terça-feira, 17 de julho de 2018

Nietzsche. O Dionisíaco e o socrático.

Este texto tem por finalidade atender ao grupo de leituras "Formação do Pensamento Ocidental". Visa dar referências para facilitar a leitura de O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo, onde está a grande crítica de Nietzsche ao mundo orientado pela racionalidade. O texto é retirado de Nietzsche - Obras incompletas da Nova Cultural, de sua introdução, numa edição de 1999.
Uma bela edição de O Nascimento da Tragédia.

O Dionisíaco e o socrático: Nietzsche enriqueceu a filosofia moderna com meios de expressão: o aforismo e o poema. Isso trouxe como consequência uma nova concepção de filosofia e do filósofo: Não se trata mais de procurar o ideal de um conhecimento verdadeiro, mas sim de interpretar e avaliar. A interpretação procuraria fixar o sentido de um fenômeno, sempre parcial e fragmentário; a avaliação tentaria determinar o valor hierárquico desses sentidos, totalizando os fragmentos, sem, no entanto, atenuar ou suprimir a pluralidade. Assim o aforismo nietzschiano é, simultaneamente, a arte de interpretar e a coisa a ser interpretada, e o poema constitui a arte de avaliar e a própria coisa a ser avaliada. O intérprete seria uma espécie de fisiologista e de médico, aquele que considera os fenômenos como sintomas e fala por aforismos; o avaliador seria o artista que considera e cria perspectivas, falando pelo poema. Reunindo as duas capacidades, o filósofo do futuro deveria ser artista e médico-legislador, ao mesmo tempo.

Para Nietzsche, um tipo de filósofo encontra-se entre os pré-socráticos, nos quais existe unidade entre o pensamento e a vida, esta "estimulando" o pensamento, e o pensamento "afirmando" a vida. Mas o desenvolvimento da filosofia teria trazido consigo a progressiva degeneração dessa característica, e, em lugar de um pensamento afirmativo, a filosofia ter-se-ia proposto como tarefa "julgar a vida", opondo a ela valores pretensamente superiores, medindo-a por eles, impondo-lhes limites, condenando-a. Em lugar de filósofo-legislador, isto é, crítico de todos os valores estabelecidos e criador de novos, surgiu o filósofo metafísico. Essa degeneração, afirma Nietzsche, apareceu claramente com Sócrates, quando se estabeleceu a distinção entre dois mundos, pela oposição entre essencial e aparente, verdadeiro e falso, inteligível e sensível. Sócrates "inventou" a metafísica, diz Nietzsche, fazendo da vida aquilo que deve ser julgado, medido, limitado, em nome de valores "superiores" como o Divino, o Verdadeiro, o Belo, o bem. Com Sócrates, teria surgido um tipo de filósofo voluntário e sutilmente "submisso", inaugurando a época da razão e do homem teórico, que se opôs ao sentido místico de toda a tradição da época da tragédia.

