segunda-feira, 25 de março de 2019

Homens imprudentemente poéticos. Valter Hugo Mãe.

Confesso, antes de mais nada, que é extremamente prazeroso ler Valter Hugo Mãe. Mas confesso também, que isso não é uma tarefa fácil. Os seus romances tem uma estrutura complexa e a cada momento estamos diante do inusitado, de um poético e de um simbólico que sempre perpassa toda a obra. Com Alberto Manguel aprendi que um dos segredos da leitura é sempre se por diante da pergunta: O que o autor efetivamente quis dizer.
Que maravilha. Imprudentemente poéticos. Morte e suicídio.

Dito isso, vou buscar, no final de Homens imprudentemente poéticos, uma nota do próprio autor sobre o seu livro. Entre vários agradecimentos ele nos diz: "Ao encontrar os fios ainda frescos dos suicidas que entram a floresta no sopé do monte Fuji, estratégia de Ariadne, o calafrio traz a dúvida de saber se na sua extremidade, ao centro do labirinto, alguém medita desesperadamente acerca do fim. Por ser ocidental, a cultura da culpa, a base cristã e a inteira obrigação para a vida impelem-me à salvação de cada pessoa. Como se a morte fosse sempre pior do que prosseguir na deriva tantas vezes cruel de existir. Para os japoneses o suicídio reveste-se de complexa nobreza. O morto nobre, na floresta do monte Fuji, sobra nas árvores como a devolver-se à mutante natureza. A natureza é, de todo modo, o único futuro viável, a única perenidade".

Está claro que Valter Hugo Mãe nos quer falar da morte e, mais precisamente, sobre a morte em sua pior forma, dentro dos parâmetros da cultura ocidental, qual seja, a forma suicídio. Lembro da minha Harmonia, minha pequenina e católica cidade natal. Os suicidas e os não cumpridores dos mandamentos da igreja, aqueles cinco, lembra, eram enterrados ao lado do cemitério e não na sua parte principal. Assim, além da danação eterna, vista pelos olhos da fé, recebiam também olhares reais nada complacentes e bondosos, da companheirada da comunidade. Triste e apavorante.

Então a poesia imprudente do poeta escritor busca uma outra cultura, com outra visão sobre a morte e com outra visão sobre o suicídio. Numa visão cósmica, pela morte ingressamos no universo da natureza. Isso já é imprudentemente poético e, muito benfazejo. Liberta da danação, do fogo eterno, dos demônios do mundo simbólico e do real.

Dois japoneses moram ao sopé da montanha ou do parque dos suicidas. Itaro era um artista que pintava leques. Vivia em companhia da criada Kame e da menina Matsu, a irmã. Matsu era cega e com isso alargou a visão com outras formas de enxergar. Itaro vivia muito perturbado. Ao lado morava o oleiro Saburo e o quimono de Fuyu. Pelos movimentos, ao vento, ela continuava ao lado de Saburo. O oleiro cultivava um bem cuidado jardim, passagem obrigatória no caminho dos suicidas. Este jardim, a muitos fez retroceder em suas intenções. Itaro e Saburo eram pessoas boas, porém, se odiavam de morte.

O romance é a trajetória percorrida por Itaro, Kame e Matsu. Kame, a criada eventual da família, tronou-se a mãe/perto da pequena cega. Itaro buscou a sabedoria do japão profundo, a mando de um sábio. Já a trajetória de Saburo era a de viver as flutuações do quimono, dos cuidados com o forno e do jardim e das implicações com o vizinho. Os momentos mais imprudentemente poéticos são os da menina cega, que tem o olhar alargado da visão para compensar a deficiência física do enxergar. Itaro também alargou a sua visão.

O último capítulo do livro se volta ao título da obra: A imprudência poética. Nele lemos: A senhora kame explicava: "É um algodão a chegar da floresta. É lindo. Itaro sentia que era lindo.

Os três se deixaram assim. O oleiro sabia um poema acerca da vetusta cerejeira da noite de Guion. O artesão pediu: faça-nos ouvir, por favor. faça-nos ouvir.

O perfume das impossíveis cerejeiras inebriava os inimigos que, distraídos pela poesia, adiavam todas as decisões. A vida, subitamente, era sem pressa. Planeariam combater-se mais adiante, se ainda fosse interessante matarem-se um ao outro.

Depois, Saburo voltou a dizer: vou cuidar dos incómodos das flores. Mas o cego sabia que o jardim perecera e que o oleiro se deixara daquela delicadeza. A ausência do quimono da senhora Fuyu abandonara o oleiro à realidade. E a realidade era sem maior fantasia. Vinha o inverno. O frio bastava para que se quisessem ocupar de mudar tudo. Pela primeira vez mudar tudo.

Calmamente, como num pensamento maduro, Itaro decidia que haveria de se prostrar no chão junto ao castelo de Nijó, o mais cerca do palácio de Ninomaru que lhe fosse possível. De rosto caído. A honra inteira na palma da mão a pedir. Como se explicasse à bondade de cada homem que o espírito divino o honrara com aquela situação. Enfrentava a contagem da míngua e a arte de mendigar. Sabia que os mendigos eram teatrais. Estavam longe de mentir. Apenas ilustravam o desespero com talento.

Falaria de amor. Diria: o que se opõe ao amor se afeiçoa à morte. O artesão haveria de mendigar por obrigação de alegria".  É... o que se opõe ao amor se afeiçoa à morte. Absolutamente - imprudentemente poético.




segunda-feira, 18 de março de 2019

o remorso de baltazar serapião. valter hugo mãe.

Um enigma. Tive dificuldade enorme em ler este livro, o remorso de baltazar serapião, de valter hugo mãe. Recorro ao curto prefácio de José Saramago, que nos dá pistas, além do elogio à forma linguística, à abolição dos "sinais de trânsito", que nos levam a dirigir com redobrada atenção e cuidado. Ou seria, a exigência de muito maior atenção na sua leitura? Saramago qualifica a obra como um verdadeiro tsunami, um "ímpeto arrasador e ao mesmo tempo construtor".
O tsunami literário de valter hugo mãe.


Mas vamos ao que Saramago fala da obra em si, para além de sua forma de apresentação: "A época que se reconstitui, embora não se possa falar exactamente de reconstituição, é uma certa Idade Média que está ausente dos livros que dela falam e das ficções que sobre esta época se armaram. Nós gostamos muito, nós os portugueses, gostamos da Idade Média, não se sabe porquê, talvez por causa d'A dama pé-de-cabra ou d'O bispo negro, dessa espécie de Idade Média desinfectada, limpa como se houvesse detergentes de todo tipo, mas o que acontece é que aquilo cheirava mal, era feio. Foi aqui dito que o livro cava um diálogo que não tem fim entre o feio e o belo, mas eu creio que é preciso ter muita esperança na vida para achar que aquele belo vai ganhar a batalha, e a prova é que não a ganhou".

Confesso que a uma certa altura da leitura, imaginei que se tratava, não de um romance que retratava a Idade Média, mas sim, o futuro da humanidade, enrodilhado em desespero e desesperança. Uma verdadeira distopia. A leitura me causava um certo desconforto.

Na contracapa encontramos mais uma explicitação bem esclarecedora: "Estirpe e jugo são os elementos brutos com os quais a poderosa linguagem de Valter Hugo Mãe narra a história da sarga, "nascidos de pai e vaca" e de seu primogênito, que dá nome ao livro: baltazar, camponês miserável e de passividade bestial, cujas vida e jovem esposa são exploradas por dom afonso, senhor das 'almas e coisas' daquela terra. E põe bestialidade nisso. Também são profundamente esclarecedoras as imagens, os desenhos ou as representações que aparecem no começo e ao final do livro. São desenhos de seres humanos misturados com animais, com detalhes sobre os temas enfocados ao longo do livro.

Como ilustração e chamativo para a leitura, deixo os mistérios e enigmas do último capítulo, o de número vinte e oito: "apercebi-me de se levantarem já tão ágeis pelo hábito quanto pela perda progressiva da razão. apercebi-me do mugido súbito da sarga por coisa que na noite rondou a sua calma. uma qualquer presença incómoda que a pôs em sobressalto. e eu nem me levantava, nem me acusava de atitude alguma. ergui a cabeça lentamente e ao pé da fogueira estavam o aldegundes e o dagoberto uma vez mais torcendo a minha ermesinda, e mais a sarga se incomodava, mais a ermesinda se inquietava, mais a ermesinda bulia debaixo deles, esticada por um e por outro para corresponder em formas às entradas que eles queriam fazer. e ela atrapalhava-se respirando com maior dificuldade. coisa que dava à sarga era proporcional à coisa que lhe dava também. mas eu demorei a decidir ideia válida de fazer. ali estava, em nova permissão. abdicando de tudo, já nem por manter a sensatez da educação da minha mulher senão para permitir que, com mais dois, fôssemos quatro como casal de deus. eu sentiria até ali o remorso dos bons homens. como havia pensado, remorso duro de tão dignamente administrar a educação da minha ermesinda. mas até ali, pensei, até ali, por que naquele momento, mais do que a condenação de restarmos os quatro encurralados para todos os avios, ocorreu-me a falha grave do meu espírito. e tão amargamente me foi claro que, por piedade ou compreensão com os meus companheiros, e talvez por ausência da voz da minha mulher, passara para lá do limite. o remorso dos bons homens já não me assistia, senão só a burrice e ignorância de quem abdicara de sua mulher.

ainda pensei, talvez fosse só da chuva que caía, talvez fosse só da avidez dos dois traidores, com ganas de alívio maiores do que o costume, ou talvez fosse por pressentir o apelo da minha indefesa amada, ali disposta para banquete de homens que não eram o seu marido, sim, talvez fosse por isso que a sarga estava diferente. e a minha ermesinda mais se tentou debater e mais lhe custava a respirar, mais eles se afligiam com controlá-la para, mais que não fosse, voltarem aos seus lugares e esperarem que se acalmassem, as duas, ela e a vaca. e foi como me levantei. aproximei-me dos dois, grande e imbatível como uma pedra de ódio construída no exercício do meu bom amor, e que me pus diante deles tão pequenos. afastaram-se de minha ermesinda que, imóvel, respirou menos, respirou menos, respirou menos, não respirou. a sarga mugiu de modo lancinante. e eu abati-me sobre os dois abrindo lado a lado os braços de punhos fechados. um só golpe certeiro com a violência da pedra mais furiosa do mundo. sobraram no chão como mais nada ali estivesse.

depois ergui-me, aqueci, tive a percepção fatal de que o meu corpo não suportaria nem o caminho até ao pé da sarga. na escuridão contínua, a sarga talvez tentasse chegar a mim também". E voltamos a Saramago: o remorso de baltazar serapião é um tsunami linguístico, estilístico,semântico,sintáctico".

sábado, 16 de março de 2019

O enraizamento do nazismo na cultura ocidental. Seus componentes e suas profundas raízes.

