A ditadura acabada. Elio Gaspari.
cultura, política e viagens __________________________________________________________________ "A mente que se abre a uma nova idéia jamais volta ao seu tamanho original" Albert Einstein
segunda-feira, 31 de março de 2025
A DITADURA DE 1964. OS CINCO VOLUMES DO ELIO GASPARI.
A ditadura acabada. Elio Gaspari.
sexta-feira, 28 de março de 2025
O Ingênuo. Voltaire. 1767.
Depois de Cândido, mais Voltaire. Outro de seus contos filosóficos. O Ingênuo - História verdadeira, tirada dos manuscritos do padre Quesnel. Como Voltaire gostava de ocultar a sua autoria! O conto tem certas semelhanças com Cândido. O tema é uma análise do mundo e de todos os males que ele contém. Agora a interlocução não será com Pangloss (Leibniz) mas com o Ingênuo, ou com Hércules Ingênuo, depois de seu batizado. Ingênuo é um nativo americano, um índio hurão. Um ser muito próximo de um ser natural, não corrompido e estranho aos costumes da civilizada França. Percebem a presença de Rousseau.
Contos. Voltaire. 1972. Páginas 297 -359. Tradução: Mário Quintana.Diferente do ocorrido em Cândido, quando os principais personagens conhecem o mundo através de viagens, pelas quais entram em contato com diferentes realidades, em O Ingênuo, será este "selvagem" que entrará em contato com a "civilização" e mostrar todo o seu inconformismo com os hábitos, costumes e instituições, que são para ele, estranhas e absurdas. Percebeu grandes diferenças entre os ingleses e os franceses. Ele se familiarizara mais com a Inglaterra (Voltaire era grande admirador da Inglaterra). Mas, como era ingênuo, os franceses facilmente o convenceram a combater ao lado dos franceses contra os ingleses.
O Ingênuo chega às costas da França, no Priorado da Montanha, priorado fundado por Irlandeses. Outros irlandeses tinham vindo para a América do Norte. Já nas primeiras conversas, por um talismã que Ingênuo trazia, se descobrem parentes. Estes parentes lhe dão boa acolhida e Ingênuo logo se encanta pela bela jovem, St. Yves. Imediatamente quer com ela se casar, mas os costumes eram bem outros. St. Yves também tinha outros pretendentes. Seus parentes o fazem aceitar os costumes da terra e o primeiro passo para isso foi o seu batizado. Daí por diante será Hércules Ingênuo. Falaram-lhe dos feitos de Hércules, ocultando porém, que o herói transformara, numa única noite, cinquenta donzelas em mulheres. O fazem ler a Bíblia.
Como se destacara na guerra contra os ingleses, lhe recomendam apresentar-se ao rei. A caminho janta com os huguenotes, inimigos do rei e do papa. O rei e a sua corte são informados desse fato. Ingênuo já granjeara inimigos, especialmente por parte do bailio (uma espécie de xerife) que pretendia casar o seu filho com a bela St. Yves. Isso era motivo suficiente para delatar o pobre do Ingênuo. Ser huguenote equivalia a ser inimigo declarado do rei. Chegando à corte de Versalhes, imediatamente será trancafiado na Bastilha, condenado ao abandono perpétuo. Lá terá um encontro com Gordon, um sábio, condenado por ser jansenista. Ele tinha também alguns livros. Ele sofre grande transformação, que ele próprio constata: "Sinto-me tentado, a crer nas metamorfoses, pois fui transformado de bruto em homem".
Se ele estava completamente esquecido pelas autoridades, o mesmo não acontecia com a bela St. Yves. Ela, ao ver-se diante de um casamento forçado como o filho do bailio, e sabendo da prisão, vai a Paris. Mas lá os padres e as demais autoridades estão muito entretidos com diversões e ela não consegue audiências. Por fim é recebida por um padre jesuíta, que procura interceder por ela. Ela então é posta em contato com o poderoso sr. Pouange, que movido pela beleza da jovem, procura usar de seu poder em favor da jovem desde que, devidamente recompensado. Um padre a convence que deve ceder. Se o ato é vil, a finalidade é, no entanto, nobre e, assim a convence a ceder. Toda a argumentação estava bem fundamentada em Santo Agostinho.
