sábado, 15 de agosto de 2020

Carta aberta à juíza Inês Marchalek Zarpelon. Por Romeu G, de Miranda.

O espaço desse blog, no dia de hoje, está aberto para uma justa e necessária indignação. A indignação de quem sente na pele a dor deste agravo na pena em função da raça. A justa e necessária indignação é do meu amigo Romeu Gomes de Miranda que tem uma vida toda dedicada a causas humanistas e igualitárias. O agravo da pena aplicada em função da raça traz ao século XXI, o século XIX, na figura de Lombroso, que fazia esse tipo de acusação.
O fato também nos lembra a origem do Poder Judiciário brasileiro, remanescente dos tempos da escravidão, da sua legitimação. A condenação agravada pela sentença proferida pela juíza nos faz desacreditar até do próprio processo civilizatório. Mas vamos à expressão da indignação do nosso companheiro Romeu, que com certeza, expressa também o sentimento de todos nós:

Senhora Juíza.
Não utilizo aqui o tratamento dispensado aos juízes porque para nós, negros e negras do Paraná, a senhora já perdeu essa condição, ainda que a Corregedoria Geral da Justiça nenhuma penalização venha lhe aplicar.
Na decisão que condenou o réu Natan Vieira da Paz, a senhora, num dado momento, assim se expressou:
“Sobre sua conduta social nada se sabe. Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão de sua raça, agia de forma extremamente discreta... “
Mais adiante, por duas outras vezes, a senhora, não satisfeita com a primeira afirmação racista, repete a mesma expressão “ seguramente integrante do grupo criminoso em favor de sua raça”.
Doutora Inês.
Sou negro, professor aposentado da rede pública estadual de Educação. Por mais de trinta anos ensinei em escolas públicas e privadas do Paraná e estou seguro de que prestei um bom serviço à população paranaense, fossem meus alunos descendentes de africanos, italianos, poloneses, árabes, alemães ou judeus. A cor de minha pele, minha “raça”, como diz a senhora, não me levou a integrar nenhum grupo criminoso. A senhora pra exercer a magistratura, deveria saber que etnia, não é fator condicionante de comportamento social. São as condições socio-econômico-educacionais que atuam sobre os indivíduos, na formação de seu comportamento e até na configuração de seu caráter. O povo negro literalmente carregou nas costas a economia do Brasil Colônia.
É do jesuíta André João Antonil a afirmação de que os negros foram as mãos e os pés dos senhores de engenho. Aqui, sob as mais cruéis condições, nosso povo trabalhou como escravizado, por mais de três séculos. Com a destrambelhada abolição da escravatura, e a importação de mão de obra europeia, diga-se de passagem, sob financiamento do Estado brasileiro, saímos para a “liberdade” sem sequer um pedaço de terra para sermos enterrados. Entretanto, paradoxalmente, os proprietários foram regiamente indenizados pela perda da mão de obra escrava. Das senzalas para os mocambos, cortiços e favelas foi o nosso destino. Mesmo assim continuamos lutando, continuamos trabalhando, produzindo pães e livros, elevando prédios e músicas, abrindo estradas e dignificando esportes, assentando portos e singrando os mares. O tom de nossa pele, nossa “raça” como escreveu a senhora em sua infeliz peça condenatória, não impediu que tivéssemos um Pixinguinha e Padre José Maurício, na música, irmãos Rebouças e Enedina Marques, na engenharia, Machado de Assis, Cruz e Souza, Lima Barreto, na literatura, Izaquias Queiroz na canoagem, Ademar Ferreira da Silva na Atletismo, etc, etc, etc.
Doutora: nem vou entrar no futebol porque são tantos Arantes do Nascimento que dignificam o nome do Brasil mundo afora, que a lista ficaria longa em demasia. Em resumo, doutora, nossa “raça” não nos leva a integrar grupos criminosos, como perversa e criminosamente a senhora afirmou. Apesar da histórica discriminação, da secular negação de direitos e oportunidades, temos dado ao país, o melhor de nossos braços, nossos cérebros e nossos talentos. Florestan Fernandes, que sugiro que a senhora leia e estude, disse no seu livro recentemente reeditado, (Significado do Protesto Negro); “não haverá democracia real enquanto o país não acertar contas com o racismo.”
Trago ainda, para seu conhecimento, um pequeno fragmento que retirei do livro Racismo Estrutural, de Silvio Luiz de Almeida, negro, advogado, filósofo, doutor e pós doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo;- “ A Lei que criminaliza os corpos pretos e empobrecidos condiciona um enquadramento marcado pela construção dos comportamentos suspeitos. E se a Lei é o Estado, o suspeito “padrão” é também um suspeito para o Estado “.
E foi em um agosto de 1963, que Martin Luther King, na Marcha sobre Washington, pronunciou estas palavras:

“Eu tenho um sonho, que meus quatro pequenos filhos, um dia viverão em uma nação onde não serão julgados pela cor de sua pele, mas pelo conteúdo do seu caráter”.
Espero, ainda que cético, que a senhora reflita sobre estas palavras, doutora Inês Marchalek Zarpelon.
Curitiba, 13 de agosto de 2020
Prof. Romeu Gomes de Miranda.







4 comentários:

  1. A pedido. O professor Edilson de Paula me pediu para postar, pois ele não conseguiu.
    Conheço e convivi por muitos anos com o professor Romeu, para minha grande sorte. Homem de luta, resistência e de grande familiaridade com as palavras. Tenho certeza que enquanto escrevia essas linhas, conservava os olhos marejados em lágrimas e se estivesse escrevendo em papel, finalizaria com algumas manchas devido ao pranto que cairia. Romeu foi meu grande professor e me guiou pelos caminhos da solidariedade, respeito aos diferentes e prontidão para ajudar quem precisasse, independente de cor, raça, classe social ou orientação sexual. Me solidarizo com ele e com todos que ao lerem a carta sentiram mais uma vez dilacerar seus peitos e embargar suas vozes por mais uma vez das tantas que superaram. Estamos no caos total, com a explicitação de um crescimento neo-fascista e neo-nazista que imaginávamos estar enterrado, no entanto é se imaginamos o porque de tanto ódio e preconceito que se levanta, após a eleição de um monstro para ser Presidente da República, fato este que fez reaparecer, tudo de ruim que estava escondido embaixo dos velhos tapetes.

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  2. Edilson. Também eu tive o privilégio de conviver com o professor Romeu e usufruir de sua amizade. Um ser humano formidável, sempre em busca do ser mais e educando pelo seu conhecimento e pela sua prática de vida. Somos dois privilegiados.

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  3. Professor Romeu , conjuga o verbo "professorar". Sagazmente!

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