém clientes preferenciais e avança em seus negócios. O seu combate ao comunismo, por óbvio, o opõe, a todas as lutas dos trabalhadores pelos direitos mais fundamentais. Por óbvio, também prega a conciliação de classes.

A convivência e os dramas vividos pelo seu amigo Paul afetam profundamente a sua vida. O casal vive uma grave crise conjugal, que termina em tiros e prisão. E Babbitt passa a viver também ele a sua crise, a crise da monotonia do casamente monogâmico. Começa a duvidar de seus valores e relaxa na sua prática. A economia passa a preceder a ética. Frequenta a casa de uma amiga, Tanis e frequenta um novo clube, denominado de A Turma. Ali se sente bem, ao contrário do que ocorria em casa e no escritório. Até "teve horror à obrigação de lhe mostrar afeto", referindo-se à sua esposa, a senhora Babbitt. A presença dos rigores da ética ou da moral em que fora educado o levam a arrependimentos e promessas, sempre descumpridas quinze minutos depois de feitas. A sua vida passa a ser observada e a sua presença ou companhia, evitada. Até os negócios que exigiam influência de indicações começaram a minguar.

A vida, ou os negócios da vida passaram pela exigência de uma volta e de reconciliações. Volta a sua antiga vida de conformidades.  Após um internamento e cirurgia da esposa, o antigo George estará de volta à cena da vida de Zenith. Passa a frequentar a Liga dos Bons Cidadãos, uma liga daquilo que hoje conhecemos sob o nome de "Cidadãos de Bem", ao menos assim autodenominados. Volta a ser um ardoroso combatente do comunismo. Volta a sua vida de hipocrisia plena. Vejamos o parágrafo final em que o vemos num diálogo com Ted, o filho:

"Bem... - Babbitt atravessou a sala devagar, pesadamente, com o caminhar um tanto envelhecido. - Sempre quis ver-te formado. - Tornou a cruzar a peça meditativamente. - Mas eu nunca... Pelo amor de Deus, não vás repetir isto à tua mãe., porque é capaz de me arrancar o pouco de cabelo que ainda me resta, mas o fato é que em toda a minha vida nunca fiz nada do que desejava fazer! Fui simplesmente vivendo como me permitiam. Calculo que, de cem quilômetros que podia ter andado, não avancei mais que meio centímetro. Bem, talvez tu vás mais longe.  Não sei. Mas sinto uma espécie de satisfação furtiva por ver que tu sabias o que querias, e o fizeste. Essa gente vai procurar intimidar-te. Manda-os para o inferno! Eu te apoiarei. Aceita o emprego na fábrica, se quiseres. Não tenhas medo da família. Não, nem de toda Zenith. Nem de ti mesmo, como eu tive. Avante meu filho! O mundo é teu!

Os dois Babbitt, pai e filho, entraram abraçados na sala e fizeram frente à família ameaçadora". Uma confissão da prisão em que vivera, prisão das inúmeras convenções às quais sempre se submetera. Um grito em busca de um pouco de autonomia.

Mas vamos a outras considerações. Tomo como guia o livro de notas biográficas que acompanha a coleção. Vejamos a referência a Babbitt: "Utilizando-se de uma cidadezinha, Lewis denuncia o modo de vida de um lugarejo de classe média da América provinciana. A sátira presente no romance rompe com a ficção americana anterior, que sempre procurou descrever a vida de uma pequena cidade como boa e inocente, se comparada às grande metrópoles, além de supervalorizar o papel da classe média.

Lewis costumava citar o ensaísta Thoreau (1817-1862) como influência permanente em toda a sua obra. [...] Assim ele fez para escrever seu próximo romance. Viveu algum tempo em Cincinnati, Ohio, onde pode observar o comportamento dos habitantes, suas expressões mais comuns e sua gíria. Todo esse trabalho de 'laboratório' resultou em Babbitt, cuja ação se passa na cidade fictícia de Zenith. Em Babbitt, exceto os primeiros sete capítulos, onde ele descreve vinte e quatro horas - 'de toque de despertador a toque de despertador' - da vida de sua personagem, todos os outros restantes constituem uma sociologia da classe média americana. Cada um desses capítulos trata de um assunto específico, como política, prazeres, vida em clubes, a barbearia, o botequim. (Também uma greve).

