quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Um escravo chamado Cervantes. Fernando Arrabal.

Em 2012 eu li a biografia de Cervantes escrita por alguém também famoso. Trata-se do dramaturgo, escritor e cineasta espanhol, Fernando Arrabal. A biografia tem como título Um escravo chamado Cervantes e por subtítulo - Um retrato do criador de Dom Quixote. Agora, após a leitura do Dom Quixote, a retomei. É uma obra extremamente agradável de ser lida. Foi escrita por um apaixonado pelo biografado e com muitas doses de um refinado humor. Com certeza, o apreciei mais desta vez.
Uma biografia escrita por um apaixonado por Cervantes.


Cervantes (1547 - 1616) viveu em meio a atribulações e agitações e, porque não dizer, também em meio a muitas loucuras. Lucidez também. Cervantes nunca conheceu monotonia. Pertenceu a uma família de judeus, fato que tinha que ser escondido, e economicamente estavam bem, até chegar a seu pai, um decadente, titubeante e meio surdo cirurgião barbeiro. Nasceu e foi batizado em Alcalá, mas andou pelas principais cidades espanholas, até que, aos 21 anos fugiu de uma condenação que lhe fora aplicada pelo rei.

O grande mote da biografia de Arrabal é exatamente este, o motivo da condenação de Cervantes, narrada já quase ao final do livro. Ele tinha cometido o "pecado nefando", o que lhe deveria render uma mão decepada, exatamente a mão direita de escritor, como condenação. Para se livrar da pena, foge primeiramente para Sevilha e depois, de Sevilha para Roma, onde se inscreve nas forças papais, que junto com a Espanha e Veneza se preparam para enfrentar os turcos na batalha de Lepanto (1571).
A partir da criação destes personagens, uma das mais famosas duplas da literatura universal.

A biografia escrita por Arrabal tem muitos méritos. Como biografia, é óbvio, que ela está centrada em Cervantes, mas a contextualização da Espanha da época do grande escritor, para mim foi o seu ponto máximo. O que era viver na Espanha nos séculos XVI e XVII!? Vamos apenas recordar que em 1492 a Espanha dá cabo a expulsão dos árabes em Granada, o seu último reduto e, no mesmo ano, Colombo realiza o feito da descoberta da América. Sevilha é, na época, uma espécie de capital do mundo. Lembrando ainda que os árabes permaneceram na península ibérica ao longo de mais de setecentos anos. É evidente que, ao longo destes anos, houve uma grande miscigenação e sincretismo.

No tempo em que Cervantes esteve em Roma, lá se dizia que na Espanha não havia cristãos, apenas cristãos adaptados "Giudei, marrani, hispani". Os problemas étnicos eram antigos. No ano de 1547 é editado o estatuto de limpeza étnica, mas este ato tem origem em conflitos antigos. Em Sevilha, conhecida como a capital de três religiões, em 1391, o tataravô de Miguel assistiu uma espécie de avant première de Auschwitz, com a execução de mais de quatro mil judeus. Arrabal nos conta também que Vicente Ferrer foi uma espécie de precursor do nazismo, sinalizando os judeus, matando a muitos e batizando cerca de trinta e cinco mil ao longo de vinte e cinco anos. Pela sua defesa do cristianismo o "Anjo do apocalipse" foi proclamado santo.

Os tempos de Cervantes não eram tempos fáceis. Tempos de forte intolerância religiosa, tempos de absolutismo governamental, tempo dos Felipes, tempos de grandeza e tempos de decadência. Tempos de Torquemada e tempos da derrotada Invencível Armada. Tudo isso viveu Cervantes. Para Cervantes também foram os tempos do surgimento da universidade de Alcalá, em competição com Salamanca. Aristóteles estava se afirmando.
Cervantes junto com os seus famosos personagens.

O que falar da família de Cervantes? A figura das mulheres era muito forte e a dos homens, que praticamente se resumia ao pai, era uma figura frágil. Sua irmã Andreia deveria ser extremamente sedutora e bela. Amealhou muito dinheiro, que, como chegava de forma fácil, se esvaía ainda mais facilmente. Ela sempre esteve envolvida com homens e deles conseguia o sustento de todos. Quando foram morar em Madri, transformaram a parte mais nobre da casa em hospedaria. Nela Andreia recebeu ricos clientes italianos.

Em meio a todas estas histórias, você faz uma verdadeira viagem a Espanha. Vai conhecendo as suas relações internacionais e as complicadas alianças de uma Europa conflitada pelo cisma da cristandade e sob o chicote da reação tridentina. Tudo isso você vai usufruindo com a leitura agradável dos 47 curtos capítulos do livro, até chegar por onde começamos. A fuga de Miguel para Roma, onde foi camareiro do cardeal Aquaviva e, possivelmente, algo mais com a volta da prática do "pecado nefando" com o cardeal. Desgostoso com o cardeal faz a sua inscrição no exército para combater os turcos na batalha de Lepanto. Na volta é sequestrado pelos turcos e  permanece em Argel, na qualidade de escravo, até ser resgatado pela ação de seus familiares.

Arrabal ainda conta que Cervantes começou a escrever o Dom Quixote na prisão, em Sevilha, já com 55 anos e nas condições mais adversas imagináveis. Neste ponto ele encerra a biografia, que bem merecia um segundo volume, a exemplo do próprio Dom Quixote. Mas complementando, Dom Quixote apareceu em 1605, o primeiro volume e, em 1615 o segundo. Um ano após, em 1616, aos 68 anos morre o escritor. Da minha parte me dou como satisfeito com relação a Cervantes e ao seu Dom Quixote. Sinto falta, no entanto, de uma biografia tipo ensaio para responder a pergunta cuja resposta ainda não encontrei. Por que Cervantes escreveu o Dom Quixote? Quais foram as verdadeiras razões que o levaram a tal? Por enquanto, tenho apenas pequenas frações da resposta.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo comentário. Depois de moderado ele será liberado.