Pouange não falha e Ingênuo e Gordon são libertados. Mas as dores do remorso e da culpa fazem com que St. Yves adoeça e tudo termine em tragédia. Pouange, que não era ruim de todo, pois não nascera mau, procura reparar o mal feito, concedendo benefícios aos dois, agora inseparáveis amigos. Sob o dístico de que o tempo tudo abranda, Ingênuo tornou-se bom guerreiro e intrépido filósofo. É... O tal do processo civilizatório.
O livro de contos da coleção dos Imortais da Literatura Universal tem notas introdutórias de Sérgio Milliet. Nas que antecedem ao O Ingênuo, lemos a seguinte nota: "O interesse deste romance, em que Voltaire volta, após o sarcasmo de Cândido, à fantasia menos cruel de seus primeiros contos, está em consistir ele numa exposição crítica da tese de J. J. Rousseau sobre o homem natural. O princípio é bem característico da filosofia do genebriano: o Ingênuo é honesto, franco, espanta-se com nossas ridículas convenções, mas a conclusão se revela contrária à ideia da volta à natureza".
O conto é relativamente curto. Umas sessenta páginas e vinte capítulos. O uso de personagens indígenas estava muito em voga entre os romancistas europeus da época. Deixo também a resenha de Cândido. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/03/candido-ou-o-otimismo-voltaire-1759.html
segunda-feira, 24 de março de 2025
CÂNDIDO OU O OTIMISMO. Voltaire. 1759.
Impressionante! Grande Voltaire! Retomando os livros da coleção Os Imortais da Literatura Universal, tomei em mãos o livro de número 40 - Contos, de Voltaire. O livro tem em seu total 672 páginas e contém seus principais contos. Voltaire usou os chamados contos filosóficos para debater e expor os seus posicionamentos e contestar os seus adversários. A ironia será sempre a sua principal arma. E que ironia! Comecei a minha leitura pelo seu conto mais famoso: Cândido ou o otimismo - Traduzido do alemão do senhor doutor Ralph. Com os aditamentos encontrados no bolso do doutor, por ocasião da sua morte em Minden, no ano da graça de 1759. Eis o título completo do conto.
Contos. Voltaire. 1972. Tradução: Mário Quintana. Páginas: 149-238.Vamos a algumas contextualizações. Creio, que, antes de ler Voltaire, necessariamente precisamos conhecer alguns dados biográficos seus e ver com quem ele estabelecia os diálogos e quais eram as suas concepções de mundo. Para o caso específico de Cândido, é fundamental saber sobre o panorama da filosofia na Europa, neste período da segunda metade do século XVIII. Os filósofos em evidência são os alemães Leibniz (1646-1716) e Wolff (1679-1754). Eles professavam que vivemos no melhor possível dos mundos. Não precisamos entrar em detalhes, uma vez que no conto tudo isso estará bem explicitado.
O primeiro fato que é necessário ter em conta para interpretar Cândido é o de que Pangloss, um dos personagens fundamentais, é Leibniz. Será ele o preceptor de Cândido. Será ele que infundirá no seu jovem discípulo um otimismo insofismável. O conto começa na Alemanha, na Vestfália, onde encontraremos os primeiros personagens: Pangloss, Cândido, Cunegundes e o barão, seu pai. As desventuras que ali ocorrem, os levam a percorrer o mundo. Assim o conhecerão, não por imaginação ou descrição, mas por experiência. Lembrando ainda, que Cândido alimenta uma paixão doentia pela bela jovem Cunegundes. Casar com ela e ser feliz é o grande sonho de sua vida. Será a felicidade no melhor dos mundos.