Babbitt retrata o mundo do pequeno homem de negócios. Sendo comerciante, ele não é um produtor; portanto, seu sucesso financeiro depende de um bom trabalho de relações públicas. O livro é uma sátira ao grupo dos mesquinhos e ridículos pequenos comerciantes. O protagonista não consegue romper o círculo que o envolve, porque não consegue imaginar uma vida diferente do seu mundo corrupto e competitivo. Quando Babbitt denuncia contradições ou divergências do grupo, faz isso apenas para continuar nele. Na verdade, ele age em função das relações públicas, e não das relações humanas.

Publicado em 1922, Babbitt despertou uma onda de polêmicas que o escritor não poderia ter imaginado. Em algumas regiões, Lewis era visto como um 'deformador da vida americana'. Todos os jornais reservavam espaço para comentar o livro. O New York Times aprovava Babbitt, ao mesmo tempo que tentava confortar os habitantes do meio-oeste, dizendo que os Babbitts poderiam ser encontrados em qualquer lugar, e que o escritor apenas se teria inspirado no meio-oeste porque essa região lhe eram bem mais familiar.

As críticas variavam muito e iam de extremo a extemo. Afinal, por suas origens, Lewis era também um Babbitt. E, assim, o sucesso do romance poderia ser atribuído ao fato de que grande parte do público via no escritor um aliado e não um inimigo. Inclusive, muitos dos ótimos comentários que a obra recebeu partiram de jornais de pequenas cidades - semelhantes a Zenith do romance - que se sentiam orgulhosas de terem servido de modelo a um livro.

Lewis divertia-se com todas as controvérsias. As suas mãos chegavam cartas de conteúdos diversos. Numa delas, o escritor Somerset Maugham (1874-1965) dizia: 'Nunca um certo tipo ou uma certa classe tinham sido delineados com tanto êxito; a objetividade tão fria e impiedosa com a qual você escreveu causa uma sensação muito estranha; a não ser que as pessoas não se reconheçam nele, devo dizer que você será um dos homens mais desamados da América. Li Babbitt com as mãos tensas, com o pensamento de que eu me sentiria muito intimidado se as encontrasse na vida real.

No entanto, a maioria dos europeus passou a julgar a nação americana composta somente por Babbitts. Revoltados, os americanos diziam que o escritor não apresentava um panorama mas uma caricatura da América. Além do mais, ele não era um sociólogo, e sim um jornalista malicioso.

Mas nada adiantava agora: Babbitt havia-se transformado num arquétipo, tal como acontecera com Dom Quixote, Hamlet ou Fausto, e iria permanecer como o tipo representativo não só de uma classe, mas também de uma nação e de uma época". Vejam toda a importância deste livro.

E ainda, uma observação perspicaz. Estou a reler Bandeirantes e pioneiros, de Viana Moog. Quando ele fala dos Estados Unidos, dos Estados Unidos após a Primeira Guerra Mundial, ele fala das mudanças ocorridas no país: "A América de Wilson cede lugar à América de Coolidge, Calvin Coolidge. Agora a América não está particularmente interessada nos que pensam construir melhores mundos, mas nos que anunciam a possibilidade de dois carros na garagem e outros confortos consideráveis que suas linhas de montagem vieram possibilitar. O símbolo da América já não é o Tio Sam. O símbolo da América é Babbitt, um novo tipo engendrado pelo ianque para substituir o símbolo do pioneiro". Página 224.


segunda-feira, 28 de abril de 2025

A conquista da felicidade. Bertrand Russel. Nobel de literatura - 1950.