Para Nietzsche, a grande tragédia grega apresenta como característica o saber místico da unidade da vida e da morte e, nesse sentido, constitui uma "chave" que abre o caminho essencial do mundo. Mas Sócrates interpretou a arte trágica como algo irracional, algo que apresenta efeitos sem causas e causas sem efeitos, tudo de maneira tão confusa que deveria ser ignorada. Por isso Sócrates colocou a tragédia na categoria das artes aduladoras que representam o agradável e não o útil e pedia a seus discípulos que se abstivessem dessas emoções "indignas de filósofos". Segundo Sócrates, a arte da tragédia desvia o homem do caminho da verdade: "uma obra só é bela se obedecer à razão", fórmula que, segundo Nietzsche corresponde ao aforismo "só o homem que conhece o bem é virtuoso". Esse bem ideal concebido por Sócrates existiria em um mundo supra-sensível, no "verdadeiro-mundo", inacessível ao conhecimento dos sentidos, os quais só revelariam o aparente e irreal. Com tal concepção criou-se, segundo Nietzsche, uma verdadeira oposição dialética entre Sócrates e Dionísio: "enquanto em todos os homens produtivos o instinto é uma força afirmativa e criadora, e a consciência uma força crítica e negativa, em Sócrates o instinto torna-se crítico e a consciência criadora". Assim, Sócrates, o "homem teórico", foi o único verdadeiro contrário do homem trágico e com ele teve início uma verdadeira mutação no entendimento do Ser. Com ele, o homem se afastou cada vez mais desse conhecimento, na medida em que abandonou o fenômeno do trágico, verdadeira natureza da realidade, segundo Nietzsche. Perdendo-se a sabedoria instintiva da arte trágica, restou a Sócrates apenas um aspecto da vida do espírito, o aspecto lógico-racional; faltou-lhe a visão mística, possuído que foi pelo instinto irrefreado de tudo transformar em pensamento abstrato, lógico, racional. Penetrar a própria razão das coisas, distinguindo o verdadeiro do aparente e do erro era, para Sócrates, a única atividade digna do homem. Para Nietzsche, porém, esse tipo de conhecimento não tarda a encontrar seus limites: "esta sublime ilusão metafísica de um pensamento puramente racional associa-se ao conhecimento como um instinto e o conduz incessantemente a seus limites onde este se transforma em arte".

Por essa razão, Nietzsche combateu a metafísica, retirando do mundo supra-sensível todo e qualquer valor eficiente, e entendendo as ideias não mais como "verdades" ou "falsidades", mas como "sinais". A única existência, para Nietzsche, é a aparência e seu reverso não é mais o Ser; o homem está destinado à multiplicidade, e a única coisa permitida é a sua interpretação (Página 9-10).

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"As duas decisivas novidades do livro são, primeiro, a compreensão do fenômeno dionisíaco nos gregos - oferece a primeira psicologia dele, enxerga nele a raiz de toda a arte grega. Segundo, a compreensão do socratismo: Sócrates pela primeira vez reconhecido como instrumento da dissolução grega, como típico decadente. 'Racionalidade' contra instinto. A 'racionalidade' a todo preço como força perigosa, solapadora da vida! - Profundo e hostil silêncio sobre o cristianismo em todo o livro. Ele não é apolíneo nem dionisíaco; nega todos os valores estéticos - os únicos valores que o Nascimento da tragédia reconhece". Nietzsche em Ecce Homo.
Textos básicos, uma bela seleção de Danilo Marcondes.


Friedrich Nietzsche (1844 - 1900) foi um dos filósofos mais críticos da tradição filosófica racionalista e iluminista, sendo que sua crítica está na raiz do que podemos chamar de "crise da modernidade", tendo influenciado filósofos contemporâneos como Heidegger, Foucault e outros.  Nascido em Roecken, na Prússia, Nietzsche estudou em Bonn e em Leipzig, tornando-se professor de filologia clássica na Universidade de Basileia, na Suíça, em 1869. Sua primeira obra importante foi O nascimento da tragédia (1871), em que dá início à reinterpretação da filosofia grega em suas origens, considerando-a como ponto de partida do racionalismo que viria a dominar toda a tradição filosófica. Influenciado por Schopenhauer e amigo do compositor Richard Wagner, com quem depois rompeu, Nietzsche formulou uma filosofia que busca ser "afirmativa da vida" e valoriza a vontade. Crítico da moral cristã, em Além do Bem e do Mal (1886) e na Genealogia da Moral (1837) faz uma análise devastadora da moral tradicional que considera  baseada na culpa e no ressentimento.

Nietzsche escreveu frequentemente sob a forma de aforismos e seu estilo poético e fragmentário é parte de sua concepção filosófica antiteórica e assistemática, buscando criar um novo filosofar de caráter libertário e visando superar as formas limitadoras da tradição".  MARCONDES,  Danilo. Textos Básicos de Filosofia. Rio de Janeiro, Zahar, 2000. Página 139.

2 comentários:

  1. Obrigada por manter este blog, professor! É como revisitar uma aula sua e renovar o conhecimento.

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  2. Obrigado Giórgia. O seu comentário me anima a sempre continuar lendo, escrevendo e compartilhando.

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