terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Menino de engenho. José Lins do Rego.

Este livro, Menino de engenho, estava na lista faz um bom tempo. Este é um dos raros livros que eu posso dizer que eu já tinha lido.  Há tempos, para não passar vergonha, eu aprendi um truque. Quando se fala de livros, nunca diga: este livro eu não li. Sempre diga: este eu preciso reler ou faz muito tempo que o li e não me lembro de quase nada. De fato, deste eu lembro muito pouco, apenas das sacanagens de uma sexualidade precoce. A leitura não fez parte da minha formação de seminário. A gente não precisava saber destas coisas, nos diziam.
Bela edição da José Olympio.

Mas vamos ao Menino de engenho. E, como de hábito, vamos situar e datar José Lins do Rego, o seu autor. Ele nasceu num engenho, na cidade de Pilar, no interior da Paraíba no ano de 1901. Ainda no ano de seu nascimento se tornou órfão de mãe. Esta, em sua doença e antevendo a morte, pedia a familiares para que o filho não fosse educado pelo pai. E, de fato, a sua educação foi confiada ao avô. Conheceu assim o mundo patriarcal dos engenhos.

José Lins do Rego é acima de tudo um memorialista. Precisão em recordar e descrever fatos, recheando-os com a imaginação. Assim são os seus romances. Menino de Engenho, seu romance de estreia, foi escrito em 1932. Para situá-lo melhor, o seu amigo Gilberto Freyre lançará o Casa-Grande & Senzala em 1933. São retratos do nordeste. São retratos do Brasil.

José Lins do Rego nos apresenta um nordeste rural vivendo uma grande fase de transição, a passagem do mundo dos vários engenhos e de seus grandes senhores para o mundo das poucas usinas e de seus poderosos usineiros. Uma transfiguração que é vista pelos olhos extremamente atentos do escritor. Este será o tema que o consagrará, com uma série de livros, que culminarão com Fogo Morto, livro de sua consagração, escrito em 1943, mas já presente em Menino de Engenho.

Como já o qualificamos como um memorialista, podemos afirmar que o romance é autobiográfico. A orfandade do menino se dá com o assassinato da mãe pelo seu pai e ele passa a ser educado pelo avô. O moleque é criado solto no meio do engenho, entre as moendas, os canaviais e trabalhadores, muitos deles ex escravos, que não quiseram trocar de vida. Ficaram satisfeitos com o fim dos castigos físicos. As suas memórias retrocedem até a sua idade de quatro anos. Lembra de sinhazinha, a má e o terror de todos e as histórias de Totonha, que exerceu uma forte presença em sua vida.


O atento menino observa os costumes do engenho. O mandonismo do avô, o recato das mulheres, o comportamento sexual das negras, com quem se iniciou nos prazeres e nas doenças do sexo, da observação do sexo entre os animais e também com eles, os desmandos e o desejo de vingança contra Sinhazinha, as visitas aos parentes de outras fazendas, a vinda dos meninos da cidade e o seu crescimento em meio aos moleques, sem muita preocupação com a sua educação.

As memórias se estendem até os seus doze anos, quando ele é mandado para o colégio em Recife. O colégio conserta tudo, pensavam no Engenho. Mas o momento alto do livro são os momentos de solidão vividos. Aí marcava os encontros consigo mesmo e lhe surgiam as primeiras pontadas de uma angústia existencial. Não foi educado nos princípios da religião e nem no temor de Deus. Quem o matava de medo era o Lobisomem. Os dois últimos capítulos são um extravasar de suas angústias. Deixo aqui registrada, como uma das partes mais marcantes do livro, a sua ida ao colégio.
José Lins do Rego(1901-1957).  Menino de Engenho foi escrito em 1932.


"Em junho iria para o colégio. Estava marcado o dia da minha partida.
- Lá ele endireita.
Recorriam ao colégio como uma casa de correção. Abandonavam-se em desleixos para com os filhos, pensando corrigi-los no castigo dos internatos. E não se importavam com a infância, os anos mais perigosos da vida. Em junho estaria no meu sanatório (Seu pai morrera no sanatório). Ia entregar aos padres e aos mestres uma alma onde a luxúria cavara galerias perigosas. Perdera a inocência, perdera a grande felicidade de olhar o mundo como um brinquedo maior que os outros. Olhava o mundo através dos meus desejos e da minha carne. Tinha sentidos que desejavam as botas do polegar para as suas viagens".

Na partida, recebe o último conselho do avô: "Não vá perder o seu tempo. Estude, que não se arrepende". E aí seguem as reflexões finais: "Eu não sabia nada. Levava para o colégio um corpo sacudido pelas paixões de homem feito e uma alma mais velha do que o meu corpo. Aquele Sérgio, de Raul Pompeia, entrava no internato de cabelos grandes e com uma alma de anjo cheirando a virgindade. Eu não: era sabendo de tudo, era adiantado nos anos, que ia atravessar as portas do meu colégio.
Menino perdido, menino de engenho".

O livro que eu li foi o da José Olympio Editora. Um primor. Tem três apresentações, sendo uma de Rachel de Queiroz para a edição de quarenta anos do livro. Ao final tem glossário, dados bibliográficos e biografia do autor. São ainda traçadas algumas característica do escritor, além de um panorama da época. Duas coisas interessantes. Quando foi morar no Rio de Janeiro passou a ser amigo, mas amigo mesmo, de Graciliano Ramos e foi torcedor fanático do Flamengo, chegando inclusive, a ocupar cargos na direção do clube. 

Tem mais. A continuidade virá com as narrativas posteriores aos 12 anos. Não será mais o menino de engenho, mas Doidinho. 

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