quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Dom Quixote. Cervantes. O capítulo XI. Volume I.

Como qualificar a obra de Cervantes? É difícil medir toda a genialidade do autor do Dom Quixote. Creio que a sua maior e melhor qualidade é a de narrador. Ele era um leitor voraz, o que, obviamente, o tornou o grande escritor. Vejam esta sua frase: "Yo soy aficionado a leer, aunque sean los papeles rotos de la calle". Cervantes conhecia profundamente a literatura clássica, acompanhava detalhadamente a política de seu tempo, conhecia bem o ser humano e era grande conhecedor dos livros de cavalaria.
Em sua primeira saída Dom Quixote sai consagrado cavaleiro andante.

É difícil imaginar como, em meio as suas atribulações, se tornou o grande escritor que foi. Dom Quixote é uma explosão em termos de criação. Depois da sua leitura, selecionei três capítulos que, de acordo com a minha visão, merecem um post especial. São o famoso capítulo XI do primeiro Volume, em que apresenta uma visão de seu tempo, numa retrospectiva aos séculos de ouro, o capítulo XLII, do segundo volume, em que o Quixote dá conselhos a Sancho, quando este se prepara para assumir o governo de uma ilha e o LIII, também do segundo volume, em que Sancho, com menos de dez dias de governo, apresenta as suas desilusões e renuncia ao governo.

Mas vamos ao capítulo XI, que leva por título Do que a Dom Quixote sucedeu com uns cabreiros. Ali estavam os cabreiros a preparar sua refeição, "tassalhos de cabra, que estavam numa caldeira a ferver ao lume". Quixote e Sancho são convidados, como reconhecimento do valor dos cavaleiros andantes. Sancho se dá bem com a gula, tanto no beber quanto no beber. Após o comer Quixote discursa exaltando os anos dourados do mundo clássico. Isso será várias vezes repetido ao longo da obra. Vejamos a sua visão destes ditosos tempos:

"Ditosa idade e afortunados séculos aqueles a que os antigos puseram o nome de dourados, não porque nesses tempos o ouro, que nesta idade do ferro tanto se estima, se alcançasse sem fadiga alguma, mas sim porque então se ignoravam as palavras "teu" e "meu"! Tudo era comum naquela santa idade; a ninguém era necessário, para alcançar o seu ordinário sustento, mais trabalho que levantar a mão e apanhá-lo das robustas azinheiras, que liberalmente estavam oferecendo o seu doce e sazonado fruto. As claras nascentes e correntes rios ofereciam a todos, com magnífica abundância, as saborosas e transparentes águas" [...] "Tudo então era paz, tudo amizade, tudo concórdia". Era o tempo em que as bondades da terra não tinham dono". E o seu maravilhamento continua:

"Ainda se não tinha atrevido a pesada relha do curvo arado a abrir e visitar as entranhas piedosas da nossa primeira mãe, que ela, sem a obrigarem, oferecia por todas as partes do seu fértil e espaçoso seio o que pudesse fartar, sustentar, e deleitar, aos filhos que então possuíam. Então, sim, que andavam as símplices e formosas pastorinhas de vale em vale, e de outeiro a outeiro, com simples tranças ou em cabelo, sem mais vestidos que os necessários para encobrirem honestamente o que a honestidade quer, e quis sempre que se encubra". E o cavaleiro continua a sua exaltação:

"Não eram seus adornos, como os que ao presente se usam, exagerados com a púrpura de Tiro, e com a por tantos modos martirizada seda; eram folhagens de verde bardana e hera entretecidas; com o que talvez andavam tão garridas e enfeitadas como agora andam as nossas damas de corte com as raras e peregrinas invenções que a indústria ociosa lhes tem ensinado. Então expressavam-se os conceitos amorosos da alma simples, tão singelamente como ela os dava, sem se procurarem artificiosos rodeos de fraseado para os encarecer. Com a verdade e lhaneza não se tinham ainda misturado a fraude, o engano, e a malícia. A justiça continha-se nos seus limites próprios, sem que ousassem turbá-la nem ofendê-la o favor e interesse, que tanto hoje a enxovalham, perturbam e perseguem. Ainda se não tinha metido em cabeça de juiz o julgar por arbítrio, porque ainda não havia julgadores, nem pessoas para serem julgadas". Os seus arrazoados continuam com o exaltar das donzelas:

"As donzelas e a honestidade andavam, como já disse, por toda a parte desguardadas e seguras, sem medo de que a alheia desenvoltura e atrevimentos lascivos as desacatassem;  se se perdiam era por seu gosto e própria vontade. E agora, nestes nossos detestáveis séculos, nenhuma está segura, ainda que a encerre e esconda outro labirinto de Creta, porque lá mesmo, pelas fendas ou pelo ar, com o zelo do maldito cuidado lhes entra o amoroso contágio, e as faz dar com todo o seu recato à costa". E é nesse cenário que entram os cavaleiros:
Quixote explica sobre a finalidade dos cavaleiros andantes e seus escudeiros.

"Para segurança delas, com o andar dos tempos, e crescendo mais a malícia, se instituiu a ordem dos cavaleiros andantes, defensores das donzelas, amparadora das viúvas, e socorredora dos órfãos e necessitados. Desta ordem sou eu, irmãos cabreiros, a quem agradeço o bom agasalho e trato que me dais a mim e a meu escudeiro, ainda que por lei natural todos os viventes estão obrigados a favorecer aos cavaleiros andantes, contudo sei que vós outros, ignorando esta obrigação, me acolhestes e obsequiastes; e razão é que eu vos agradeça quanto posso a vossa boa vontade".

Após este discurso o narrador complementa que a prática do Quixote demorou mais tempo do que  todo o tempo da ceia. Belos tempos, realmente. E se compararmos com os tempos de hoje? Possivelmente, a dependermos dos defensores do "Escola sem partido", nem mesmo a leitura deste discurso poderia ser feita. Ele poderia ser considerado como uma perigosa doutrinação ideológica e os seus leitores condenados a multas ou cadeia. Só com muita ironia, uma das grandes qualidades de Cervantes.




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