Um dos livros mais densos e esclarecedores que li ultimamente foi Espelho do ocidente - O nazismo e a civilização ocidental. A autoria é de Jean-Louis Vullierme. O objetivo do livro está assim descrito pelo seu autor, no prólogo do livro: "Sempre me pareceu fundamental entender aquele que constitui o acontecimento mais destruidor da história moderna, identificando suas raízes para procurar extirpá-las".
Identificar as raízes do nazismo para procurar extirpá-las. A tese do livro.

Já na introdução, lemos: Essa ideologia (o nazismo), que não nasceu na Alemanha, mas nela foi aplicada furiosamente, é tao real quanto são fantásticos suas justificações e seu objeto. Ela não é isolada, inserindo-se em uma temática que encontrou no nazismo sua interpretação mais ampla até hoje. Os componentes do sistema coerente ao qual pertence, cada um deles perigosamente, já se haviam combinado antes de maneira parcial, mas nunca inofensiva. E podem, a qualquer momento, ser novamente combinados.

Sua lista, tal como me proponho a descrevê-la aqui, poderia ser inicialmente formulada da seguinte maneira, sem uma ordem especial: supremacismo racial, eugenismo, nacionalismo, antissemitismo, propagandismo, militarismo, burocratismo, autoritarismo, antiparlamentarismo, positivismo jurídico, messianismo político, colonialismo, terrorismo de Estado, populismo, juvenilismo, historicismo, escravagismo. Devem ser acrescentados dois elementos essenciais que não tem nome. Os neologismos que sugiro no caso são 'anempatismo' e 'acivilismo', designados, respectivamente, à educação que não concede nenhum sentimento ao sofrimento do outro e à ausência de qualquer proteção especial às populações civis nas operações militares ou policiais". Sobre o livro de Vullierme veja: http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/03/espelho-do-ocidente-o-nazismo-e.html

Neste último parágrafo está a nota explicativa de número 9, onde são explicitados os conceitos relativos às palavras destacadas. O livro tem mais de 100 páginas de notas explicativas, que são as fontes onde o pesquisador bebeu. São uma preciosidade. E segue a explicitação:

O supremacismo racial considera que os seres humanos são repartidos em espécies biológicas distintas, chamadas "raças", em rivalidade pela dominação, uma das quais dispondo de superioridade natural que a destina a levar a melhor.

O eugenismo político atribui aos poderes públicos a missão de melhorar a espécie humana pela eliminação das características consideradas não adaptativas, por meio da seleção, da criação, da eutanásia ou da esterilização.

O nacionalismo é a ideia de que os homens adquirem sua identidade primordial pela filiação a grupamentos históricos e territoriais, apresentados como substanciais e designados como "Nações", às quais eles devem dar prioridade em detrimento de qualquer outro tipo de agrupamento, se necessário sacrificando seus próprios interesses.

O antissemitismo visa submeter ou afastar as pessoas de tradição judaica e aquelas que lhes são aparentadas mediante todos os dispositivos discriminatórios de ordem privada ou pública, o acantonamento, a expulsão ou a eliminação física.

O propagandismo é a utilização sistemática dos meios de comunicação, inclusive pela seleção e distorção das informações transmitidas, com vistas a realizar um consenso político de acordo com os interesses de seus mandantes.

O militarismo é a ideia de que, prevalecendo os objetivos militares sobre quaisquer outras considerações de ordem jurídica ou moral, a sociedade e o exército devem tender a se confundir em uma organização única para alcançá-los.

O burocratismo é o controle administrativo de uma população, por meio de uma organização hierárquica isenta de recursos jurídicos eficazes.

O autoritarismo é a convicção de que toda esta organização eficaz está sujeita a um princípio de comando hierárquico, que seria debilitado por retroações não solicitadas da parte dos executantes ou pelo pluralismo.

O antiparlamentarismo é a afirmação de que toda eleição  que não seja plebiscitária constitui um fator de divisão da sociedade.

O positivismo jurídico identifica como fonte única do direito a vontade de um legislador, à qual as jurisdições devem submeter-se, sem ponderá-la com outras fontes, como a doutrina, a jurisprudência, os costumes ou a equidade.

O messianismo político é o apoio ou a espera de um indivíduo dotado de qualidades extraordinárias que lhe permitem resolver as principais dificuldades políticas enfrentadas por uma população.

O colonialismo autoriza os países mais poderosos no momento em questão a assumir, direta ou indiretamente, o controle econômico e político dos países menos poderosos.

O terrorismo de Estado é a ideia de que é legítimo que um governo iniba pelo terror a resistência de seus adversários, especialmente pela espionagem da vida privada, a tortura, o encarceramento arbitrário ou o assassinato.

O populismo é a afirmação de que o interesse de certos grupos desfavorecidos justifica medidas extraordinárias contra uma parte das elites.

O juvenilismo é a ideia de que o poder político e econômico deve ser prioritariamente atribuído a jovens adultos.

O historicismo atribui à História um sentido estritamente orientado, justificando o combate contra pessoas designadas como obstáculos à sua realização.

O escravagismo é a ideia de que certas pessoas, pelo fato de uma suposta inferioridade substancial ou em virtude do direito de guerra, do fato de pertencerem a um grupo adverso, de uma condenação judiciária ou de uma transação comercial, podem ser legitimamente submetidas pela força ao trabalho ou à sujeição sexual.
Neste livro encontramos a fala Educação após Auschwitz.

Ao post acrescento uma parte do primeiro parágrafo da fala de Adorno em Educação após Auschwitz: "A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. De tal modo ela precede quaisquer outras que creio não ser possível nem necessário justificá-la. Não consigo entender como até hoje mereceu tão pouca atenção. Justificá-la teria algo de monstruoso em vista de toda monstruosidade ocorrida. Mas a pouca consciência existente em relação a essa exigência e as questões que ela levanta provam que a monstruosidade não calou fundo nas pessoas, sintoma da persistência da possibilidade de que se repita no que depender do estado de consciência e de inconsciência das pessoas. Qualquer debate acerca das metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta. Que Auschwitz não se repita". Retirado do livro Educação e Emancipação. 


sexta-feira, 15 de março de 2019

Espelho do Ocidente. O nazismo e a civlilização ocidental. Jean-Louis Vullierme.

Uma frase me perturba há muito tempo. É a frase da abertura da fala de Adorno, em Educação após Auschwitz: "A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. De tal modo ela precede quaisquer outras que creio não ser possível nem necessário justificá-la". A fala é de 1965. Ao que tudo indica, o desesperado apelo de Adorno caiu em meio ao pedregulho e não apavorou ninguém.

Recentemente li, de Umberto Eco, O fascismo eterno. O livrinho é uma palestra por ele proferida na Universidade de Colúmbia, em 1995 e publicada no Brasil em 2018. Por que será, apenas em 2018? Nesta conferência ele apresenta 14 características do Ur-fascismo, o fascismo eterno. Vejam o autor apresentando a primeira destas características:

"A primeira característica de um Ur-fascismo é o culto da tradição. O tradicionalismo é mais velho que o fascismo. Foi típico também do pensamento contrarreformista católico depois da Revolução Francesa, mas nasceu no final da idade helenística como uma reação ao racionalismo grego clássico. Na bacia do Mediterrâneo, povos de religiões diversas (todas aceitas pelo Panteão romano) começaram a sonhar com a revelação recebida na aurora da história humana. Essa revelação permaneceu longo tempo escondida sob o véu de línguas então esquecidas. Havia sido confiada aos hieróglifos egípcios, às runas dos celtas, aos textos sagrados, ainda desconhecidos, das religiões asiáticas. [...] (Formou-se um sincretismo, logo transformado em verdade absoluta). E como consequência, continua Eco, "não pode haver avanço do saber. A verdade já foi anunciada de uma vez por todas, e só podemos continuar a interpretar sua obscura mensagem". Em outras palavras, a verdade está dada e não pode ser contestada. A ela todos devem se submeter. A cultura ocidental contém em si o germe de todos os autoritarismos.
Um livro que mergulha fundo na formação do pensamento e da cultura ocidental.

