segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Dom Quixote. Cervantes. Capítulo LIII. Volume II.

Glutão, beberrão e ambicioso. Teriam sido estas as principais características do memorável escudeiro do mais famoso cavaleiro que a literatura já produziu? Junto com a fidelidade ao Quixote, creio que sim. Interessante que o próprio Sancho negue estas suas características, ao comentar o falso volume das aventuras da dupla, que apareceu um pouco antes do lançamento do de Cervantes. Inclusive usa isso como argumento para a sua falsidade. Cervantes deve ter sido um dos maiores narradores que a literatura mundial conheceu.
Edição da Abril Cultural. Os dois volumes.

Sancho era um lavrador de vida simples, num cotidiano, no mínimo tedioso e repetitivo com Teresa, a esposa e mais dois filhos. Sobre ele recaiu a escolha de Dom Quixote, quando o cavaleiro saiu pela segunda vez em busca de aventuras que o consagrariam. Não restam dúvidas que ele aceitou o cargo ou a missão em troca de recompensas. Em seu horizonte sempre vislumbrou o governo de uma ilha ou, no mínimo, um título de conde. Era analfabeto mas um bom observador. Era falante e acumulava um sem número de rifões ou ditos populares, que tanto incomodavam o Quixote.

Já quase ao final do segundo volume um duque satisfaz a vontade de Sancho, na sua ambição de ser governador. Já destaquei os conselhos que recebeu de seu cavaleiro para o bom exercício da função. Como governador foi considerado como um novo Salomão, pelo bom senso em suas decisões. Porém, não permaneceu nem dez dias no exercício de tão nobre cargo. Não deu tempo nem de entronizar a sua família na sua corte de poder. Renunciou em meio a uma vitória de suas forças, portanto, num momento muito favorável. Mas o que o incomodou? Vejamos algumas justificativas suas, dadas para o seu burrico, o ruço.

"- Vinde cá, meu companheiro e meu amigo, que tendes suportado uma parte dos meus trabalhos e misérias; quando eu andava convosco, e não pensava senão em arremendar os vossos aparelhos, e em sustentar o vosso corpinho, ditosas horas, ditosos dias e ditosos anos eram os meus; mas, desde que vos deixei e trepei às torres da ambição e da soberba, entraram-me pela alma dentro, mil misérias, mil trabalhos, e quatro mil desassossegos". E, enquanto albardava o seu burro se dirigia às pessoas de sua corte, especialmente ao médico que cuidava de sua dieta.

"Abri caminho, senhores meus, e deixai-me voltar à minha antiga liberdade; deixai-me ir buscar a vida passada, para que me ressuscite desta morte presente. Eu não nasci para ser governador, nem para defender ilhas nem cidades dos inimigos que as quiserem acometer. Entendo mais de lavrar, de cavar, de podar e de por bacelos nas vinhas, do que de dar leis ou defender províncias nem reinos. Bem está São Pedro em Roma; quero dizer: bem está cada um, usando do ofício para que foi nascido. Melhor me fica a mim uma foice na mão do que um cetro de governador; antes quero comer à farta feijões do que estar sujeito à miséria de um médico impertinente, que me mate à fome; e antes quero recostar-me de verão à sombra de um carvalho, e enroupar-me de inverno com um capotão, na minha liberdade, do que deitar-me, com a sujeição do governo, entre lençois da holanda, e vestir-me de martas cevolinas". E continua, em tom de despedida.
Caricatura do Sancho Pança. Seria um sábio? 

"Fiquem Vossas Mercês com Deus, e digam ao duque meu senhor que nasci nu, nu agora estou, e não perco nem ganho; quero dizer: que sem mealha entrei neste governo, e sem mealha saio, muito ao invés do modo como costumam sair os governadores de outras ilhas; e apartem-se, deixem-me, que me vou curar, pois suponho que tenho arrombadas as costelas todas, graças aos inimigos que esta noite passaram por cima de meu corpo". Depois, em contra argumentação arremata.

"Fiquem nesta cavalariça as asas de formiga, que me levantaram aos ares para me comerem os pássaros, e tornemos a andar pelo chão com pé rasteiro, que, se o não adornarem sapatos picados de cordovão, não lhe hão de faltar alpargatas toscas de corda; lé com lé e cré com cré; ninguém estenda as pernas para fora do lençol, e deixem-me passar, que se faz tarde".

Uma ducha de água fria na universal ambição humana. Fantástico.


2 comentários:

  1. Prof. PEDRO ELÓI
    Que generoso de sua parte compartilhar de forma tão elegante suas aventuras literárias.
    Abraços,
    Marcos

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  2. Muito obrigado Marcos pelo seu generoso comentário. Me serve de estímulo para continuar.

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