Confesso que não sou muito fã de leituras que envolvam este complicado tema da felicidade. Eu explico o porquê. É que este tema quase sempre é abordado por moralistas ou religiosos. E sobre isso eu tenho uma frase lapidar. É do Eça de Queirós, em O crime do padre Amaro. Nele, o padre Amaro reage ao cônego Dias, que o chamara de traste: "Traste por quê? Diga-me lá! Traste por quê. Temos ambos culpa no cartório, eis aí está. E olhe que eu não fui perguntar, nem peitar a Totó... Foi muito naturalmente ao entrar em casa. E se me vem agora com coisas de moral, isso faz-me rir. A moral é para a escola e para o sermão. Cá na vida eu faço isto, o senhor faz aquilo, os outros fazem o que podem. O padre-mestre que já tem idade agarra-se à velha, eu que sou jovem arranjo-me com a pequena. É triste mas que fazer? É a natureza que manda. Somos homens. E como sacerdotes, para honra da classe, o que temos é que fazer costas!". Está aí. Moralistas e religiosos.

Mas o livro que eu tomei em mãos não é o de um moralista, nem o de um religioso. É de um senhor escritor e de um senhor filósofo: Bertrand Russel. Tenho por ele o maior respeito, respeito que lhe devoto desde a leitura de Por que não sou cristão. O livro em questão é - A conquista da felicidade. A sua primeira publicação data de 1930. Em 1950 o autor foi laureado com o Prêmio Nobel de Literatura. Bertrand Russel (1872-1970) teve uma longa vida. Certamente que uma vida feliz o ajudou a ter toda essa longevidade.

A conquista da felicidade. Bertrand Russel. Ediouro. Tradução: Luiz Guerra. 

Se não aprecio tanto a abordagem do tema, também não nego a sua fundamental importância. Afinal de contas, a busca da felicidade é o objetivo último da vida. Assim, sem sombra de dúvida, ele vale muito de nossa atenção. Reflexões sobre o tema também propiciam ajudas no seu alcance.  O livro tem um belíssimo prefácio, no qual o autor apresenta as razões do livro. Transcrevo-o:

"Este livro não é endereçado aos eruditos nem àqueles que julgam que um problema prático não passa de um tema de conversa. O leitor não encontrará nestas páginas nem filosofias e nem erudição profundas. Pensei em reunir alguns comentários inspirados, segundo acredito, pelo senso comum. O que apenas posso dizer em favor dos conselhos que ofereço ao leitor é que se acham confirmados, por minha própria experiência e observação, e que fizeram aumentar minha felicidade sempre que me conduzi de acordo com eles. Sendo assim, ouso esperar que, entre a multidão de homens e mulheres que sofrem, alguns encontrem aqui o diagnóstico de sua própria situação e sugestões eficientes para resolverem tais questões. Ao escrever este livro, parto da convicção de que muitas pessoas infelizes podem chegar a conquistar a felicidade, se fizerem um esforço bem orientado". Na sequência cita um poema:

"Creio que poderia transformar-me e viver com os animais. Eles são tão calmos e donos de si. // Detenho-me para contemplá-los sem parar. // Não se atarantam nem se queixam da própria sorte, // Não passam a noite em claro, remoendo suas culpas, // Nem me aborrecem falando de suas obrigações para com Deus. // Nenhum deles se mostra insatisfeito, nenhum deles se acha dominado pela mania de possuir coisas. // Nenhum deles fica de joelhos diante de outro, nem diante da recordação de outros da mesma espécie que viveram há milhares de anos. // Nenhum deles é respeitável ou desgraçado em todo o amplo mundo". O poema é de Walt Whitman. Seria este poema uma alegoria ou fonte da qual emanam as causas da infelicidade?

Vamos sublinhar - nem erudição, nem filosofias. Mas vivência. Conselhos confirmados por minha experiência e observação. Ofereço aquilo que deu certo para mim, além de dois princípios fundamentais: esforço e boa orientação. Bem, vamos agora a estruturação básica do livro. Ele está dividido em duas partes: A primeira aponta para as causas da infelicidade e a segunda, o seu oposto, ou seja, as causas que conduzem à felicidade. Um estruturação bem simples.