Esta é a tese de Espelho do ocidente - o nazismo e a civilização ocidental. O autor é Jean-Louis Voullierme, doutor em Direito e Ciências Políticas e professor de Filosofia nas Universidades Paris I e II. "Ele explora as raízes do mal", como lemos na contracapa do livro. A razão do livro está assim explicitada no Prólogo do livro, escrito pelo próprio autor:

"Sou de família que lutou contra o nazismo e foi parcialmente destruída por ele. Isso já seria suficiente para me interessar pelo assunto mais que os outros, mas não é a razão principal. Sempre me pareceu fundamental entender aquele que constitui o acontecimento mais destruidor da história moderna, identificando suas raízes para procurar extirpá-las. Eu também considerava que a memória dos mortos exigia no mínimo que se soubesse porque haviam sofrido tanto. Ora, essa compreensão não me era imediatamente acessível" Daí a razão da pesquisa.

No anúncio do livro eu lia sobre as contribuições de Henry Ford na construção do nazismo. Este fato foi, para mim, determinante para a compra e leitura do livro. Sabe aquela imagem de fundo que você tem de um autor... O operário de minha fábrica, deve, no mínimo, receber uma remuneração que permita comprar os produtos da empresa... Longe portanto dos empresários brasileiros preocupados em que os seus operários recebam o mínimo possível e que seus direitos sejam totalmente abolidos da legislação, como se verificou no último processo eleitoral. Contra esta imagem, pesa, no entanto, um livro seu. Ele é autor de um livro, com o título O judeu universal. Hitler cultivava a imagem de Ford e o seu livro era para ele, o seu livro de cabeceira.

Mas vamos ao livro de 363 páginas, divididas em duas partes, prólogo, introdução e conclusão. As duas partes tem os seguintes títulos: Primeira parte: A ideologia do extermínio e Segunda parte: Sair da ideologia do extermínio. A primeira parte tem seis capítulos, a saber: 1. Comentários sobre um mistério (O anti semitismo); 2. Um modelo americano (escravidão - Ford - a busca de espaço e a expansão para o oeste); 3. A revolução nacionalista (o nacionalismo e a civilização); 4. Colonialismo e brutalidade (ganha força o termo Anempatia, o oposto de empatia); 5. A ação histórica (o historicismo como o triunfo da vontade); 6. O antagonismo (o cultivo do inimigo - o anti e o instrumento da propaganda). Um mergulho na cultura e na história do ocidente.

A segunda parte é formada por dois capítulos: 7. Terapias cognitivas (Há alternativas dentro da própria cultura ocidental - humanismo) e 8. Construções míticas, perspectivas concretas (extirpar o "adubo ideológico" do fundo de nossa cultura). O que está entre as páginas 239 e 346 é dedicado à notas explicativas, que basicamente indicam as fontes da pesquisa e dão explicações de contextualização. São mais de cem páginas de muita riqueza. Uma preciosidade. É óbvio que o desvendar é mais fascinante que o propor, embora o propor seja o fundamental. Digo isso para evidenciar a primeira parte do livro. Um livro de extrema erudição.

Apresento ainda os três parágrafos da orelha que apresentam o livro: "É comum acreditar que o nazismo é produto de geração espontânea, fruto de mentes doentias e desmoralizadas, e que nasceu a partir da ideologia antissemita e do revanchismo em relação às consequências da Primeira Guerra Mundial. No entanto, suas origens são muito mais amplas e profundas.

A receita para a ascensão e o sucesso de Adolf Hitler não deriva de uma realidade isolada: tal intenção exterminadora, mesmo dissimulada, era compartilhada por um bom número de intelectuais e empresários, incluindo Henry Ford. Estava no próprio cerne da civilização ocidental.

Em Espelho do Ocidente, Jean-Louis Vullierme identifica as raízes do episódio mais arrasador da história, analisando sistematicamente o modo de pensar e operar dos nazistas, assim como o vigor com que o extermínio foi empregado como solução. Fruto de ampla pesquisa, este livro rico em fundamentos é polêmico e preocupante; o ponto de partida para uma abrangente discussão sobre os problemas que rondam o mundo".

Também considero interessante uma das notas da contracapa: "Neste ensaio, o autor tenta mostrar a origem intelectual do nazismo e do Holocausto. Hitler não é apresentado como um louco, nem a Alemanha como uma ilha negra em uma Europa iluminada; antes se apresenta tudo como uma inevitabilidade num continente que já antes gerara tanta maldade".

E para concluir: Eco acertou na mosca. A raiz está nos primórdios da formação do pensamento ocidental e a preocupação de Adorno com a repetição de Auschwitz, está cada vez mais distante, à medida que nos afastamos do horripilante fato. Tudo o que causou Auschwitz, continua sendo cultivado, até diria, com doses bem mais elevadas. Anempatia e antagonismo dominam mentes e corações neste mundo cada mais desumano.

sábado, 9 de março de 2019

Fascismo eterno. Umberto Eco.

Cheguei a este livro pela via da própria compra. Sabe, aquele aviso: quem compra estes livros também tem interesse em comprar... Gostei da ideia e não tive dúvida. A conjunção do tema - fascismo e Umberto Eco, autor consagrado, eliminou qualquer dúvida. Trata-se de O fascismo eterno. Umberto Eco usa muito a expressão Ur, comum a várias línguas, para a designação de eterno. A primeira coisa que eu fui verificar, foi a ano da edição brasileira. 2018. Por que será? A edição italiana é de 1997. O livro, um pequeno livro, é uma palestra do autor, realizada na Universidade de Colúmbia, no ano de 1995.
O livro é uma conferência proferida na Universidade de Colúmbia, em 1995.

Estes dados dão especificidade ao tema, pois, neste ano de 1995 ocorreu o maior atentado terrorista interno nos Estados Unidos, o atentado de Oklahoma, responsável pela morte de 168 pessoas. Ele veio junto com a descoberta de que existiam organizações militares de extrema direita nos Estados Unidos, nos alerta o autor, em nota introdutória ao livro. A conferência e o teor do livro tem, portanto, um destinatário específico. Os jovens estudantes dos Estados Unidos. Mas o tema é necessariamente universal.

A conferência começa pela memória dos fatos. Eco se reporta ao ano de 1942, ano em que ele responde positivamente a uma pergunta feita para todos os alunos, na escola em que estudava, nas proximidades de Milão: "Devemos morrer pela glória de Mussolini e pelo destino imortal da Itália? Como o autor nasceu em 1932, ele devia estar em torno de seus dez anos. Apenas por curiosidade, Eco nasceu na cidade de Alexandria. A fala continua com o evocar de suas memórias. Já neste tempo, afirma, começou a distinguir entre liberdade e libertação e o significado que tem as palavras e o  discurso. Notável. As memórias continuam com a evocação dos movimentos de Resistência, os Partigiani, e o contato com os soldados americanos. E, também, o primeiro chiclete.

A conferência passa a situar historicamente os movimentos fascistas do século XX, precedidos pelo fascismo de Mussolini, com bases teóricas em Giovanni Gentili, mas que "refletia uma noção hegeliana tardia do 'estado ético absoluto'". Este fascismo se propaga por toda a Europa e pela América do Sul. Eco atenta para as diferenças fundamentais destes sistemas e aponta, inclusive, inúmeras contradições entre eles. Mas a centralidade da palestra está na identificação de traços comuns, encontrados em todas as suas diferentes manifestações. São 14 diferentes faces que ele nos apresenta. É impressionante a facilidade com que podemos aplicar estas características ao triste momento histórico vivido pelo Brasil do presente. Mas vamos às características, de forma bem sintética. Para quem quiser mais, remetemos para o livro.

1. O culto da tradição: O tradicionalismo é mais velho do que o próprio fascismo. No Mediterrâneo formou-se um sincretismo religioso que não mais admitia contestações. A verdade estava posta e não poderia ser contestada. A cultura ocidental. Não poderá mais haver avanço no saber.

2. A recusa da modernidade: A modernidade significa um não aos valores tradicionais. São de extrema hostilidade ao iluminismo e à idade da razão, vistos como perversões da modernidade. Admitem apenas a evolução da técnica. Os fatores vão se somando.

3. O irracionalismo da ação pela ação: A ação é bela em si e carece de qualquer reflexão. Por isso o desprezo pela cultura e pela universidade. Eco lembra uma frase atribuída a Goebbels: "Quando ouço falar em cultura, pego logo a pistola. Tem a marca profunda do antiintelectualismo.

4. A não aceitação da crítica: Ela gera distinções e distinções são marcas da modernidade e geram os avanços, avanços estes que ferem as tradições. Estar em desacordo é sempre uma traição.

5. A não aceitação da diversidade: o sistema não tolera o desacordo e a diversidade. Expressa um ódio profundo às diferenças e ao diverso, aos intrusos. Daí o seu fundamento racista.

6. Tem a sua raiz em alguma frustração individual ou social: Esta é uma das razões ao apelo às classes médias frustradas em função de uma crise ou humilhação política, assustados pela pressão de grupos sociais subalternos. Aqueles do medo proletário são sempre o seu auditório preferido.

7. São privados de qualquer identidade social: Tem em comum apenas o fato de terem nascido no mesmo país. Daí um nacionalismo meio sem sentido, com obsessão pelo inimigo. Daí a perigosa raiz da xenofobia. Mas, para além dos inimigos externos, também existem os internos.

8. Humilhação diante da riqueza e da força do inimigo: Mas conseguem ser convencidos de que conseguem vencer o inimigo. Isso impede a possibilidade de avaliações objetivas.

9. Não há luta pela vida mas vida a serviço da luta: Por isso o pacifismo é conluio com o inimigo. O pacifismo é incompatível com a grandeza de objetivos. A vida é uma guerra permanente. Vive-se em permanente estado de beligerância. A situações exigem uma "solução final".

