quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Santa Evita. Tomás Eloy Martínez.

Aproveitando um tempo livre, empreendi uma viagem. Como não conhecia Santiago, aproveitei para marcar duas cidades. Além de Santiago, incluiria também Buenos Aires, que eu conhecia de uma viagem em meados anos de 1980. Era moda e muito barato ir a Buenos Aires. Na época a guerra das Malvinas ocupava o foco dos noticiários. Já naquele tempo a história de Evita me chamou atenção, especialmente, pelas recomendações que recebia para visitar seu túmulo no cemitério da Recoleta, o que eu não fiz na época.
O jazigo da família Duarte no cemitério de la Recoleta.

Evita também me remete aos tempos de minha infância, por uma vaga lembrança, da qual desconheço as origens, mas como eu estava no seminário, a única fonte só poderia ser a dos padres. Falar de Evita remetia a um escândalo sem tamanho. O presidente da Argentina era casado com uma biscate, com uma artista. Os dois termos praticamente se equivaliam à época. Agora, lendo Santa Evita, de Tomás Eloy Martínez e postando uma frase do livro no facebook, de imediato ganhei uma resposta à postagem. El biscatón. Assim se referia a Evita um certo senhor. Certamente este deve ter sido um conceito muito cultivado pelos muitos inimigos que Evita teve, especialmente, nos círculos militares, que depuseram o governo de Perón, em 1955, três anos após a sua morte.

Nesta viagem, a visita à Recoleta estava entre as prioridades. Eu estava hospedado na Rua Marcelo T. Alvear e no city tour fiquei bem atento aos lugares por onde passamos. Buenos Aires é uma cidade com grandes marcos que ajudam muito na orientação. Estes marcos são referenciais. A minha rua cruzava com a avenida mais larga do mundo, a 9 de julho, e por ela segui em direção ao cemitério, tendo como guia apenas um mapa. Não precisei nem pedir informações. Cheguei bastante cedo e ainda não havia muita gente. O túmulo é bastante simples, não condizendo com toda a fama que tem. Na volta, de novo pela 9 de julho, bem para frente, outra presença de Evita na cidade. No Ministério da Ação Social, está ela falando com o povo, assim como o fazia de uma janela da Casa Rosada.
Evita discursando para os grasitas ou descamisados. Cena comum em uma das janelas da Casa Rosada.


Já de volta, tomei a decisão de ver uma boa biografia de Evita. Parei na primeira que o Google me indicou. Santa Evita, de Tomás Eloy Martínez. Este autor tem muitos créditos comigo, pelos seus Cantor de Tango e O vôo da Rainha, da coleção Plenos Pecados, em que fala sobre o pecado capital da soberba. Santa Evita é um romance biográfico. Realidade e ficção se encontram ao longo de todo o livro. Mas a parte biográfica é muito boa, fruto de muita pesquisa e entrevistas com pessoas que efetivamente tinham o que dizer. Tomás Eloy também é biógrafo do presidente Perón.

Evita teve uma vida muito curta e cheia de sofrimentos, desde a infância, como filha ilegítima, que não mediu esforços para ser artista. Nasceu em Los Toldos (1919) e com apenas 15 anos vai à capital em busca do sonho de ser atriz. Se envolveu com artistas já consagrados e com empresários, donde lhe veio a fama a que nos referimos no início e que foi, obviamente, explorada à exaustão pelos muitos inimigos. Circulou até um livrinho sob o título El Kamasutra pampeano. Num movimento em favor de vítimas de um terremoto da cidade de San Juan, conheceu o presidente da República, Juan Domingo Perón. Isso foi no ano de 1944. Pouco depois estavam casados. No poder, teve ascensão meteórica, se transformando no mito consagrado que foi. Seu cabeleireiro lhe clareou o cabelo e fez o coque que marcou a imagem que percorreu o mundo. Tudo isso está contado em amplos detalhes.

Evita viajou o mundo e se entregou a uma vida luxuosa e, na qualidade de primeira dama, se transformou na "chefe espiritual da nação", tendo a sua imagem associada à bondade e à generosidade. O povo a queria na vice presidência da República, mas Perón resistia. Foi acometida de câncer e teve morte em questão de pouco tempo, em 1952. Aí começa efetivamente o romance. O corpo foi embalsamado, num caro trabalho de rara perfeição. Em 1955 ocorre um golpe de Estado por parte dos militares, que tramavam contra Perón praticamente ao longo de todo o seu governo. O ódio destes militares, que resistiam obedecer a uma mulher, pode ser traduzido por uma frase inscrita nos muro na cidade "Viva o Câncer". Militares e trabalhadores começam a disputa pelo cadáver.
Santa Evita o belo romance biografia de Tomás Eloy Martínez.


Transcrevo a contra capa do livro para situar o romance: "Quando Eva morreu, em 1952, seu marido, o general Juan Domingo Perón, ordenou que seu corpo fosse embalsamado e exposto à nação argentina numa redoma de vidro. Três anos depois, quando o ditador caiu, o cadáver de Evita tornou-se um fardo pesado demais para qualquer regime.
Assim teve início uma das mais insólitas peregrinações de que se tem notícia. Sequestrado pelo Serviço de Inteligência do Exército (Haja inteligência!), o cadáver vagou semanas pelas ruas de Buenos Aires, estacionou durante meses nos fundos de um cinema, prestou-se a todo o tipo de paixões no sótão da casa de um capitão desmiolado até reaparecer, dezesseis anos mais tarde no velho continente".

Os grandes personagens do livro são Evita, obviamente, a sua mãe, presente ao longo de todo o livro, o coronel Moori Koenig (rei do lamaçal) o comandante do Serviço de informações, encarregado de cuidar do cadáver e o louco capitão necrófilo, que auxilia o coronel em seu insano trabalho. A descrição destes personagens também é muito interessante. O livro foi apresentado ao público argentino em 1995, ganhando edição brasileira já no ano de 1996, com tradução de Sérgio Molina. Tem 338 páginas divididas ao longo de 16 capítulos. O escritor também foi uma das grandes vítimas da violenta ditadura militar dos anos 1970.

4 comentários:

  1. Grande livro, Pedro. Gostei muito de traduzi-lo.
    Parabéns pelo post e pelo blog: vida e leituras narradas num estilo muito especial. Você acaba de conquistar mais um leitor.

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  2. Sérgio Molina, que satisfação. Deve ter sido um prazer enorme ter traduzido este livro. Agradeço muito a gentileza do seu comentário.

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    1. Foi, sim, Pedro. Depois traduzi mais alguns livros do Tomás ("La novela de Perón", "El vuelo de la reina", "El cantor de tango" e "La mano del amo"), mas "Santa Evita foi sem dúvida o que mais me marcou. Tive também o prazer de conhecer o autor e travar amizade com ele. Uma grande figura. Um de seus filhos criou a Fundación Tomás Eloy Martínez (fundaciontem.org), você conhece? Grande abraço!

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  3. Que maravilha. Não conheço a Fundação. Vou verificar. Quanto ao Tomás Eloy, alimento duas concepções a respeito dele: grande escritor e grande ser humano. E a você, Sérgio, mil êxitos nesta sua bela carreira de tradutor de grandes obras. Abraço.

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