A primeira parte, qual seja, as causas da infelicidade, tem nove capítulos. É o que devemos evitar. Vou nominá-los: 1. O que torna as pessoas infelizes; 2. Infelicidade byroniana; 3. Competição; 4. Tédio e excitação; 5. Fadiga; 6. Inveja; 7. Sentimento de pecado (remorso, culpa); 8. Mania de perseguição; 9 Medo da opinião pública. Esses sentimentos ou situações estão muito presentes, ou profundamente impregnados na cultura, na civilização ocidental, praticamente como valores dominantes. São, portanto, os fundamentos de uma cultura que contém em si, as causas da infelicidade. O avesso das virtudes. Simples assim. Quanta literatura não existe sobre o tema!...

A segunda parte, qual seja, as causas da felicidade, tem oito capítulos. É o que devemos buscar. Eis a relação: 10. A felicidade é ainda possível?; 11. Entusiasmo; 12. Afeição; 13. Família; 14. Trabalho; 15. Interesses impessoais; 16. Esforço e resignação; 17. O homem feliz. Recomendações daquilo que deve ser buscado. O livro não é longo. São 210 páginas.

Do capítulo final tomo algumas reflexões; Nele, Russel afirma que, para o alcance da felicidade, devemos estar atentos aos fatores externos e internos a nós. Os externos são os da cultura dominante, à qual devemos nos inserir (ou adaptar?) e os internos são as nossas atitudes frente a essa situação. Tomar consciência desses fatores é de fundamental importância. Do capítulo fiz uma anotação especial: 

"Quando as circunstâncias externas não são francamente adversas, a felicidade deveria estar ao alcance de qualquer um, sempre que suas paixões e seus interesses se dirijam para o exterior e não para seu interior. Assim, deveríamos nos propor, tanto na educação quanto em nossa intenção de nos adaptarmos ao mundo, evitar paixões egoístas e adquirir afetos e interesses que impeçam que nossos pensamentos girem perpetuamente em torno de nós próprios. A rigor, ninguém pode ser feliz atrás das grades, e as paixões que nos encerram dentro de nós mesmos constituem um dos piores tipos de cárcere. As mais comuns entre essas paixões são o medo, a inveja, o sentimento de culpa, a auto-compaixão e a auto-admiração. Em todas elas, nossos desejos se encontram em nós mesmos: não existe um interesse genuíno pelo mundo exterior, só a preocupação de que possa nos causar mal ou deixar de alimentar nosso ego. É em virtude do medo que a pessoa resiste a admitir os fatos e se predispõe a encapsular-se num protetor abrigo de mitos. Mas os incidentes desagradáveis penetram no abrigo e aqueles que estavam habituados a ficar protegidos sofrem mais do que os que se temperaram, enfrentando as agruras da vida. Além disso, os que se iludem costumam saber que, no fundo, estão errados, e vivem em um estado de apreensão, temendo que algum acontecimento funesto os obrigue a aceitar realidades desagradáveis" (Página 206).

Enfim, viver é algo muito complexo. A cultura dominante ajuda a torná-los ainda mais complexos e opostos ao que chamamos de princípios humanos, de uma vida em convívios harmoniosos com a natureza e com a sociedade. O comum e a sua prevalência sobre o individual... Valores de solidariedade e sua prevalência sobre a competição... Creio que o tema nos remete a outra questão fundamental que é a questão da alteridade. Sobre ela deixo uma bela reflexão:

 http://www.blogdopedroeloi.com.br/2016/01/alteridade-albert-jacquard.html

Junto com a indicação da leitura, deixo a recomendação contida na contracapa: "Muito antes de ser laureado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1950, o filósofo e matemático Bertrand Russel já dava mostras de seu talento e sensibilidade nas letras. A conquista da felicidade, escrito em 1930, aborda um tema comum aos homens de todas as épocas e classes sociais. Que o leitor não espere, como o autor adverte, nem filosofia nem erudição profundas. O que move Russel nesta obra é a convicção de que, com um pouco de esforço bem-orientado, é possível chegar à felicidade".

quarta-feira, 16 de abril de 2025

O Apanhador no campo de centeio. J.D. Salinger. 1951.

Não se trata de um livro tão simples e de leitura fácil e fluente. Não é tão simples aguentar o mau humor do jovem Holden Caulfield, de dezessete anos, ao longo de vinte e seis capítulos que ocupam 206 páginas. Estou falando de um livro famoso, de um dos maiores best-sellers, de muitas polêmicas e proibições, O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger. A primeira publicação data do ano de 1951. O cenário é a cidade de Nova York. Anos posteriores à Segunda Guerra Mundial. O livro é escrito em primeira pessoa. Portanto, Holden narra a sua própria história.