O conto é cheio de viagens, de conflitos e de guerras, de mortes e ressurreições, de fugas e de encontros com sábios e com o povo. Esses contatos os põem em contato com a realidade do mundo. Conhecem a Europa e conhecem a América. Os personagens principais se desencontram e outros entram em cena. Experiências fantásticas são vividas e a questão que os acompanha está onipresente: Que mundo é este? Assim como também a visão de felicidade de Cândido, em ver o seu amor por Cunegundes ser correspondido, embora todas as suas submissões que afetaram a sua dignidade.
A passagem pela América merece um destaque maior. Depois de passarem por Buenos Aires, onde Cunegundes permanecerá presa, e pelo império dos jesuítas no Paraguai, Cândido e o seu amigo Cacambo chegam ao Eldorado. Este sim, é o reino onde, sob a concordância de todos, não há males. Apenas Cândido permanecerá infeliz por causa da ausência de sua grande paixão. Dois destaques nesta visita ao Eldorado: as grandes riquezas e a discussão com um sábio sobre a religião. A Deus nada pedimos. Apenas agradecemos, lhes confidencia o sábio. São agraciados com presentes que tornam sua riqueza inesgotável. Outra passagem notável ocorre no Surinam, onde Cândido encontra o sábio Martinho e a visão que tem da escravidão na lavoura canavieira. "É o preço do açúcar na Europa". Um encontro direto com o Mal. Pangross, não está presente nessa discussão. Ele fora vítima da inquisição.
Cândido fica sabendo que Cunegundes está em Veneza e ele então empreende todos os esforços para ir à cidade. Acompanhado de Martinho, contratam viagem. São logrados por todos, mas como vimos, agora são portadores de fortuna que não acaba. Passam pela França, pela Inglaterra e chegam a Veneza, onde tem uma passagem fantástica, a visita que fazem ao Sr. Pococurante. Cunegundes ainda não chegara. Nos países visitados só horrores e males e a conclusão de que a única terra sem males é mesmo Eldorado.
Em Veneza sabem que Cunegundes está em Constantinopla, trabalhando como escrava, velha e feia. Será para lá que se dirigirão. E, já na parte final do conto, os personagens se reencontram. Cândido perde o seu encanto por Cunegundes, mas diante do não consentimento do barão, o pai da noiva, no casamento, ele desafia a ordem. Pangloss dá seu consentimento, Martinho quer lançar o barão ao mar e Cacambo quer fazer voltá-lo às galés.
O trigésimo e último capítulo do conto é dedicado a conclusões. Vejamos os diálogos finais: "Também sei - disse Cândido - que é preciso cultivar nosso jardim (antes um sábio turco lhe falara sobre o trabalho que evita os males do tédio, do vício e da necessidade).
- Tens razão - disse Pangloss -, pois, quando o homem foi posto no jardim do Éden, ali foi posto ut operaretur eum, para que trabalhasse; o que prova que o homem não nasceu para o repouso.
- Trabalhemos sem filosofar - disse Martinho; - é a única maneira de tornar a vida suportável.
Todo o grupo se compenetrou desse louvável desígnio. A pequena propriedade rendeu bastante. Cunegundes estava, na verdade, muito feia, mas tornou-se uma excelente doceira. Paquette bordava. A velha costurava. Nem mesmo o irmão Giroflée se furtou ao trabalho; revelou-se um bom marceneiro; e até se tornou honesto (o happy end de Pangloss).
- Todos os acontecimentos - dizia às vezes Pangloss a Cândido - estão devidamente encadeados no melhor dos mundos possíveis; pois, afinal, se não tivesse sido expulso de um lindo castelo, a pontapés no traseiro, por amor da Srta. Cunegundes, se a Inquisição não te houvesse apanhado, se não tivesses percorrido a América a pé, se não tivesses mergulhado a espada no barão, se não tivesses perdido todos os teus carneiros da boa terra de Eldorado, não estarias aqui agora comendo doce de cidra e pistache.
- Tudo isso está muito bem - respondeu Cândido - mas devemos cultivar nosso jardim".
