terça-feira, 17 de novembro de 2015

"Ninguém nasce mulher - tornar-se mulher". Simone de Beauvoir.

Recebi várias provocações para escrever algo sobre a questão de gênero, a partir da questão do ENEM, que solicitava uma contextualização da frase de Simone de Beauvoir de que "ninguém nasce mulher, torna-se mulher".  Recebi, inclusive por messenger, uma matéria de um site - Midia Livre - FCS Brasil, que qualificava este exame como um"Vexame Nacional do Ensino Médio Bolivariano". Nele o exame sofria duras críticas. Mas o que chamou mais atenção foi um vídeo que acompanhou a matéria.
O Segundo Sexo. Eis o livro da polêmica do ENEM. Sua publicação primeira foi em 1949. A obra está disponível nas livrarias em volume único. Da editora Nova fronteira.

Neste vídeo, já devidamente removido, uma menina, qualificada como estudante de direito, manifestava a sua certeza de que a questão de gênero não precisava ser discutida, porque quem não sabe que "homem nasce com pinto e mulher com boceta". Assim a condição biológica seria determinante e os aspectos culturais da construção do humano não seriam levados em conta. Achei que não valeria a pena entrar na discussão, pelo nível absolutamente pré primário do argumento, uma vez que o ser humano se constrói culturalmente, Em cima do ser animal é que é construído o ser cultural, e é isto o que o torna um ser humano. Jamais esta pobre menina teria chegado a esta conclusão, se em seus estudos, tivesse havido uma abertura, ao menos de uma pequena aresta, para um pensar plural, múltiplo e diverso. Se tivesse dado um mínimo olhar para a palavra "transcender", também lhe teria feito um bem enorme.

Ao receber a revista CULT deste mês (novembro/2015 - edição nº 207), com um dossiê sobre Simone de Beauvoir, resolvi tomar a coragem de escrever este post. E o faço, no sentido de provocar para o mais, para a busca de mais leituras e debates, tão necessários para efetivamente se viver e conviver na busca da compreensão da alteridade e, em que, as relações humanas avancem para além da palavra tolerância e atingir o nível do respeito.
Edição nº 207, da revista CULT, com dossiê especial sobre Simone de Beauvoir.


O dossiê Simone de Beauvoir recebe o nome de O pensamento filosófico-feminista de Simone de Beauvoir e tem textos de Magda Guadalupe dos Santos, que afirma que a "obra da pensadora permanece como ponto de interlocução no debate atual sobre o gênero", uma entrevista "Simone por Sylvie", em que a herdeira e editora da obra da filósofa, Sylvie Le Bon de Beauvoir analisa o legado intelectual deixado pela pensadora, um texto de Carla Rodrigues em que é mostrado como a filósofa percebeu que para a mulher só havia uma definição negativa: aquela que não é homem e por último o texto, de Djalmila Ribeiro, sob o título de "figurações do outro" em que é mostrado como a autora de O segundo sexo se pergunta como um ser humano pode realizar-se dentro da condição feminina. Vou me ater, especialmente, a este último texto.

O texto é uma espécie de síntese de O segundo sexo. O livro tem método e responde a questão sobre a possibilidade da emancipação feminina vivendo sob a opressão. Ela procura responder as seguintes questões: "Como pode realizar-se um ser humano dentro da condição feminina? Que caminhos lhe são abertos? Como encontrar a independência no seio da dependência? Que circunstâncias restringem a liberdade da mulher, e quais ela pode superar". A situação da mulher mais ou menos poderia ser assim definida: "A situação da mulher lhe é infligida e assume um aspecto de opressão, de um 'beco sem saída', como um destino institucionalizado que petrifica sua existência num modelo de não liberdade". Mas ela via tudo dentro da perspectiva hegeliana e por isso, lá no horizonte, enxergou a superação.
Tem Hegel no meio de toda essa história. Devenir. Ideia de movimento e de futuro. Tornar-se.


"Quando um indivíduo ou um grupo de indivíduos é mantido numa situação de inferioridade, ele é de fato inferior; mas é sobre o alcance da palavra ser que precisamos entender-nos; a má fé consiste em dar-lhe um valor substancial quando tem o sentido dinâmico hegeliano: ser é ter-se tornado, é ter sido feito tal qual se manifesta. Sim, as mulheres, em seu conjunto, são hoje inferiores aos homens, isto é, sua situação oferece-lhes possibilidades menores". Ao identificar as barreiras é que se abre a possibilidade da ultrapassagem. Mostro mais um pequeno trecho do texto para mostrar toda a sua importância.

"A desnaturalização do gênero feita por Beauvoir foi ponto de partida para diversas pesquisadoras. Ao mostrar que 'ninguém nasce mulher, torna-se mulher' a filósofa rompe com a visão determinista biológica, elucidando que os valores femininos são construídos socialmente". No texto de Carla Rodrigues é dada toda a ênfase na palavra devenir, do original, que significa tornar-se, para marcar fortemente a ideia de movimento e de futuro. Tornar-se mulher. 
A performatividade de gênero e do político. A entrevista na revista CULT.





Se Simone de Beauvoir usava a palavra sexo, depois se evoluiu para o uso da palavra gênero, passando por novos conceitos de libertação, que passaram por outros filósofos, com destaque para Foucault. Judith Butler é hoje considerada como uma das pensadoras que transcendeu a obra de Beauvoir. vejam só a capa de uma outra revista da CULT, a de sua edição nº 205, em que aparece uma frase síntese de seu pensamento "Temos que pensar o lugar de corpos movendo-se livremente dentro de uma democracia". Apenas provocações que clamam por mais leituras.

2 comentários:

  1. Agradeço à Revista Cult pelo honroso tratamento deferido aos temas de filosofia feminista. É sempre válido e necessário retomar as feições históricas do feminismo para que, por meio dele, se possa repensar o nosso modo de vida.

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  2. Agradeço o seu comentário. A muitos anos sou assinante da Cult. Pois é, no Brasil estes temas ganharam evidência com a redemocratização ao final dos anos 1970 e ao longo dos anos 1980, com as novas demandas da democracia. E como é lamentável ver o retrocesso deste governo golpista na sua concepção relativa à mulher.

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