O apanhador no campo de centeio. J.D. Salinger. Tradução: Álvaro Alencar, Antônio Rocha e Jório Dauster. Editora do autor. 13ª edição.

Quem está em busca de um final da história, já a encontrará no primeiro parágrafo do primeiro capítulo: "Só vou contar esse negócio de doido que me aconteceu no último Natal, pouco antes de sofrer um esgotamento e de me mandarem para aqui, onde estou me recuperando". E diz mais, que talvez no mês seguinte, o seu irmão o levará à casa dos pais num jaguar de cerca de quatro mil dólares. Diz que ele está podre de rico, se "prostituindo" em Hollywood, isto é, no cinema. Percebem a crítica, uma das principais características do livro.

Daí começa a contar efetivamente a sua história. O acontecimento do Natal fora mais uma expulsão sua de colégio, agora, do famoso Internato Pensey, na Pennsylvania. Ele reprovara em quatro matérias, de cinco. Neste colégio professores e alunos viviam em mundos diferentes, a começar pela grande diferença de idade e as consequências daí decorrentes. O seu gosto pela leitura o salvara apenas na disciplina de inglês. Em grande parte dos primeiros capítulos Holden descreve o cotidiano do internato: seus colegas, os hábitos, as chatices, as intrigas, os esportes e as dificuldades nos relacionamentos. 

Depois começa a narrativa de sua saída. Isso ocorre num final de semana. Como as férias de Natal começariam apenas na quarta feira, ele não quer chegar em casa, antes desse dia. Assim fica vagando por Nova York. Gasta o tempo no hotel, com telefonemas, em boates e em bebedeiras, mesmo não tendo idade para beber. Mas tendo dinheiro... E por falar em dinheiro, gasta tudo o que lhe sobrara. O tempo do - nada a fazer - é o grande causador de suas angústias e tormentos. Inventa maneiras para fazê-lo passar. É o grande momento do livro. É o tempo das reflexões suas ou com colegas seus, ou com quem encontrasse e lhe desse atenção, sobre os mais diversos temas, entre eles, obviamente, a questão sexual.

No capítulo 16, ele fala de um disco -, Litle Shirley Beans. Sai em sua procura, pois quer dá-lo de presente para a sua irmãzinha, Phoebe, com a idade de dez anos. Holden a adora. Encontra o disco e o compra. Mas, lá pelas tantas, ele cai e quebra em pedaços. Ponho esse fato na resenha em função do significado de Phoebe em sua vida. Ela é praticamente a única pessoa que lhe faz bem. Voltaremos a falar dela. No mesmo capítulo também aparece o título do livro. Holden vê uma família andando pela rua. Um menino cantarolava, junto aos pais, que não lhe davam muita atenção. Ele cantarolava: "Se alguém agarra alguém atravessando o campo de centeio".

Essa música volta no capítulo 22. Nela encontraremos Holden e Phoebe, na casa dos pais, mas estes estavam ausentes, tinham saído. Conversam por um bom tempo. Vejamos uma parte desse diálogo: " - Você sabe o que eu quero ser? - perguntei a ela. - Sabe o que eu queria ser? Se pudesse fazer a merda da escolha? 

- O que? para de dizer nome feio.

- Você conhece aquela cantiga: 'Se alguém agarra alguém atravessando o campo de centeio'? Eu queria..

- A cantiga é 'Se alguém encontra alguém atravessando o campo de centeio'! - ela disse. É dum poema do Robert Burns.

- Eu sei que é dum poema do Robert Burns.

Mas ela tinha razão. É mesmo 'Se alguém encontra alguém atravessando o campo de centeio'. Mas eu não sabia direito.

- Pensei que era 'Se alguém agarra alguém' - falei. - Seja lá como for, fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num baita campo de centeio e tudo. Milhares de garotinhos e ninguém por perto - quer dizer, ninguém grande - a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o quê que eu tenho de fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer. Sei que é maluquice". Página 168. É o livro!