Mas antes, diante de suas próprias desgraças, Panglos já havia afirmado para Cândido: " - Mantenho a minha primitiva opinião - respondeu Pangloss -, pois, afinal, sou filósofo; não me convém desdizer-me, visto que Leibniz não pode incorrer em erro, e a harmonia preestabelecida é a mais bela coisa do mundo, bem como o todo e a matéria sutil". Questões de filosofia.
domingo, 23 de março de 2025
A ROMANA. Alberto Moravia. 1947.
A romana. Alberto Moravia. Abril. 1972. Tradução: Marina Colasanti.
terça-feira, 18 de março de 2025
A PELE. Curzio Malaparte. 1949.
Em julho de 2012 eu, definitivamente, me aposentei da sala de aula. Foi uma decisão muito difícil deixar este local onde sempre me senti muito bem. Junto com a aposentadoria, eu mesmo me presenteei com uma viagem de trinta dias pelos locais fundadores da cultura ocidental. Assim me vi em Roma, em Delfos, em Atenas, na Sicília, em Nápoles e Pompeia. Estive na Ponte Vechio e percorri os trajetos de Dante na sua amada Florença, vi a poderosa Milão e, em Gênova, saí do porto, assim como milhares de emigrantes em busca de novos destinos. Em Verona fiz uma visita a Romeu e Julieta, andei de gôndola na Sereníssima República de Veneza, fui a Assis e na estrangeira República de San Marino. De volta a Roma, ainda com tempo para pedir uma bênção ao papa, voltamos ao Brasil.
A pele. Curzio Malaparte. Abril. 1972. Tradução: Alexandre O'Neill.Mas, por que estou contando isso? Por um motivo muito simples. Estando em Nápoles, fomos visitar a famosa ilha de Capri, onde moram as sereias. Lá fizemos uma viagem de barco ao redor da bela ilha. E, me lembro bem, que o guia que nos acompanhava nos apresentou uma casa. Era a casa do escritor Curzio Malaparte. Ele nos falava da maravilha dessa casa e dos grandes encontros que nela se realizavam. Lembro que fiquei bastante intrigado com essa apresentação. Mas ficou por isso, diante de tantos encantos que as paradisíacas paisagem nos ofereciam.
Agora a ligação dos fatos. Tenho em casa, em minha modesta biblioteca, a coleção de Livros da Abril - Os imortais da literatura universal. Entre eles, o de número 46, A pele, de Curzio Malaparte. Me impus a tarefa de ler os que ainda não lera e reler os maiores clássicos. Assim tomei em mãos, tanto o livro, quanto o livro de biografias e contextualizações, que acompanha a coleção. Fui à biografia, antes da leitura do livro. Ele me encheu de curiosidades e com uma imensa vontade de ler uma biografia melhor trabalhada sobre o autor. Uma vida cheia de conturbações e de mudança de posições. Dou alguns dados, mas antes quero dizer que Curzio Malaparte é o pseudônimo de Kurt Erich Suckert. O Malaparte é em oposição a Napoleão, que era Bonaparte.
Do livro de biografias tomo a apresentação do escritor: "Ilha de Capri, 1943. Kurt Erich Suckert (1898 - 1957), escritor e jornalista, volta as costas para a Europa de chamas e ruínas, e olha para o mar.
Ondas e gaivotas. Estranhos os sons semi-sonolentos do oceano a contrastarem com os ruídos incisivos que haviam acompanhado Suckert nos últimos quatro anos: palavras, gritos de homens irados, eco de passos marciais sobre o asfalto, uivo de obuses, próximos e distantes, latir nervoso de armas automáticas, riso cruel de metralhadoras, botas apressadas sobre a lama. E o som do sangue, alto e agudo, sangrando lento das veias do continente moribundo.
Quatro anos de guerra. A Europa tuberculosa expectora balas de ferro. Mas os canhões cansados já denunciam a agonia do paciente. Esmagado, arruinado, destruído.
Como político, como correspondente de guerra, como ser humano, Kurt Erich Suckert esteve nas várias frentes de decisões: Alpes franceses, Polônia, Rússia, Finlândia, Alemanha, Itália.
