terça-feira, 20 de dezembro de 2016

O amanuense Belmiro. Cyro dos Anjos.

Cheguei a este livro através de O Velho Graça - uma biografia de Graciliano Ramos, de autoria de Dênis de Moraes. A certa altura do livro ele relata o caso em que a revista Acadêmica solicitou do biografado a indicação dos dez melhores romances brasileiros. Este fato se deu no ano de 1938. Um dos romances indicados foi precisamente, O amanuense Belmiro, do escritor mineiro Cyro dos Anjos. 
Edição de O amanuense Belmiro, comemorativa do centenário de nascimento de Cyro dos Anjos.


Cyro nasceu na cidade de Montes Claros em 1906, formou-se em direito e ao longo de sua vida sempre esteve envolvido com o serviço público e com a imprensa, vivendo em Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Brasília, como também em Lisboa e no México. Morreu no Rio de Janeiro em 1994, vivendo assim, mais de setenta anos, que profetizara ao final de O amanuense Belmiro. O romance foi escrito em 1937 e tem como cenário o escritório de Fomento Animal da Secretaria da Agricultura, da cidade de Belo Horizonte, onde o amanuense trabalhava.

A narrativa do romance se dá entre o carnaval de 1935, ultrapassando um pouco o do ano seguinte. O amanuense, isto é, aquele que escreve textos a mão, copista ou simplesmente secretário, tem muito tempo ocioso, tendo em consequência, muito tempo para pensar. O seu mundo se resume à casa, que divide com as irmãs, Francisquinha e Emília, ambas muito problemáticas, com um e outro vizinho e os colegas de repartição. Alcir Pécora, no posfácio do livro, estabelece uma relação com Bernardo Soares do Livro do desassossego, ou seja, com a função burocrática exercida por Fernando Pessoa em Lisboa.

O livro tem uma estrutura extremamente complexa e, de imediato, se percebe a extrema erudição do narrador que é o personagem central do livro. Alcir Pécora, em seu posfácio, desvenda essa estrutura de antinomias e procura qualificar o livro entre um simples diário, um livro de memórias e um romance, para concluir que ele é os três. Os três grandes focos narrativos são um amor pouco cultivado por Camila, na infância, que transcende para Carmela no tempo em que o livro foi escrito, amor que nunca se concretiza em função da pouca vontade que Belmiro tem como alguém sedutor, que se lança na busca da conquista. O outro foco se dá nos diálogos mantidos com os colegas do escritório, especialmente com Silviano, o filósofo nietzschiano, que se afirma católico por ser este o meio mais fácil de viver, por renunciar ao próprio viver. Aí está a antinomia. E o terceiro foco está na crise existencial que é uma constante ao longo de todos os escritos.

Destaco algumas passagens do livro, que é o seu próprio viver. "Este caderno, onde alinho episódios, impressões, sentimentos e vagas ideias, tornou-se a minha própria vida, tanto se acha embebido de tudo o que de mim provém e constitui a parte mais íntima de minha substância". Outra passagem em que se autodenomina como o Donzel da rua Erê, o seu endereço, e que silencia sobre a moça, Carmela, já envolvida com outro e se conformando com grande resignação: "Pelo sim, pelo não, melhor será não sabotar o Belmiro flautista. Deixá-lo esparramar-se no papel, reduzi-lo a coisa escrita é o meio mais eficaz de liquidá-lo e, com ele, a donzela. Esta literatura íntima é a minha salvação". Como percebem a psicanálise também está presente.

Na contracapa do livro tem uma bela explanação sobre a qualidade do romance. "A receita de tal sucesso não é nem um pouco simples, ainda que aparentemente o pareça: um homem comum, funcionário público, narra em um diário seu pequeno cotidiano tentando encontrar algum significado para a sua vida. E mesmo pouco encontrando, consegue não se desesperar porque tem dois triunfos consigo: a saída pela ironia, que mitiga a falta de nexo da realidade, e, para além da ironia, o reencantamento do mundo que a poesia pode oferecer aos homens".

A orelha do livro, escrita por Ronald Polito também é linda. Começa assim: "Que o leitor se prepare, pois está diante de uma obra-prima de nossa literatura, daquelas que convidam a ser relidas em profundidade sobre a condição humana. A partir da vida de um pequeno homem (portanto de todo mundo), que registra pouco mais de um ano de seu cotidiano, vamos sendo confrontados com delicadas situações de toda ordem que, na aparência insignificantes, tornam-se decisivas para os destinos do narrador e dos envolvidos".

Eu também gostei muito do personagem chamado Redelvim, que era um comunista mais introspectivo do que ativista, passou por grandes dificuldades com a Intentona Comunista. Lembrem-se que o ano descrito é o de 1935. Outro grande personagem é Jandira, por todos desejada mas que não se afeiçoava a ninguém. Por sua vez a Carmélia idealizada é a própria Dulcineia do Cavaleiro da Triste Figura.

Pois é. Entre antinomias e aporias você está efetivamente diante de uma grande romance. Seus personagens expressam a condição humana, a matéria prima de todos os grandes romances. Belmiro e os outros são seres humanos, atemporais e universais. Graciliano Ramos, ao indicar este livro entre os melhores romances brasileiros, o fez porque sabia das coisas. Outra coisa interessante. A presença de muitos chopes. "O Florêncio nos espera no local de costume, para o chope do costume. O chope é uma solução, pelo menos por algumas horas". Como não gostar de um livro desses!

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