10. Elitismo e aristocracia são elementos constituintes: Este fenômeno ocorre simultaneamente com o desprezo pelos mais fracos. Não existem patrícios sem os plebeus. As massas tem a necessidade de um dominador. O poder é obtido pela imposição da força.

11. Ser herói é uma norma: O maior heroísmo, no entanto, está na morte e não na vida. A morte é a recompensa para uma vida heroica. Porém sua impaciência, geralmente, provoca a morte dos outros.

12. A transferência de sua vontade de poder para a sexualidade: Mas como o poder e o jogo do sexo são difíceis de ser jogados, refugia-se no machismo. "Seus jogos de guerra se devem a uma invidia penis permanente.

13. Indivíduos enquanto indivíduos estão destituídos de direitos: Os seres humanos se realizam apenas como "vontade comum". Isso faz com que sintam a necessidade de um líder, condutor, o seu intérprete. Apenas assumem o papel de povo. Odeiam os parlamentos. Um dos primeiros sintomas.

14. Falam a novilíngua: Os textos escolares devem ter um léxico simples e uma sintaxe elementar para jamais permitirem raciocínios críticos e complexos.

No encerramento, Eco volta às suas memórias. 27 de julho de 1943. O fascismo caíra e Mussolini fora preso. A mãe mandou-o comprar jornais. Os jornais diziam coisas diferentes e diferentes partidos políticos assinavam um manifesto conjunto. "A mensagem celebrava o fim da ditadura e o retorno à liberdade: liberdade de palavra, de imprensa, de associação política. Estas palavras "liberdade", "ditadura" - Deus meu ! - Era a primeira vez em toda a minha vida que eu as lia. Em virtude dessas novas palavras renasci como homem livre ocidental". Simplesmente maravilhoso.

Estas características tem muitas afinidades com as pesquisas de Adorno, do ano de 1950, sobre a personalidade autoritária http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/01/sociedade-sem-lei-pos-democracia.html  e as teorias individualistas desenvolvidas por Nietzsche.

Estou lendo agora - Espelho do Ocidente. O nazismo e a civilização ocidental, de Jean-Louis Vullierme, que simplesmente desanca a cultura ocidental. É dentro dela que o nazismo fez o seu ninho.
Mais ou menos de acordo com o item de número 1. Com aprofundamentos.


quinta-feira, 7 de março de 2019

COMUM. Ensaio sobre a revolução no século XXI. Pierre Dardot e Christian Laval.

Recomendado pelo livro A Nova Razão do Mundo, ensaio sobre a sociedade neoliberal, dos pesquisadores franceses Pierre Dardot e Christian Laval, cheguei ao novo livro destes autores - Comum - Ensaio sobre a Revolução no século XXI. Haja fôlego. Devo dizer, antes de tudo, que este é um livro para especialistas, recomendado especialmente para historiadores, sociólogos e, ainda mais em particular, para as pessoas que lidam com o Direito. A palavra Comum é estudada em toda a sua profundidade, ao longo da história. O livro pretende ser, essencialmente, uma alternativa real e positiva ao mundo do neoliberalismo.
Recuperar a condição de seres humanos, na superação do mero capital humano.


O livro é longo, 647 páginas, divididas em três partes, além da introdução e de um post-scriptum. E, é óbvio, uma rica relação bibliográfica. Com a finalidade de por os leitores em contato com livro, apresento os temas da introdução, dos capítulos e do post-scriptum. A introdução nos apresenta o comum como um princípio político. É extraordinária a busca pelas raízes etimológicas da palavra, "comum" ou "em comum", de Munus - dívida e dádiva. Reciprocidade. Ela nos é apresentada sob o título de: O comum, um princípio político

A primeira parte é dedicada à Arqueologia do Comum, com os seguintes capítulos: 1. O surgimento do comum; 2. A hipoteca comunista, ou o comunismo contra o comum; 3. A grande apropriação e o retorno dos "comuns"; 4. Crítica da economia política dos comuns e 5. Comum, renda e capital.

A segunda parte é dedicada ao Direito e Instituição do Comum, com estes capítulos: 6. O direito de propriedade e o inapropriável; 7. Direito do comum e "direito comum"; 8. O "direito consuetudinário da pobreza"; 9. O comum dos operários: entre costume e instituição; 10. A práxis instituinte.

A terceira parte é dedicada à Proposições políticas. São nove as propostas: 1. É preciso construir uma política do comum; 2. É preciso contrapor o direito de uso à propriedade; 3. O comum é o princípio da emancipação do trabalho; 4. É preciso instituir a empresa comum; 5. A associação deve preparar a sociedade do comum; 6. O comum deve fundamentar a democracia social; 7. Os serviços públicos devem ser instituições do comum; 8. É preciso instituir os comuns mundiais; 9. É preciso instituir uma federação dos comuns.

É impressionante a erudição dos autores. Eles parecem estar brincando com os autores que se dedicaram, tanto ao tema do comum, quanto ao seu termo oposto, qual seja, a propriedade privada. Com isso, todos os grandes temas da política, da pólis, são abordados. Desde os clássicos, passando pelo Direito Romano e germânico, pelo cristianismo primitivo, pelo medieval, pela retomada do tema na idade moderna com a instituição do capitalismo e seus construtores, com destaque para Calvino e John Locke, entre outros, bem como os seus contestadores, com destaque para Proudhon e Marx. 

O comunismo de Estado merece duras críticas, como nos mostra o título do capítulo 2, da primeira parte: "A hipoteca comunista, ou o comunismo contra o comum". O pós comunismo, porém, é o merecedor das maiores críticas com a contestação maior ao comum, pelas chamadas doutrinas neoliberais. Negri e Hardt e David Harvey são os autores mais usados nesta crítica. Enfim, volto a repetir, é um livro para especialistas e não para o leitor comum.  Não me detive na análise e viabilidade das propostas.

O livro tem a seguinte apresentação, em três parágrafos na orelha do livro: "Em Comum, Laval e Dardot respondem ao desafio de encontrar um modo eficiente de enfrentar o neoliberalismo. No livro anterior, A Nova razão do mundo, eles conceituam o neoliberalismo como uma forma de governo que suplementa a subsunção do trabalho ao capital por meio da universalização do princípio da concorrência mercantil. Não se trata, portanto, apenas de uma ideologia ou de um receituário de política econômica, mas de uma racionalidade que pretende estruturar a mentalidade e, assim, o comportamento, tanto dos governantes quanto dos governados, de dominadores e de dominados. Ela quer que todos assumam, por vontade própria, a condição de mero 'capital humano'. Na medida em que a imposição dessa forma de subordinação total ao valor que se valoriza for bem sucedida, o capitalismo conseguirá perpetuar-se.

Os autores querem mostrar, entretanto, que há alternativa ao neoliberalismo e, assim, ao capitalismo - e a base dela é o princípio político do comum. A prática social anticapitalista já tem mostrado que as lutas sociais visam e devem visar a instituição de 'comuns', isto é, à disponibilidade para as pessoas dos meios materiais necessários as suas atividades coletivas - não portanto, como propriedade privada ou como propriedade estatal. O princípio do comum radicaliza a democracia ao instituir o autogoverno das pessoas, que, assim, realizam a própria libertação, seja da dominação explícita do Estado, seja da dominação abstrata do sistema econômico vigente.

O livro Comum quer 'refundar de maneira rigorosa o conceito de comum'. Quer, assim, responder a um anseio generalizado por novas formas de vida em que mulheres e homens se realizem como humanos num mundo ecologicamente preservado. Essas formas já estão nascendo, por meio das lutas travadas pelos movimentos ambientais e sociais no mundo.  Há um caminho mau, que mantém as pessoas na alienação e desemboca no 'reino tirânico e cada vez mais absoluto do capital'. Há, porém, um caminho bom, que pode ser percorrido por uma revolução democrática e anticapitalista. É por esta última senda que os autores convidam a trilhar". Esta apresentação é de autoria de Eleutério Prado. Os autores são professores da Universidade de Paris-Ouest Nanterre-La Defense.

Remeto ainda ao livro anterior dos autores - A Nova Razão do Mundo - Ensaio sobre a sociedade neoliberal. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2018/02/a-nova-razao-do-mundo-ensaio-sobre.html


sábado, 2 de março de 2019

A Galinha dos ovos de ouro. Metáfora da ganância.

Em 2018 o Brasil teve um processo eleitoral totalmente atípico. As forças minimamente civilizadas perderam o terreno quase por completo.  Um cio de fera, isto é, de animal em estado de natureza, explicando ainda melhor, sem nenhum revestimento de pudor, imposto pela moral ou pela civilização, tomou conta de grande parte do empresariado brasileiro, vislumbrando ganhos imediatos. Com o tal do coiso, as relações de  trabalhado "deveriam beirar a informalidade", sem nenhuma proteção social legal. O furor deste cio fez com que, praticamente, obrigassem os funcionários a vestirem camisetas nojentas e os forçaram sob pesadas ameaças a votarem no indecente coiso.