Holden está decidido a ir para o oeste. Não quer um reencontro com os pais. Mas quer se despedir de Phoebe e lhe devolver os poucos dólares que ela lhe emprestara. Ela empaca e quer ir junto. É o momento em que também Holden decide ficar. Agora... é retomar o começo do post.

Mensagem..., fama do livro... Interrogações! O encanto e a doçura de Phoebe. E, por falar em canção, numa rápida procura no Google sobre o livro, encontro - sob o título inglês do livro - The Catcher in the Rye, ser ele também uma canção. Do Guns N'Roses. E segue a seguinte explicação: "A referência ao The Catcher in the Rye, um clássico da literatura americana, é central para entender a mensagem da canção.  Este livro é frequentemente associado à alienação e à luta contra a falsidade percebida na sociedade. A letra expressa um sentimento de descontentamento e confusão em relação ao mundo". Um mundo que, observem a data da publicação do livro, 1951. O mundo acabara de sair de uma Segunda... De uma Segunda Guerra Mundial...

E uma reflexão em que Holden entra na subjetividade de seu irmão, aquele de Hollywood. É sobre a guerra e sobre o exército: "Meu irmão D.B. ficou no exército quatro anos. Esteve na guerra mesmo - participou do desembarque do dia D e tudo - mas acho que ele detestava mais o exército do que a própria guerra" (Página 137). 







quarta-feira, 9 de abril de 2025

"A PRAGA DO PARÁ". Origens e crescimento do pentecostalismo assembleiano - 1911-1931. Rafael da Gama.

Numa de nossas habituais conversas no restaurante São Francisco, o mais antigo de Curitiba (1955), meu amigo Valdemar falava do livro Seja feita a Vossa Vontade - Nelson Rockfeller e o evangelismo na idade do petróleo, de Gerard Colby e Charlotte Dennet (Record, 1998 - 1060 páginas). O livro está disponível na Amazon, a um custo de R$ 1.000,00. Na sua apresentação se lê que Rockefeller juntou-se a Cameron Townsend, um líder evangélico, para, além das finalidades econômicas, combaterem o comunismo e evangelizarem os indígenas da amazônia. A apresentação termina assim. O empreendimento "resultou num dos episódios mais escandalosos da política imperialista americana com ataques à natureza, patrocínio de ditaduras, genocídios, exploração predatória de riquezas naturais e espionagem". 

Por óbvio, o livro me interessou. Mas, como estamos num período em que o governador do Paraná (Rato Júnior), usa as reposições salariais do funcionalismo público como poupança para investimentos..., fazendo despencar os nossos salários, acrescido ao elevado preço do livro, nem me passou pela cabeça a ideia de sua compra. Mas as buscas do livro nas pesquisas da Internet, me sugeriram outros títulos. Entre eles: "A praga do Pará" - origens e crescimento do pentecostalismo assembleiano (1911-1931), de autoria de Rafael da Gama, uma edição da Pluralidades, 2ª edição, 2024. Este eu comprei.

"A praga do Pará". Rafael da Gama. Pluralidades. 2024. 132 páginas.

A primeira coisa que eu tenho a dizer, é que Rafael Gama é historiador. E, na orelha da capa, ele se apresenta como "sempre, e principalmente, servo e amigo de Cristo". O livro historia fatos, historia as polêmicas geradas pelos fatos. O seu livro tem origem acadêmica e obedece aos ditames da metodologia científica. Um livro com toda a seriedade de um pesquisador. Notem que o título "A praga do Pará", está entre aspas. Ele está explicitado no capítulo quatro: "A heresia pentecostal": diálogos e tensões entre pentecostais e protestantes. É uma referência ao tratamento dado aos pentecostais pelos próprios protestantes em seus órgãos de imprensa. Vejamos um trecho da página 76: "São constantes as difamações em relação ao pentecostalismo, ao mesmo tempo que notamos a sua crescente expansão. Logo alguns anos após o início do movimento pentecostal na cidade, já percebemos periódicos batistas e presbiterianos opinando sobre "A heresia pentecostal" (1923), com nominações jocosas como "espírito de fogo" (1916), "A praga que veio do Pará" (1916), entre outras nomenclaturas que eram comuns nesses jornais".