Escombros e ruínas de cidades e homens. Assim Suckert viu a Europa. E, se na ilha de Capri, lhe volta as costas, não há nesse ato indiferença. Era como o filho único de um camponês doente e solitário, que abandona o leito paterno para observar a estrada por onde deve vir o socorro.
Os olhos no mar perscrutam ao longe. Esperam a frota anglo-americana de invasão que iria libertar a Itália e a Europa do terror nazi-fascista.
Na guerra, na invasão, o remédio para a guerra, para as invasões. E Suckert, antigo ideólogo do Partido Fascista Italiano, espera tropas estranhas, vindas de outro continente, para a elas juntar-se na luta contra seus antigos amigos.
Na sua atitude não há, porém, traição ou contradição. As posições que defende são conhecidas; rompeu com o fascismo oito anos antes de Hitler (1889-1945) invadir a Polônia. Quanto à guerra, considera-a não um mal em si mesmo, mas a consequência do impasse, da decadência a que chegara a velha civilização. Acha preferível lutar, destruir, a aceitar passivamente o mundo paralítico da década de 30. Por isso escreveu: 'Saiba-se que prefiro esta Europa destruída à Europa de ontem, e à de há vinte, de há trinta anos. Prefiro que tudo esteja por refazer a ter de aceitar tudo como herança imutável'".
É o livro. Não só A pele, mas também Kaputt. São os seus dois livros sobre os horrores da Segunda Guerra Mundial. Em Kaputt a guerra e em A pele, o pós-guerra.
O cenário de A pele, é a cidade de Nápoles (próxima a ilha de Capri e do Vesúvio). O ano é o de 1943. O fato é a chegada dos exércitos aliados para a libertação da Itália e da Europa. O livro é um constante diálogo entre o escritor e os comandantes do exército dos Estados Unidos. Como recebê-los, como tratá-los. um encontro entre vencidos e vencedores. Ou dos vencidos à espera dos vencedores, em nome da liberdade. As descrições são muito vivas, fortes e algumas até inspiram asco, o asco das consequências de uma guerra, da ausência de qualquer dignidade na busca pela sobrevivência. Vidas ao sabor dos soldados do exército dos vencedores, inclusive o da prostituição das mulheres e das crianças, em troca de um dólar ou de um pedaço de pão.
Salvar a alma ou salvar a pele? Eis a grande questão. Nos diálogos há o encontro da história, dos valores culturais, da arte com a riqueza de um novo continente. O encontro de Malaparte com os oficiais vencedores se dá num tom de cordialidade, entremeada de muita sutileza e fina ironia. A ingenuidade dos oficiais é exposta. O livro é, inclusive, dedicado aos vencedores Vejamos a dedicatória: "A memória afetuosa do Coronel Henry H. Cumming, da Universidade de Virgínia, e de todos os bravos, os bons, os honestos soldados americanos, meus companheiros de armas de 1943 a 1945, mortos inutilmente pela liberdade da Europa".
Deixo as frase finais do livro (de doze capítulos e 369 páginas), um dialogo entre o escritor e Jimmy, um alto oficial do exército vencedor:
"Estou cansado de viver entre os mortos - tornou Jimmy. - Sinto-me contente por voltar para casa, por voltar à América, por voltar a viver entre os homens vivos. Porque não vens tu também para a América? és um homem vivo. A América é um país rico e feliz.
- Sei muito bem, Jimmy, que a América é um país rico e feliz. Mas não irei, devo ficar aqui. Não sou um covarde, Jimmy. E depois, também a miséria, a fome, o medo, a esperança são coisas maravilhosas. Mais que a riqueza, mais que a felicidade.
- A Europa é um monte de lixo - disse Jimmy, um pobre país vencido. Vem conosco. A América é um país livre.