A essa elite ralé, antiintelectualista por excelência, escravocrata e predatória por herança, dedico esta fábula, lembrando-lhes que viverão as consequências do encolhimento do mercado interno e a consequente retração de seus negócios. Certamente não lhe faltarão ovos de ouro, uma vez que estes já estão devidamente acumulados, sabe Deus a qual custo. E por falar em Deus, junto a Ele poderão aplacar as dores de suas consciências, oferecendo caridosas esmolas aos milhares de pobres e miseráveis que ajudaram a produzir fartamente. Que a consciência lhes seja pesada. E, ainda uma última observação: Estes homens ricos são os verdadeiros pobres, uma vez que eles possuem apenas o dinheiro. Não possuem o entendimento do humano e da humanidade. Falta-lhes o conhecimento. Então, para eles - segue a fábula:


Era uma vez um casal sem filhos que vivia numa pequena cidade do interior. Eles eram conhecidos por serem muito avarentos e nunca estarem satisfeitos com nada. Se estava sol, queixavam-se do calor; se estava frio e chuva queixavam-se de viver num sítio onde nem sequer podiam sair de casa... Para além do mais, eram capazes de tudo por uma moeda de ouro!

Um dia, um duende brincalhão que por ali passava ouviu o que se comentava na cidade sobre o casal, e decidiu provar se era verdade tudo aquilo que se dizia sobre eles.

Numa tarde em que o marido vinha da floresta carregado com lenha, o duende apareceu-lhe de dentro do tronco de uma árvore e disse-lhe: "Olá bom homem! Sentes-te bem? Pareces cansado e triste... Será que estás com fome ou doente?

O homem, um pouco assustado com a presença do duende, respondeu: "Não...não estou doente nem cansado, e também não tenho fome... nada de mal se passa comigo. Só estou triste porque eu e minha mulher somos pobres e não conseguimos ter muitas coisas boas como gostaríamos de ter... 

Então o duende respondeu: "Se não tens fome nem frio nem estás doente, então alegra-te porque não és pobre!" Mas o homem insistiu: "Sou sim. Um homem que não tem ouro é pobre !"

O duende riu-se e respondeu: "Olha que estás enganado. Eu se quiser posso ter todo o ouro do mundo, pois como sou duende sei onde se escondem todos os tesouros. Mas a mim o que me faz falta é a luz do dia, ter o que comer e uma casa quentinha onde possa dormir descansado. Além disso preciso de ter saúde e ser forte para poder caminhar e apreciar tudo o que me rodeia. E como tenho tudo isso sou muito rico e feliz!

"Disparate!" Disse o homem, e insistiu "Ser pobre quer dizer que não se tem ouro. E como eu não tenho ouro não posso ser feliz".

"Tenho muita pena de ti homem", disse-lhe o duende "E para que sejas feliz como achas que deves ser, vou dar-lhe uma galinha que todos os dias porá um ovo de ouro. Só terás de esperar e recolher todos os dias um ovo. Não tarda nada, terás todo o ouro que sempre desejaste ter e tu e a tua mulher serão felizes para sempre".

Do tronco onde estava o duende saiu uma galinha que cacarejava alegremente. O homem, espantado, colocou-a rapidamente debaixo do braço e desatou a correr ladeira abaixo direitinho a casa, enquanto o duende ria às gargalhadas. Assim que entrou em casa mostrou à sua esposa a galinha e contou-lhe tudo o que tinha acontecido.

Marido e mulher ficaram toda a noite à espera que a galinha pusesse o tão desejado ovo de ouro. De manhã cedo, a galinha começou a cacarejar e, pouco depois, surgiu debaixo dela um enorme e brilhante ovo de ouro!

Ao verem o ovo, o casal ficou radiante mas, minutos depois, a mulher comentou: "Que chatice... teremos de esperar até amanhã para termos outro ovo de ouro!" Ao que o marido respondeu: "Pois é...que azar. Terão de passar muitas semanas até termos ovos suficientes para sermos os mais ricos da cidade. Devia ser por isso que o duende se ria às gargalhadas quando me deu a galinha".

Então a mulher lembrou-se: "Sempre ouvi dizer que as galinhas já tem dentro delas todos os ovos que vão pôr... Se isso é verdade, porque é que não matamos agora a galinha e tiramos todos os ovos de ouro de uma vez? Seremos bem mais espertos do que o duende pensa!" 

O homem concordou, e sem hesitar, pegaram na pobre galinha e abriram-na para assim poderem tirar todos os ovos. Mas qual não foi o espanto do casal ao ver que dentro da galinha não havia nenhum ovo de ouro...Marido e mulher começaram a praguejar e a chorar, lamentando-se da sua sorte, pois por ganância tinham perdido para sempre a galinha dos ovos de ouro.

Espreitando pela janela, o duende ria-se e abanava a cabeça, pensando que a verdadeira felicidade não está em ter ou não ter ouro mas está no coração de cada um.

Também, neste mesmo sentido, recomendo, do rico folclore gaúcho a lenda da Salamanca do Jarau. Nela, o dinheiro, ou o ouro, só tinha valor quando era para atender a uma necessidade real, que não a da acumulação.














quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Crime e Castigo. Fiódor Dostoiévski.

Recorro a Paulo Bezerra, o tradutor de Crime e Castigo, diretamente do russo, para iniciar este post: "Há cento e cinquenta anos uma bomba explodia em Petersburgo; vinha à luz o romance Crime e Castigo (1866), narrando a história de um jovem inteligentíssimo e culto que assassina uma velha usurária, motivado por uma teoria segundo a qual os indivíduos socialmente nocivos e inúteis devem ser eliminados". Esta nota aparece ao final da obra, em uma espécie de posfácio - sob o título de - Um romance que o tempo consagrou.
Tradução direto do russo. Editora 34.


A velha usurária é Aliena Ivánovna, com quem Rodion Románovitch Raskólnikov, ou simplesmente Ródia, o inteligentíssimo e culto jovem penhorava alguns objetos que lhe sobravam, em troca de dinheiro. Mas o assassinato é duplo. Como aparecera, no momento do assassinato, a sua meia-irmã, Lisaveta Ivánovna, também sobrou para ela. As duas, na concepção de Ródia, eram inúteis em virtude da prática da agiotagem e da venda dos objetos penhorados. Este fato é o tema central do romance. Um complexo romance de 566 páginas. O livro que eu li é da Editora 34, em reimpressão de 2018. O livro se divide em seis partes, mais um epilogo, lista de personagens, posfácio do tradutor e breves traços biográficos do autor e do tradutor.

O jovem Ródia nos oferece o fio condutor de toda a obra. Na primeira parte (sete capítulos) encontramos o jovem morando mal, em verdadeiros cubículos, em Petersburgo e, completamente desencontrado da vida e que, entre momentos de lucidez e de loucura, irá perpetrar o seu crime. Na segunda parte (mais sete capítulos) ele é acometido pela culpa, que se transforma em loucura. Procura se desfazer de todos os sinais e do butim do duplo assassinato, destacando-se que ele não tirou proveito nem dos objetos e nem do dinheiro roubado. Nessa segunda parte chegam a Petersburgo a sua mãe, Pulkhéria Aleksándrovna Raskólnikova, e a irmã Advótia Románovna Raskólnikova, a Dúnia, para casar-se com Piotr Pietróvitch Lújin, seguramente, um personagem do mal. Este namoro marca um encontro entre a singeleza e a inocência com o mal absoluto. Ródia impedirá o casamento. Ainda neste capítulo, Ródia acode um conhecido, morto em um atropelamento. Era o pai de Sônia, personagem fundamental, na continuidade do romance. Ródia dá todo o dinheiro, que recém acabara de receber de sua mãe, para os funerais. Sua bondade não tinha limites.

Na terceira parte (seis capítulos) muitos personagens são envolvidos, com destaque para Porfiri Pietróvitch, o astuto juiz de instrução, que insinua não desconfiar de nada, jogando verde para colher maduro. As suspeitas se avolumam e o cerco se fecha. Iniciam-se as discussões jurídicas em torno do mote do crime. Na quarta parte (de novo seis capítulos) um antigo personagem se transforma em ator principal. Trata-se de Arkadi Ivánovitch Svidrigáilov, marido de Marfa Pietróvna, donos de uma propriedade rural onde Dúnia, a irmã de Ródia, trabalhou como governanta e fora importunada pelo proprietário. Este, na condição de viúvo, retorna ao cenário. Dostoiévski lhe reserva um final trágico. Outro personagem do mal. Aparece um assassino confesso das irmãs Ivánovna. Aparentemente, Raskólnikov está livre de suspeitas.

Na quinta parte (cinco capítulos) praticamente todos os personagens são envolvidos. O grande destaque fica para a confissão do crime, que Ródia faz para Sônia, apontando também para os seus motivos: "Vê só: eu queria tornar-me um Napoleão e por isso matei". E continua, aprofundando as razões do crime: "O negócio foi o seguinte: certa vez me fiz uma pergunta: o que aconteceria se, por exemplo, no meu lugar estivesse Napoleão e, para começar a carreira, ele não tivesse nem Toulon, nem o Egito, nem a travessia do Mont Blanc, mas em vez dessas coisas bonitas e monumentais houvesse pura e simplesmente alguma velha ridícula, usurária, que ainda por cima ele precisasse matar para lhe surrupiar o dinheiro do cofre (para a sua carreira, estás entendendo)?" Eis o mote. Não um assassino, mas um herói.

Na sexta parte (oito capítulos) ocorrem os encaminhamentos para o final. O juiz de instrução o acusa e o tribunal o condena a trabalhos forçados na Sibéria. Ao tribunal ele confessou:"Fui eu que matei com um machado a velha viúva do funcionário e sua irmã Lisaveta e a roubei". Seguem dois capítulos, na qualidade de epílogo. Neles é narrada a prisão, a relação com o trabalho e com os colegas presos e, acima de tudo, a dedicação de Sônia. Juntos leem a Ressurreição de Lázaro numa simbologia com a sua própria ressurreição, ao lado de Sônia, para um novo mundo e para um novo sentido do viver. Vejamos o parágrafo final: "Mas aqui já começa outra história, a história da renovação gradual de um homem, a história do seu gradual renascimento, da passagem gradual de um mundo a outro, do conhecimento de uma realidade nova, até então totalmente desconhecida. Isto poderia ser o tema de um novo relato - mas este está concluído". Cheio de simbolizações e intenções. Acima de tudo um show de narrativa e de descrição de personagens.