Explicitado isso, vamos a algumas considerações sobre o livro. Com ele, você fica sabendo muito mais do que apenas a questão específica da chegada dos pentecostais à Belém, mas também sobre a religiosidade tradicional na cidade, de sua economia, estrutura social e econômica, crises de saúde e sanitárias, entre outros tantos temas. Observem a delimitação das datas - 1911-1931. Já somos um país republicano. Já instituímos a liberdade religiosa e separamos a Igreja e o Estado. Já estamos no final do ciclo da borracha, do final do século XIX e da primeira década do XX, que provocou, na região, a chamada Belle Époque. O pentecostalismo chega a Belém, portanto, numa época de profundas crises. 

Outro ponto notável do livro é a sua busca por fundamentos históricos, como o surgimento do protestantismo, sua expansão e as formas como ele se estabeleceu nos diferentes países, especialmente nos Estados Unidos. Este país divergiu do anglicanismo inglês e fez surgir novas denominações, entre as quais o autor destaca os metodistas, batistas e presbiterianos, denominações já presentes em Belém, quando da chegada dos adeptos do pentecostalismo. Outro ponto forte do livro é a forma como os Estados Unidos conceberam ou imaginaram a sua religiosidade, como povo eleito, ou como nação eleita e o espírito evangelizador e missionário decorrente. É um protestantismo fundamentalmente calvinista, ligado à prosperidade. Tem muito de Max Weber nas análises do autor. Sim, também tem toda a história da festa de Nossa Senhora de Nazaré.

O livro é estruturado em prefácio, introdução e seis capítulos, assim titulados: 1. Belém do Pará: catolicismo e hegemonia social; 2. "A verdadeira fé": o protestantismo no Pará; 3. De Los Angeles a Belém do Pará: o surgimento do movimento pentecostal; 4. "A heresia pentecostal": diálogos e tensões entre pentecostais e protestantes; 5."A cura para os leigos": diálogos entre o pentecostalismo e a cidade; 6. "Da violência simbólica à física: diálogos e conflitos entre católicos e pentecostais; Considerações finais e uma rica indicação de referências bibliográficas.

O prefácio, assinado por Gedeão Alencar, destaca a Primeira Missa do 21 de abril de 1500 para oficializar o descobrimento e a oração pentecostal, de 24 de outubro de 2018, após o TSE proclamar o resultado das eleições presidenciais, anunciando Jair Bolsonaro como presidente. Observação bem de acordo com o tema do livro. Momentos históricos diferentes. Disputas do imaginário religioso.

Na Introdução são apresentadas as razões do livro e a sua estruturação básica. Ele é uma decorrência de suas pesquisas de doutorado na PUC/SP. Chama a atenção dos fatos históricos mais importantes do período e o vertiginoso crescimento do pentecostalismo, sendo a Assembleia de Deus, a denominação de maior número de adeptos no Brasil de hoje, num total de mais de 12 milhões de seguidores. "Assembleia de Deus", foi a denominação da primeira igreja fundada pelos pentecostais em Belém.

No primeiro capítulo o autor explicita princípios da doutrina católica, a origem histórica de Santa Maria de Belém do Grão Pará, o sincretismo das religiões dos povos que ali se encontraram, índios, negros e colonizadores brancos, a centralização da fé em Nossa Senhora de Nazaré e a sua história e a economia gomífera (ascensão e declínio). O catolicismo como religião hegemônica sob o comando dos padres barnabitas, ordem religiosa que fora banida na França. Seus órgãos de imprensa e o combate ao protestantismo.

No segundo capítulo são apresentados os protestantes e seus fundamentos religiosos que os diferenciaram do catolicismo, com destaque de uma ligação direta com Deus, sem as mediações típicas e próprias do catolicismo. Se dedicam ao expansionismo, e dividem a América, com a ocupação de sua área norte. A sua consideração como "povo eleito", a "nova Israel". A fé que se impregna num modelo econômico e social. Se elegem como uma "nação modelo", uma referência à prosperidade. De acordo com a finalidade do livro, destaca a presença de missionários suecos nos Estados Unidos. Serão esses suecos que chegarão mais tarde a Belém. o destaque vai para as denominações dos metodistas, batistas e presbiterianos.

