sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Dom Quixote. Cervantes. O capítulo XLII do Volume II.

A publicação do primeiro volume do Dom Quixote, em 1605, se tornou um imediato sucesso de público. Suas histórias são conhecidas e muitos se esforçam por conhecer os feitos dos grandes heróis. Isso ocorre com um duque e uma duquesa, que se esmeram em hospedar ao Quixote e atender aos anseios do ambicioso Sancho. O duque inclusive entroniza Sancho como governador de uma ilha. Surpreendentemente ele se sai muito bem. Um novo rei Salomão em seus julgamentos.

Quando se prepara para assumir, Dom Quixote lhe dá conselhos, sábios conselhos. Uma aula de saber político e jurídico. Isso ocorre no capítulo XLII do segundo volume. Quixote ficará conhecido como o Cid nas armas e como o Cícero na eloquência.  Vejamos alguns destes conselhos:
Dom Quixote alternava momentos de loucura com os de lucidez. Só quando se tratava de cavalaria é que cometia disparates.

"Primeiramente, filho, hás de temer a Deus, porque no temor a Deus está a sabedoria, e, sendo sábio, em nada poderás errar.

"Em segundo lugar, põe os olhos em quem és, procurando conhecer-te a ti mesmo, que é o conhecimento mais difícil que se pode imaginar. De conhecer-te resultará o não inchares como a rã, que se quis igualar ao boi: que se isto fizeres, virá a ser feios pés da roda da tua loucura a consideração de teres guardado porcos na tua terra". Sancho assente e Dom Quixote continua:

"É verdade - replicou Dom Quixote; - e por isso, os que não são de origem nobre devem acompanhar a gravidade do cargo que exercitam com uma branda suavidade, que, ligada com a prudência, os livre da murmuração maliciosa, a que nenhum estado escapa. Aí, sem nenhuma interrupção, segue uma longa lista de conselhos:

"Faze gala da humildade da tua linhagem, Sancho, e não tenhas desprezo em dizer que és filho de lavradores, porque, vendo que te não corres por isso, ninguém to poderá lançar em rosto; ufana-te mais em seres humilde virtuoso que pecador soberbo. Inumeráveis são os que, nascidos de baixa estirpe, subiram à suma dignidade pontifícia e imperatória, e podia dar-te tantos exemplos que te fatigaria. Repara, Sancho, que, se te ufanares de praticar atos virtuosos, não há motivo para ter inveja aos príncipes e senhores, porque o sangue se herda e a virtude adquire-se, e a virtude por si só vale o que não vale o sangue.

"Sendo isto assim, se acaso te for ver, quando estiveres na tua ilha, algum dos teus parentes, não o afrontes nem o desdenhes, mas, pelo contrário, acolhe-o e agasalha-o, e festeja-o, que satisfarás com isso o céu, que gosta que ninguém se despreze pelo que ele fez, e corresponderás ao que deves à bem concertada natureza. Se levares tua mulher contigo (porque não é bem que os que governam por muito tempo estejam sem as suas mulheres), ensina-a, doutrina-a e desbasta-lhe a natural rudeza, porque tudo o que ganha um governador discreto, perde-o muitas vezes uma mulher rústica e tola.

"Se, por acaso, enviuvares, e com o cargo melhorares de consorte, não a tomes tal que te sirva de anzol e de isca, porque em verdade te digo que de tudo o que a mulher do juiz receber há de dar conta o marido na residência universal, com que pagará pelo quádruplo na morte o que ilegitimamente recebeu em vida.

"Nunca interpretes arbitrariamente a lei, como costumam fazer os ignorantes que têm presunção de agudos. 

"Achem em ti mais compaixão as lágrimas do pobre, mas não mais justiça do que as queixas  dos ricos.

"Procura descobrir a verdade por entre as promessas e dádivas do rico, como por entre os soluços e importunidades do pobre.
Quando Dom Quixote se torna cavaleiro, em Porto Lápice.

"Quando se puder atender à equidade, não carregues com todo o rigor da lei no delinquente, que não é melhor a fama do juiz rigoroso que do compassivo.

"Se dobrares a vara da justiça, que não seja ao menos com o peso das dádivas, mas sim com o da misericórdia.

"Quando te suceder julgar algum pleito de inimigo teu, esquece-te da injúria e lembra-te da verdade do caso.

"Não te cegue paixão própria em causa alheia, que os erros que cometeres a maior parte das vezes serão sem remédio, e, se o tiverem, será à custa do teu crédito e até da tua fazenda.

"Se alguma mulher formosa te vier pedir justiça, desvia os olhos das suas lágrimas e os ouvidos dos seus soluços, e considera com pausa a substância do que pede, se não queres que se afogue a tua razão no seu pranto e a tua bondade nos seus suspiros.

"A quem hás de castigar com obras, não trates mal com palavras, pois bem basta ao desditoso a pena do suplício, sem o acrescentamento das injúrias. 

"Ao culpado que cair debaixo da tua jurisdição, considera-o como um mísero, sujeito às condições da nossa depravada natureza, e em tudo quanto estiver da tua parte, sem agravar a justiça, mostra-te piedoso e clemente, porque ainda que são iguais todos os atributos de Deus, mais resplandece e triunfa aos nossos olhos o da misericórdia que o da justiça.

"Se estes preceitos e estas regras seguires, Sancho, serão longos os teus dias, eterna a tua fama, grandes os teus prêmios, indizível a tua felicidade; casarás teus filhos como quiseres, terão títulos eles e os teus netos, viverás em paz e no beneplácito das gentes, e aos últimos passos da vida  te alcançará a morte em velhice madura e suave, e fechar-te-ão os olhos as meigas e delicadas mãos de teus trinetos. O que até aqui se disse são documentos que devem adornar tua alma: escuta agora os que hão de servir para adorno do corpo:"

Todo o capítulo seguinte também é de conselhos, desta vez eles são de ordem prática e se constituem em uma belíssima peça de humor. Ao cabo de dez dias, apesar da excelente administração Sancho renuncia, especialmente em função da presença, na sua corte, de um médico que se dedica aos cuidados de sua dieta. Isso era demais para o ambicioso governador  e vejam a frase de efeito com a qual se despede da função: "...mas desde que vos deixei e trepei às torres da ambição e da soberba, entraram-me, pela alma dentro mil misérias, mil trabalhos e quatro mil desassossegos. [...]Abri caminho, senhores meus, e deixai-me voltar à minha antiga liberdade; deixai-me ir buscar a vida, para que me ressuscite desta morte presente".




2 comentários:

  1. Oi Marcos. Agradeço muito o seu estimulante comentário. Apenas procuro compartilhar o que faço no uso do meu tempo livre.

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