- Não posso abandonar os meus mortos, Jimmy. Vocês levam os seus mortos para a América. Todos os dias partem para a América navios carregados de mortos. Morreram ricos e felizes, livres. mas os meus mortos não podem pagar o bilhete para a América, são pobres demais. Nunca chegarão a saber o que é a riqueza, a felicidade, a liberdade. Viveram sempre na escravidão; sofreram sempre a fome e o medo. Serão sempre a fome e o medo. Serão sempre escravos, sofrerão sempre a fome e o medo, mesmo mortos. É o destino que lhes coube, Jimmy. Se soubesses que Cristo jaz entre eles, entre esses mortos, ias abandoná-lo?
Não queres com certeza que eu acredite - ponderou Jimmy - que também Cristo perdeu a guerra.
- É uma vergonha ganhar a guerra - disse eu em voz baixa".
O livro de biografias nos conta sobre o final de sua vida. Nela permaneceram as contradições que o acompanharam ao longo de toda a vida. Ao visitar a China, tornou-se comunista e ao final converteu-se ao catolicismo. Morre em Roma (19 de julho - 1957) e nos deixa uma espécie de pequeno testamento: "Que os tempos novos sejam tempos de liberdade e de respeito para todos; inclusive para os escritores (os seus livros figuraram no Índice de livros proibidos, o famoso Index) É que só a liberdade e o respeito à cultura poderão salvar a Itália e a Europa daqueles dias cruéis de que fala Montesquieu: 'Assim, no tempo das fábulas, após inundações e dilúvios, saíram da terra homens armados que se exterminaram'".
"Saíram da terra homens armados que se exterminaram". Uma definição do que é uma guerra.
terça-feira, 11 de março de 2025
MOBY DICK. Herman Melville. 1851.
Um livro muito diferente. Seguramente, muito diferente. Estou falando de Moby Dick, do escritor dos Estados Unidos, Herman Melville (1819-1891). O livro foi lançado no ano de 1851. Não há contextualizações a fazer. Trata-se de um livro sobre baleias, de caça às baleias, de uma raça, em particular, entre elas, a dos cachalotes. E entre os cachalotes, uma de maneira toda especial, Moby Dick. O livro é um tratado, uma espécie de ensaio sobre baleias, à sua caça e o seu enorme valor comercial, a época. Seu óleo e, mais uma vez, em especial o espermacete, abundante nos cachalotes, pela sua qualidade e valor comercial bem mais elevado. Era usado no fabrico de velas e iluminação. Vejam bem, estamos no ano de 1851.
Moby Dick. Herman Melville. Abril. 1972. Tradução: Péricles Eugênio da Silva Ramos.Como falei, o livro é uma espécie de ensaio e, por isso mesmo, aprendi muito sobre as baleias. Desde a baleia bíblica, a que engolira o profeta Jonas, até sobre a cidade de Nantucket e Bedford (Massachusetts), os grandes centros pesqueiros de baleia dos Estados Unidos. Aprendi sobre os baleeiros, sobre os navios baleeiros, sobre as diferentes espécies de baleias, sobre o seu peso e tamanho,(trinta metros- até noventa toneladas) sobre a sua valentia e dificuldades de ser abatida, sobre os hábitos dos caçadores, assim como os do enorme mamífero, sobre as infindáveis viagens, sobre os diferentes valores comerciais e assim por diante. As descrições são minuciosas e longas. O livro tem 135 capítulos, estendidos ao longo de 668 páginas. A edição que eu li foi o da coleção Os imortais da literatura universal, da Abril cultural, numa publicação do ano de 1972.
Ao longo da leitura, uma curiosidade me acompanhou. O que levaria um escritor a escrever um tratado sobre baleias. A coleção dos livros é acompanhada de mini biografias e pequenas contextualizações das obras. Creio que na leitura da biografia do autor encontrei segura resposta. Uma vida de dificuldades financeiras o levou aos navios baleeiros. E nesse sentido, o seu livro pode ser até considerado como um diário de bordo.