O terceiro capítulo é um dos centrais do livro. Ele retrata a origem do pentecostalismo nos Estados Unidos, na cidade de Los Angeles. Dá até o endereço da rua Azusa. Apresenta o "batismo com o Espírito Santo", êxtases, falar línguas, visões e avivamentos, como suas grandes inovações. Vejam uma descrição do "Los Angeles Daily Times", que mostra, tanto as inovações trazidas, quanto a sua recepção nada favorável: "Respirando palavras de estranhos e pronunciando um credo que parece que nenhum mortal poderia entender, a mais nova seita religiosa começou em Los Angeles [...] a estranha doutrina pratica os ritos mais fanáticos [...] Pessoas de cor e uns poucos brancos compõem a congregação, e a noite se torna horrível na vizinhança pelos uivos adoradores, que passam horas se balançando para frente e para trás em uma atitude de oração e súplicas enervantes. Eles alegam ter 'o dom de línguas' e serem capazes de compreender a babel [...] Então é que o pandemônio se solta [...] em uma exaltação de zelo religioso". Nada lisonjeiro. A referência às pessoas de cor se deve a um filho de ex-escravizados, Willian Seymour, entre os fundadores. Entre os seus primeiros adeptos também figuravam os suecos Daniel Berg e Gunnar Vingren. Estes trouxeram a doutrina a Belém (página 63-64).

O quarto capítulo é dedicado às primeiras atividades dos dois missionários, a sua acolhida pelos batistas e metodistas e as desavenças. Foram expulsos de um local onde faziam as suas celebrações e, já em um novo local, os dois e mais dezessete seguidores, lançaram a sua nova denominação, primeiramente como Missão de fé apostólica e depois lhe deram a designação pela qual ficaram denominados no Brasil: Assembleia de Deus. (página 72). No capítulo ainda é mostrada a sua rápida expansão e as causas para esta expansão. Uma religião que prima pelo testemunho e não pela razão.

Aí já entramos no quinto capítulo, uma análise da recepção dessa nova denominação. Ela se assenta em uma sociedade em profunda crise, crise econômica e social e crise de epidemias como a malária, a lepra, a febre amarela, a cólera e a tuberculose. Testemunhos de cura, caem bem em meio a esta realidade. Glossolalia, curas e ampla participação popular impulsionaram a expansão.

O sexto capítulo versa sobre a relação com os católicos. É fácil de entender. O catolicismo era a religião hegemônica e que tudo fez para não perdê-la. Era a religião do poder e este foi usado a seu serviço. Da violência simbólica partiu-se para a violência física da atuação policial. São retratadas cenas dessas violências, especialmente as da cidade de Bragança. 

Das considerações finais tomo o último parágrafo: "Essa reação violenta do catolicismo diante do pentecostalismo mostra mais um estranhamento em relação à ameaça de perda de sua hegemonia. Mostra um processo que se desenrola até os dias de hoje, com um pentecostalismo diverso e pulverizado, atuando fortemente nas periferias do país, em ascensão desde a sua chegada no Brasil através da região amazônica. Estudar o pentecostalismo em sua origem, expansão e consolidação nas primeiras décadas de sua formação no Norte do país, nos faz entender melhor a religiosidade brasileira não apenas no Pará, mas em todo o território nacional no período republicano, trazendo também reflexões sobre o crescimento do pentecostalismo que seguem até os dias atuais. Entender o movimento pentecostal é, assim, procurar entender toda a complexidade do cenário religioso brasileiro, em suas diferentes nuances e manifestações".

Estão abertos os debates.

Deixo ainda dois livros, um deles muito presente nas análises do autor. A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/01/a-etica-protestante-e-o-espirito-do.html e outro, numa visão bem crítica, Os demônios descem do norte, de Délcio Monteiro de Lima. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2016/12/os-demonios-descem-do-norte-delcio.html