Apresento ainda os dois parágrafos da contracapa do livro: "Publicado em 1866, Crime e castigo é a obra mais célebre de Fiódor Dostoiévski. Neste livro, Raskólnikov, um jovem estudante, pobre e desesperado, perambula pelas ruas de São Petersburgo até cometer um crime que tentará justificar por uma teoria: grandes homens, como César ou Napoleão, foram assassinos absolvidos pela História. Este ato desencadeia uma narrativa labiríntica que arrasta o leitor por becos, tabernas, e pequenos cômodos, povoados de personagens que lutam para preservar sua dignidade contra as várias formas da tirania.

Pela primeira vez em nossa língua em tradução direta do russo, Crime e castigo - agora revelado sem a mediação e o peso que a cultura francesa representava para os tradutores do passado - mostra  com nitidez suas múltiplas possibilidades de leitura: a voz inconfundível de cada personagem, a análise aguda da sociedade, os diversos movimentos da alma de Raskólnikov, da extrema contração do ódio à redenção pelo amor".





segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

A banalidade do mal. Hannah Arendt.

Há muito tento encontrar uma explicação para o tanto de ódio latente na sociedade. Não consigo imaginar o que faz com que as pessoas sejam realmente tão más como estão sendo. Nem mesmo a idade aplaca a ira e ódio de muitos. Está aí a realidade brasileira a nos preocupar a todos. Nunca o ovo da serpente esteve tão visível. E por falar em ovo da serpente, este tema necessariamente remete ao nazi-fascismo, o ponto máximo da extravasão, do transbordamento da maldade humana.


Há muito também me acompanha uma frase de Maquiavel, que sem dúvida, ajuda a entender a questão. Ela diz o seguinte: "Não inflige dor um porco a outro um cervo a outro: somente o homem outro homem mata, crucifica e despoja!" (Em O asno). Por que será?  Uma indagação, com resposta óbvia, também me acompanha. Por que o cachorro é o melhor amigo do homem? Ele o é, porque não sabe contar dinheiro. O belo livro Juliano, de Gore Vidal, me contou que o rei Midas era um fabricante de armas. Duas perguntas básicas. A estrutura ou a organização da sociedade está fundada sobre bases viáveis? Não seriam o dinheiro, as armas, a competição fatores de potencial explosivo sobre esta organização humana?

Tenho lido bastante. O fenômeno do nazi-fascismo precisa de maiores explicações, de maiores explicitações de suas causas. Caso contrário este fenômeno se repetirá. Todas as preocupações com a educação, com a formação das pessoas, deve ter como objetivo máximo, nos cobra Adorno, que Auschwitz não se repita. Desde a leitura de Primo Levi, soube que no Tribunal de Nuremberg não havia culpados. Havia apenas zelosos funcionários que cumpriam os seus "deveres". E por cumpri-los, ascendiam rapidamente em suas carreiras. Para onde nos leva a educação que não nos ensina a insubmissão, a rebeldia. A Fita branca, continua a me trazer inquietações.


Recentemente li  Rubens Casara. Sociedade sem lei - pós-democracia, personalidade autoritária, idiotização e barbárie. O que é este fenômeno da personalidade autoritária. Os estudos de Adorno, em 1950, nos Estados Unidos, nos indicam que não é nenhum grande ditador e muito menos um monstro. É a pessoa que está ao nosso lado, a cada momento do nosso cotidiano. É uma pessoa movida pelo senso comum, que perdeu a sua capacidade de reflexão. A crítica e a crítica da crítica e a dialética simplesmente desapareceram do horizonte humano. Os seres são transformados em homem massa, moldados à feição de quem domina o sistema. Estas pessoas se se fanatizam, seus heróis são seres absolutamente toscos, mas mesmo assim, são transformados em mitos. É muito perigoso viver nesta sociedade. A respeito: http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/01/a-personalidade-autoritaria-em-tempos.html

Li também Hannah Arendt. Na contracapa do livro Eichmann em Jerusalém - Um relato sobre a banalidade do mal, está escrito "Brilhante e perturbador" Trata-se do julgamento de Eichmann, o encarregado de Hitler para as questões judaicas. Fora ele o responsável para tornar a Alemanha, os países anexados e toda a Europa Judesrein, isto é, livre de judeus. Em suas mãos estava a deportação, a logística da concentração dos judeus em guetos e campos de concentração, onde seriam executados em câmaras de gás ou morrerem de exaustão pelo trabalho nas fábricas dos arredores. Sob o slogan de Arbeit macht frei, somente na fábrica da IG Farben, a poderosa indústria química alemã, morreram 25 mil trabalhadores.

O livro é isso mesmo. "brilhante e perturbador". Vejamos o subtítulo: Um relato sobre a banalidade do mal. Do que se trata? Na última frase do livro encontramos uma explicação: "Foi como se naqueles últimos minutos estivesse resumindo a lição que este longo curso da maldade humana nos ensinou - a lição da temível banalidade do mal, que desafia as palavras e os pensamentos". Eichman fora capturado em Buenos Aires e levado para Jerusalém, no maior julgamento de carrascos nazistas, depois de Nuremberg. Para surpresa geral; Nenhum monstro estava sendo julgado. Mais uma vez, um homem, de inteligência mediana ou pouco privilegiada, que internalizara a obediência como virtude suprema estava sendo julgado. Pela sua obediência "cadavérica" recebera todos os prêmios possíveis na ascensão de carreira.


Dou um panorama melhor do livro. Sua contracapa: "Sequestrado num subúrbio de Buenos Aires por um comando israelense, Adolf Eichmann é levado para Jerusalém, para o que deveria ser o maior julgamento de um carrasco nazista depois do tribunal de Nuremberg. Mas o curso do processo produz um efeito discrepante: no lugar do monstro impenitente por que todos esperavam, vê-se um funcionário mediano, um arrivista medíocre, incapaz de refletir sobre seus atos ou de fugir de clichês burocráticos. É justamente aí que o olhar lúcido de Hannah Arendt descobre o "coração das trevas", a ameaça maior às sociedades democráticas: a confluência de capacidade destrutiva e burocratização da vida pública, expressa no famoso conceito de "banalidade do mal". Numa mescla brilhante de jornalismo político e reflexão filosófica, Arendt toca em todos os temas que vêm à baila sempre que um novo morticínio vem abalar os lugares-comuns da política e da diplomacia". Mais em http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/02/eichmann-em-jerusalem-um-relato-sobre.html

E para terminar, onde mora o perigo? Sempre existe um burocrata ao nosso lado, disposto à obediência "cadavérica" e ávido por promoções na carreira, para receber uns trocos a mais. Um fiel cumpridor de suas obrigações Urge a insubmissão. Urge aprender a desobedecer. Nada é natural. Tudo faz parte de uma aprendizagem. Também se ensina a odiar.

Por fim, buscando explicações para o ódio latente, busquei em O ódio como política, a reinvenção as direitas no Brasil, no artigo de Luis Felipe Miguel "A reemergência da direita brasileira, as três grandes fontes de ódio no Brasil de hoje: as igrejas cristãs da teologia da prosperidade; o velho anti comunismo, herdado da doutrina da ideologia da Segurança Nacional e as doutrinas do ultra liberalismo  dos "livres mercados", em que a competição e o $uce$$o são apresentados como as virtudes supremas. Nada de fraternidade, solidariedade e nada de compaixão. Já encomendei outro livro, mas este, por enquanto, está na minha lista de espera. Espelho do Ocidente, o nazismo e a civilização ocidental, de Jean-Louis Vullierme. E fico com os meus temores. Estamos rodeados de personalidades autoritárias, possuídas pela banalidade do mal. O mal nos ronda.

P.S. (08.03.2019) "Hannah Arendt descrevera o 'crime de escritório' e alguns de seus mecanismos. Trata-se de uma contribuição importante, pois mostra a existência de uma alavanca por meio da qual uma ideologia vem a funcionar sem necessidade de uma adesão completa da maioria de seus executantes. Mas ela deixa inexplorada a causa primeira, na medida em que uma alavanca só é eficaz quando se aplica a uma força já disponível, independentemente dela". Páginas 8 e 9.




quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. Hannah Arendt.

"Brilhante e perturbador", lemos na contracapa do livro de Hannah Arendt Eichmann em Jeruslém, um relato sobre a banalidade do mal. A frase é de Stephen Spender do The New York Review of books. E eu só tenho a repetir, brilhante e perturbador. Crimes contra a humanidade ou contra um povo? Crimes cometidos individualmente ou por um "inconsciente coletivo", cegamente disposto a obedecer, em busca de ascensão na carreira? Uma justiça espetáculo, ou justiça por justiça, simplesmente. Eis algumas questões que livro suscita. Não me atrevo a fazer a resenha deste livro, mas adoraria que todos o lessem.
"Brilhante e perturbador".