As suas dificuldades passaram pela falência e morte prematura do pai e de estar entre oito irmãos. Depois de alguns empregos insignificantes, meteu-se pelos mares. Era o ano de 1841 e o navio era o Acushnet: "Era um veleiro de três mastros, com 36 toneladas e 35 metros de comprimento, equipado com oficina mecânica, carpintaria, sala de costura, e repleto de provisões. Tripulavam-no 26 homens comandados pelo capitão, que era o único responsável pela escolha dos locais de caça e autoridade máxima durante todo o tempo de permanência no mar. Logo abaixo do capitão vinham os imediatos, os arpoadores, alguns marujos experientes e, por fim, os aventureiros. Todos eles participavam da caça à baleia, trabalho perigoso e emocionante.
Para realizar sua tarefa, esses homens utilizavam as chalupas, pequenos barcos de madeira leve, com cerca de seis metros de comprimento por dois de largura, um pequeno mastro para vela auxiliar e uma caixa que ia à frente com mais de quinhentos metros de corda presa ao arpão.
A operação era comandada pelos imediatos, que tinham sob suas ordens cinco remadores. A um dos remadores cabia a difícil missão de arpoar a baleia. Como nessa época não existiam ainda dispositivos mecânicos para arpoar, o caçador atirava sua arma com a mão, bem de perto e com toda a força. Podia errar o alvo, e perder a presa. Podia atingir o animal, porém isso não era ainda uma vitória. Muitas vezes, a baleia ferida afundava e se perdia no oceano. Ou saía nadando velozmente e arrastava o pequeno barco. Somente quando ela se cansava é que a chalupa podia aproximar-se; então o imediato a feria mortalmente, atravessando-lhe o corpo seguidas vezes, com uma lança metálica. Depois, ela era arrastada para perto do navio, onde se fazia a extração do óleo - trabalho que chegava a demorar umas cinquenta horas". Vou parar por aqui, senão dou o spoiler do livro. Observem o ano.
Depois continuou navegando, dando aulas e escrevendo, mas não se encontrava. Com a ajuda do sogro, compra uma fazenda e aí encontra o ambiente para escrever a sua grande obra, que ganha, de acordo com a síntese biográfica, um belo sub título Moby Dick ou o homem e seu destino. Vejamos como a obra é apresentada: "Foi ali, entre plantas, árvores e animais, que começou a elaborar Moby Dick: a estória do capitão Acab, comandante do "Pequod", contra Moby Dick, a baleia branca. Acab tinha vivido uma vida de solidão durante quarenta anos (belíssimas reflexões - capítulo CXXXII - A sinfonia). Casara-se muito tarde e em seguida partira para o mar. Seu maior desejo era vingar-se da baleia que lhe arrancara uma perna". (A caça a Moby Dick, ocupa os três capítulos finais do livro). É a narrativa de suas experiências no Acushnet.
Mas o livro é muito mais. O livreto de biografias explicita o subtítulo que lhe atribuiu: "No entanto, o sentido mais profundo da obra é a eterna procura do homem, o intenso combate contra as forças do mal, o anseio de pureza, e por fim a amarga desilusão: a terra não é nem nunca virá a ser um paraíso".
O livro foi um fracasso editorial. Ele foi efetivamente descoberto apenas ao longo do século XX, quando se compreenderam as complexas inter-relações filosóficas e religiosas de sua obra. Ainda, do livro de biografias deixo duas críticas. David Herbert Lawrence, apresenta a obstinação de Acab como "o instinto vital em luta contra o intelecto que o mata", enquanto que o renomado escritor e filósofo Albert Camus assim se refere ao escritor e ao livro: "Esse livro incessantemente reescrito, essa infatigável peregrinação através do arquipélago dos sonhos e dos corpos, sobre o oceano 'onde cada vaga é uma alma', essa odisseia sob um céu vazio, faz de Melville o Homero do Pacífico".
Deixo também o registro da extrema erudição do autor, de seu conhecimento da cultura clássica, bem como o da Bíblia, especialmente sobre o Antigo Testamento, donde retira precisas ilustrações. Suas observações religiosas são extremamente pertinentes, especialmente sobre os protestantes dos Estados Unidos. O narrador da epopeia do "Homero do Pacífico" é um marinheiro sobrevivente, como vemos no apêndice do livro.