Depois de uma incursão na literatura universal, Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, marcou a minha volta à literatura brasileira. A edição lida é da Penguin & Companhia das Letras, com um belo prefácio de Ruy Castro. Ao final aparece ainda uma cronologia da vida e obra do autor.
Memórias de um sargento de milícias. Edição da Penguin&Companhias das Letras.
Memórias de um sargento de milícias. Edição da Penguin&Companhias das Letras.
Manuel Antônio de Almeida teve uma vida muito curta, fato que o impediu de ter uma vasta obra literária. Creio que podemos afirmar, sem medo de errar, que o escritor escreveu por necessidade. Ele precisava de sustento material, depois de precoce orfandade. Sua iniciação se deu pelo jornalismo. Nasceu no Rio de Janeiro, em 1831 e morreu, por afogamento, em naufrágio numa viagem do Rio de Janeiro para a cidade de Campos, em 1861, com apenas 30 anos.
O livro foi escrito sob a forma de folhetim ao longo do ano de 1854 e, em livro, ainda em 1854 o seu primeiro volume e, no ano seguinte, o seu segundo volume. Apesar de forte apelo de que a edição estava se esgotando rapidamente, ela encalhou quase que por inteiro. Uma segunda edição apareceu apenas após a sua morte. Posteriormente foi juntada em um único volume. O autor foi um dos pioneiros tanto no jornalismo, quanto na literatura. Por sua mão é que Machado de Assis chegou ao jornalismo.
O que esperar de um escritor que escreve o seu romance aos 20 anos de idade? Faço esta pergunta não para lhe tirar os méritos mas, ao contrário, para afirmá-los. Manuel Antônio é um precursor, como veremos. Eu particularmente fiquei impressionado com a qualidade do narrador. Lembrando que a obra apareceu sob a forma de folhetim. Certamente é por isso que ela está dividida em pequenos capítulos, 48 no total. O narrador é um guia seguro que não te deixa em dúvida sobre as ações e intenções dos principais personagens.
Na época prevalecia a escola romântica, mas ele já é visto como um precursor do naturalismo, do romance de costumes, do romance de malandro. Leonardo, o sargento de milícias, é apontado como uma espécie de primeiro Macunaíma. Isso é falado com a autoridade qualificada de um Antônio Cândido. Ruy Castro aponta para o emprego pioneiro da palavra bossa. Isso mereceu destaque na contra capa da edição da Penguin & Companhia das Letras. "O menino tinha a bossa da desenvoltura, e isto, junto com as vontades que lhe fazia o padrinho, dava em resultado a mais refinada má-criação que se pode imaginar". Conseguiu enxergar também o pré Macunaíma, na citação?
Dados biográficos do escritor.
Dados biográficos do escritor.
Na citação já encontramos dois dos principais personagens. O menino e o seu padrinho. Mas a história começa com o pai do menino, também Leonardo, Leonardo pataca ou ainda Leonardo patacão e com Maria da hortaliça. Eles se encontraram no navio que os trazia para o Rio de Janeiro, vindos de Portugal, e, em função de uma pisadela e um beliscão ao longo da viagem, nascerá o menino Leonardo, que se transformará no sargento de milícias da história. Isso "era no tempo do rei", a famosa primeira frase do romance. Esse dado nos ajuda a contextualizar o tempo e o espaço de seus personagens.
Maria não era muito afeita a questões de fidelidade e sentiu saudades de sua terra, voltando a ela. Leonardo fica entregue aos cuidados do padrinho, barbeiro por profissão, que muito se afeiçoa ao menino, que desde pequeno já carregava o demo no corpo. Essa era a opinião generalizada da vizinhança. Naquele tempo os barbeiros também eram cirurgiões, responsáveis pelas sangrias. Um entre parêntesis. O pai de Cervantes também fora cirurgião barbeiro. Numa viagem de navio o seu capitão morre após a aplicação de sangrias, mas não antes de lhe confiar o tesouro de moedas que consigo carregava.
Boa parte do livro está reservado às travessuras de Leonardo, que contava com a cumplicidade de seu padrinho, aquele que lhe deu a "má criação", e também de sua madrinha, que fizera o seu parto. Travessuras do pai, e depois também do filho, envolvem um outro personagem na história. Um personagem bem pitoresco do Rio de Janeiro imperial, o major Vidigal. Ele era a autoridade. Ele será o responsável pelos 'curativos' em Leonardo, mas que também será o seu grande protetor, em função de um outro acontecimento, em que entra na história uma tal de Maria Regalada.
Entre as travessuras do menino também figuravam os namoricos e as suas implicações. Ao final as histórias vão se fechando. Leonardo casará, em função de uma série de conveniências, com Luisinha, a sua primeira namorada, agora já viúva. Mas havia um impedimento. Leonardo se tornara um granadeiro da polícia, pela mão de Vidigal, mas a sua função como soldado na tropa de linha o impedia de casar. Nada que Vidigal, em função de reatamento amoroso antigo, com a tal da regalada, não conseguisse resolver. Assim, "podia ficar ele (Leonardo) sendo soldado e casar, dando baixa na tropa de linha, e passando-se no mesmo posto para as milícias". Eis o Sargento de milícias, cujas memórias são contadas neste belo livro.
Eita brasilzão! Mas isso "era no tempo do rei". Que venha Macunaíma, o heroi sem nenhum caráter.
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