Neste sentido, de não apresentar uma resenha pessoal, me atenho a algumas informações históricas, a transcrever a contracapa e a orelha do livro e dar o título dos capítulos, bem como a fazer o anúncio dos dois momentos finais do livro, em que a autora se posiciona diante das polêmicas provocadas pelo livro. Em vários momentos, a autora ajuda a situar o livro. Ficamos com o mínimo possível, ao que ela mesma apresenta em nota ao leitor: "Esta é uma edição revista e aumentada do livro lançado em 1963. Fiz a cobertura do processo de Eichmann em Jerusalém, em 1961, para a revista The New Yorker, na qual este relato foi publicado, ligeiramente abreviado, nos meses de fevereiro e março de 1963".

Eichmann fora o chefe da Seção de Assuntos Judeus no Terceiro Reich e responsável, portanto, pelos programas de deportação de judeus, da Theresienstadt, e da logística encarregada de fazer os judeus chegarem aos campos de concentração e execução, após a "Solução Final". A grande questão, que apareceu no julgamento, era a de que Eichmann não se mostrou um fanático ou um monstro, mas um burocrata, super obediente, em busca de ascensão profissional. Mas, fico por aí...

Vamos aos capítulos. Eles nos dão um panorama geral sobre a questão do tratamento dado aos judeus durante o desenrolar da guerra. Vejamos: I. A Casa da Justiça (o Tribunal onde se realizou o julgamento); II. O acusado; III. Um perito na questão judaica; IV. A primeira solução: expulsão (Neste e nos próximos capítulos são mostrados os passos sucessivos do projeto de Hitler de tornar a Europa livre dos judeus - Europa Judesrein); V. A segunda solução: concentração; VI. A solução final: assassinato; VII. A Conferência de Wannsee, ou Pôncio Pilatos; VIII. Deveres de um cidadão respeitador das leis (chamo especial atenção para este capítulo - a obediência perante a razão emancipadora de Kant, ou a obediência "cadavérica" ao dever. Eichmann confessou ter lido Kant); IX. Deportações do Reich: Alemanha, Áustria e o Protetorado (Neste e nos próximos capítulos são mostrados os diferentes momentos no trato com os judeus em seus respectivos países - além de tudo - grandes aulas de história); X. Deportações da Europa Ocidental - França, Bélgica, Holanda, Dinamarca, Itália; XI. Deportações dos Bálcãs - Iugoslávia, Bulgária, Grécia, Romênia; XII. Deportações da Europa Central - Hungria e Eslováquia; XIII. Os centros de extermínio no Leste; XIV. Provas e testemunhas; XV. Julgamento, apelação e execução.

O livro termina com o uso da expressão que se tornou mundialmente famosa e que está no subtítulo do livro: "Foi como se naqueles últimos minutos (execução por enforcamento) estivesse resumindo a lição de que este longo curso de maldade humana nos ensinou - a lição da temível banalidade do mal,  que desafia as palavras e os pensamentos". Ainda seguem o epílogo e um pós escrito. Neles a autora volta ao tema do julgamento, diante das críticas ao livro. 

Vamos a contracapa: "Sequestrado num subúrbio de Buenos Aires por um comando israelense, Adolf Eichmann é levado para Jerusalém, para o que deveria ser o maior julgamento de um carrasco nazista depois de Nuremberg. Mas o curso do processo produz um efeito discrepante: no lugar de um monstro impenitente por que todos esperavam, vê-se um funcionário mediano, um arrivista medíocre, incapaz de refletir sobre seus atos ou de fugir aos clichês burocráticos. É justamente aí que o olhar lúcido de Hannah Arendt descobre  o "coração das trevas", a ameaça maior às sociedades democráticas: a confluência da capacidade destrutiva e burocratização da vida pública, expressa no famoso conceito de "banalidade do mal". Numa mescla brilhante de jornalismo político e reflexão filosófica, Arendt toca em todos os temas que vem à baila sempre que um novo morticínio vem abalar os lugares-comuns da política e da diplomacia".

Vamos à orelha: "Na Casa da Justiça de Jerusalém, o palco estava montado para um espetáculo de magnitude histórica; as vítimas de ontem alçadas à condição de juízes do antigo carrasco. Mais que um julgamento, uma lição e uma advertência: nada frearia a determinação do Estado judeu em capturar gente como Adolf Eichmann, um dos arquitetos da "solução final", raptado num subúrbio de Buenos Aires por um comando israelense em maio de 1960.

Tudo teria seguido como planejado, se ao menos o curso do processo não tivesse produzido a mais bizarra desproporção: quanto mais inflada a retórica da acusação, quanto maior o horror dos testemunhos, tanto mais se apagava e apequenava a figura do "monstro" na cabine de vidro. O fato não escapou aos olhos da filósofa Hannah Arendt, que assistia ao julgamento como correspondente da revista The New Yorker. Esquivando-se à paixão reinante, ela pode ver Eichmann em toda a sua mediocridade: um arrivista de pouca inteligência, uma nulidade pronta a obedecer a qualquer voz imperativa, um funcionário incapaz de discriminação moral - em suma, um homem sem consistência própria, em que os clichês e eufemismos burocráticos faziam as vezes de caráter.

Uma vítima, portanto? Longe disso: não há sofisma capaz de apagar seu papel na deportação de milhões de judeus para os campos de extermínio nazistas. O problema é que Eichmann descobre na própria mediocridade seu último trunfo: como condenar um funcionário honesto e obediente, cumpridor de metas, que não fizera mais do que agir conforme a ordem legal vigente na Alemanha de então?

A partir daí, fundindo o jornalismo político à reflexão histórica e filosófica, Arendt explora as implicações do caso Eichmann: o que fazer das noções de culpa e responsabilidade no Estado burocrático moderno? Em que medida a tragédia do holocausto deve servir para reformar o conceito usual de soberania e as relações entre os Estados? Como se vê, questões que não perderam a candência".

Me permito uma frase, retirada do primeiro capítulo, que eu adaptaria para a realidade brasileira e que diz respeito à justiça como espetáculo. Diz a escritora e filósofa: "A justiça não admite coisas desse tipo (espetáculo); ela exige isolamento, admite mais a tristeza do que a raiva e pede a mais cautelosa abstinência diante de todos os prazeres de estar sob a luz dos refletores". E uma última nota. A edição da Companhia das Letras não tem uma nota, nem de apresentação e nem um posfácio.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Por quem os sinos dobram. Ernest Hemingway.

Em primeiro lugar quero afirmar que tenho um profundo interesse por tudo o que se refere à Guerra Civil Espanhola. Igual fascínio também dedico a Ernest Hemingway. Depois, em minha memória mais profunda, eu creio que parte deste livro foi lido para nós no refeitório, durante o almoço. Nós tínhamos este hábito, quando alunos do ginásio, no Seminário São José de Gravataí, em nosso tempo de seminário. Com a leitura, fiquei em dúvida, por causa de Maria e Robert Jordan, que declaram amor mútuo, de formas belíssimas. De qualquer maneira a censura funcionava. Mas me permanece a dúvida.
A capa serve de pista. Detonar.

O interesse de agora, veio de uma relação de clássicos. Também, não tão distante no tempo, fiz uma visita ao escritor, passando pelos seus lugares preferidos em Havana, como o Hotel Ambos Mundos, na Bodeguita del Medio e no Floridita. Ali tomava os seus aperitivos preferidos, o mojito na Bodeguita e o daikiri no Floridita. Neste último tem um busto em sua homenagem. Também lembrei de Leonardo Padura e o seu O homem que amava os cachorros. Padura é cubano e um dos focos de seu livro é a sangrenta guerra civil espanhola.
Com Hemingway no Floridita.

Lembro também do João Ubaldo Ribeiro, de uma fala sua. Nos contava que um dia lhe pediram um romance longo e ele escreveu O povo brasileiro. Por quem os sinos dobram tem 43 capítulos espalhados ao longo das 671 páginas do livro. Souberam, ambos, mostrar as qualidades de um narrador. Hemingway demora nos diálogos, nas conjecturas que seus personagens fazem, nos vários focos sob os quais viaja a sua narrativa, além de traçar detalhadamente os seus perfis.

Vamos à centralidade do livro e aos seus personagens principais. A capa do livro nos dá a pista do fio condutor do romance. Nela aparece um detonador de explosivos. Isso mesmo. Robert Jordan é um americano, quase sempre chamado de inglês, ao longo do livro. Ele é professor de espanhol nos Estados Unidos e atua como voluntário na guerra, na qualidade de detonador de explosivos, no caso, recebera a tarefa de explodir uma ponte.

Em torno de Robert Jordan forma-se o grupo, ou ele se integra nele, composto por Pablo, Pilar, um cigano e mais três ou quatro republicanos espanhóis e a doce Maria. Maria era protegida de Pilar, mas quando ela vê o inglês chegar, confia-a imediatamente a ele. Em três dias vivem um amor intenso e de juras eternas. O grupo está em meio a florestas, cercados de inimigos. De fora do grupo merece destaque o guerrilheiro El Sordo e os chefes, o general Golz e o jornalista Karkov.

Robert Jordan e o general Golz, ao que tudo indica, tinham uma ação sincronizada. Jordan explodiria a ponte e Golz ordenaria um ataque aéreo. Mas a comunicação ainda era por mensageiros (ai se pudéssemos nos comunicar por rádio, reflete Robert) e estes poderiam ser interceptados ou suscitar desconfianças. É o que ocorreu com esta ação. Nela interferiu um comandante francês, totalmente fora dos esquadros. Simplesmente prendeu o mensageiro. São muitos os grupos que constituem os revolucionários, como os republicanos, os comunistas, os anarquistas e mais as brigadas internacionais com as suas peculiaridades. Muitas reflexões sobre a morte, o seu significado e o ato de matar.

O romance ganha um final dramático, reservado aos dois últimos capítulos. Nele estão os sonhos de Robert Jordan e de Maria, a projeção de seus dias de amor em Madri. Iria levá-la a todos os belos lugares que ele conhecera. Nele está a precisão com que executará o seu trabalho de explosão da ponte, apesar dos imprevistos ocorridos com Pablo. Pablo é uma das figuras centrais do romance. Falta-lhe convicção e fé revolucionária e muitas vezes se volta contra o grupo, após enormes bebedeiras de vinho. Pablo era o marido de Pilar. Várias vezes foi poupado de ser morto pelos companheiros. Mas na luta sempre era o mais valente, o mais eficiente e também o mais impiedoso. É um dos que permanece incólume e decisivo até o final da narrativa. Quanto ao casal amoroso, Robert Jordan e Maria, juram que, se apenas um deles sobreviver, este sobrevivente será os dois.

Destaco uma das frases finais: São reflexões de Robert, o inglês: "Lutei durante um ano pelo que acredito. Se vencermos aqui, venceremos em todos os lugares. O mundo é um bom lugar e vale a pena lutar por ele, e odeio ter que deixá-lo. Você teve muita sorte por ter uma vida tão boa. Teve uma vida tão boa quanto a do seu avô, apenas não tão longa. Teve uma vida boa como outra pessoa qualquer, por causa desses últimos dias. Você não vai querer reclamar, justo quando teve tanta sorte. Mas eu gostaria de passar à frente o que aprendi. Cristo, eu aprendi rápido no final".

Deixo ainda espaço para a apresentação do livro, na sua orelha, escrita pelo editor Ênio Silveira: "Por quem chora aquele sino? Aquele sino chora por todos nós. Com isso quer o poeta que forneceu o título deste livro significar a unidade do mundo. Somos um todo, e tudo quanto afeta qualquer das partes afeta de um modo ou outro todos os demais.

O drama que Hemingway descreve é pungentíssimo - é um drama de guerra civil, a mais horrorosa de todas. Quereis ver a crueldade humana em seu fastígio? Estudai as guerras entre irmãos.

A cena da matança dos 'fascistas', organizada por Pablo e no romance contada por Pilar, sua mulher, é das coisas mais arrepiantes que se escreveram. Veio a retaliação. Os fascistas souberam vingar-se dos horrores que no começo os comunistas espanhóis perpetraram contra homens cujo crime único era serem proprietários e pessoas de boa situação social.

Não há quem não leia este livro e não guarde na memória, para sempre, o quadro da 'malhação com manguais', concebido pelo hediondo Pablo e executado por camponeses ébrios de vinho e ideologia (Trata-se do capítulo 10, das páginas 150-197).

E todas as demais cenas do livro são igualmente traçadas de maneira a se tornarem inesquecíveis. Hemingway produziu um livro que ocupará lugar à parte na literatura moderna". Apenas para situar, o autor nasceu em 1889 e morreu em1961. Por quem os sinos dobram foi escrito em 1940 e no ano de 1954 foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura.
Um dos hotéis preferidos de Hemingway em Havana.

Ainda, para encerrar, a frase epígrafe, contracapa e mote para o livro: "Nenhum homem é uma Ilha, um ser inteiro em si mesmo; todo homem é uma partícula do Continente, uma parte da Terra. Se um Pequeno Torrão carregado pelo Mar deixa menor a Europa, como se todo um Promontório fosse a Herdade de um amigo seu, ou até mesmo a sua própria, também a morte de um único homem me diminui, porque eu pertenço à Humanidade. Portanto, nunca procures saber por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti". A autoria é de John Donne.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Uma temporada no inferno e a correspondência. Rimbaud.

De uma relação de clássicos e, de tanto ouvir falar, encomendei o livro de Arthur Rimbaud, Uma temporada no inferno, seguido de sua correspondência, especialmente, a que ele manteve a partir de suas viagens pela África, onde ele empreendeu no mundo dos negócios. Esta correspondência abrange estes seus negócios e a relação com os seus familiares. Abrange ainda, a que ele manteve com Paul Verlaine, em seus tempos de escritor. Com Verlaine ele manteve um relacionamento que se situou entre o infeliz e o trágico, já que até tiro houve.
Quase a obra completa de Rimbaud.


Creio que Rimbaud foi um dos seres humanos mais infelizes que este mundo já conheceu. O título de sua curta obra, Uma temporada no inferno, bem traduz o imenso inferno que foi a sua vida. Ele nasceu em Charleville, no interior da França, já próximo à Bélgica, em 1854 e morreu em Marselha, em 1891. Seu pai era um militar, que sumiu da vida, deixando para a mãe a penosa tarefa da educação de quatro filhos. Arthur, para o bem ou para o mal, era o gênio da família. A edição do livro que eu li é da L&PM, da coleção Rebeldes&Malditos. Ela tem em suas páginas introdutórias uma biografia bastante detalhada. Apesar de sua vida curta, ela teve duas fases bem distintas: a de estudante e escritor e a de comerciante na África.

Uma temporada no inferno ocupa as páginas entre a 19 e a 79 e a edição é bilíngue. A metade destas páginas, portanto. Ele mesmo a editou, mas retirou do editor apenas alguns exemplares dos 500 que encomendara. Estes que sobraram ficaram intactos por trinta anos. O livro é datado pelo escritor com a data abril/agosto de 1873. Vejamos o que diz a sua biografia com relação a este ano.

1873. Janeiro: Ao chamado de Verlaine, Rimbaud retorna a Londres. A vida em comum recomeça.
4 de abril: Rimbaud e Verlaine deixam a Inglaterra.
12 de abril: Rimbaud vai para a fazenda da mãe em Roche.
26 de maio: viaja mais uma vez para Londres em companhia de Verlaine.
3 de julho: Após uma briga, Verlaine abandona Rimbaud precipitadamente e viaja para Bruxelas. 
8 de julho: Rimbaud encontra-se com Verlaine em Bruxelas. 
10 de julho: Verlaine atira em Rimbaud com um revólver, ferindo-o no punho esquerdo. Depois de se tratar, Rimbaud dá queixa na polícia, mas a retira alguns dias depois. Mesmo assim, Verlaine é condenado a dois anos de prisão. 
20 de julho: Rimbaud volta para Roche, onde acaba de escrever Uma temporada no inferno.
Outubro: Uma temporada no inferno é publicada por conta do autor pela Alliance Typographique de Bruxelas. Aos 19 anos para de escrever e em momento alguma retoma a escrita.

Registro estes dados para mostrar o que era realmente a vida do jovem neste período. Os encontros com Verlaine ainda continuavam, mas este procurou refazer a sua vida, convertendo-se a um piedoso cristianismo e a dedicar muitos de seus anos ao estudo da obra de Verlaine e a escrever prefácios para diferentes edições. Estes aparecem ao final deste livro da L&PM. Em 1878 Rimbaud iniciou o seu périplo africano, tendo antes, em 1854, escrito as Iluminações.

Na África se dedica a negócios e trambiques, com venturas e desventuras na costa oriental, na então Abissínia, Harar,, Daukalis e Somália. Negocia de tudo. Embora o ficar rico tivesse sido o seu grande propósito, não amealhou grande fortuna. Armas e escravos figuravam entre as mercadorias que negociava. Cedo contraiu grave doença, que o leva à morte, passando antes pela amputação de uma de suas pernas. Esse tempo de doença ele passa na cidade de Marselha, onde é acudido pela sua irmã. Mas a África, os seus negócios e a administração de suas finanças não lhe saem da cabeça, nem em seus últimos momentos de delírio. Em síntese, uma vida infeliz, uma vida de inferno, no reino de Cam, como ele dizia, maldizendo os negros

Embora a sua pequena obra, é um dos homens da literatura mais estudados, tal a intensidade de sua escrita, meio poesia, meio prosa, ou uma mistura das duas. Como amostra, passo para vocês a abertura de seu livro:

Uma Temporada no inferno: "Antes, se lembro bem, minha vida era um festim em que se abriam todos os corações, todos os vinhos corriam.
Uma noite, fiz a Beleza sentar no meu colo. E achei amarga. Injuriei.
Me preveni contra a justiça.
Fugi. Ó bruxas, ó misericórdia, ó ódio, meu tesouro foi entregue a vocês!
Consegui fazer desaparecer do meu espírito toda a esperança humana. Para extirpar qualquer alegria dava o salto mudo do animal feroz.
Chamei o pelotão para, morrendo, morder a coronha dos fuzis. Chamei os torturadores para me afogarem com areia, sangue. A desgraça foi meu Deus. Me estendi na lama. Fui me secar no ar do crime. Preguei peças à loucura.
E a primavera me trouxe o riso horrível do idiota.
Ora, ultimamente, chegando ao ponto de soltar o último basta!, pensei em buscar a chave do antigo festim, que talvez me devolvesse o apetite dele.
A caridade é a chave. Inspiração que prova que eu estava sonhando!
'Continuarás hiena etc...', repete o demônio que me orna de amáveis flores de ópio. 'A morte virá com todos os teus desejos, e o teu egoísmo e todos os pecados capitais'.
Ah! pequei demais; - Mas caro Satã, por favor, um cenho menos carregado! e esperando algumas pequenas covardias em atraso, como aprecia no escritor a falta de faculdades descritivas e instrutivas, lhe destaco estas assustadoras páginas do meu bloco de condenado eterno".

No horizonte Nietzsche, Freud e todo o existencialismo. Gostei de uma observação na resenha biográfica. A severa mãe o admoesta. Qual a razão? Por Verlaine lhe haver indicado a leitura de Os miseráveis.