Há muito essa peça, ou esse livro estava no meu radar. Nos meus tempos de professor do curso de jornalismo da universidade Positivo os alunos sempre estavam empenhados nos ensaios, sob a coordenação da professora Marília, da peça Um inimigo do povo, de Henrik Ibsen. Lembro que o então aluno Manolo Ramires interpretava o Doutor Stockmann, o famoso "inimigo do povo". Agora, lendo alguns clássicos do teatro, o incluí em minha lista de leituras.
Um inimigo do povo, da L&PM, reimpressão de 2019. Tradução de Pedro Mantiqueira.
Um inimigo do povo, da L&PM, reimpressão de 2019. Tradução de Pedro Mantiqueira.
A primeira coisa que eu entendi foi a razão pela qual os alunos do curso de jornalismo se empenhavam na representação da peça. É que o jornalismo e a construção da formação da opinião pública é um dos núcleos centrais da peça. A peça se desenvolve ao longo de cinco atos, num crescendo extraordinário. O doutor Stockmann, rapidamente, passa de herói a inimigo mortal do mesmo povo. É uma ação dos poderes instituídos, a serviço do poder econômico.
Na peça, uma pequena cidade da Noruega conhece grande prosperidade com a sua transformação numa Estação Balneária. É nessa Estação que encontraremos os personagens da trama. O doutor Thomas Stockmann, médico, sua senhora, a filha Petra, professora e os filhos menores Eilif e Morten, o irmão Peter, que é o prefeito e presidente da Estação Balneária, Morten Kiil, dono do curtume e sogro do Dr. Stockmann e o povo do jornal A voz do povo: Hovstad, o editor, Billing, o subeditor e Aslaksen, o impressor. Temos ainda um amigo do doutor, Horster que é comandante de navio.
O primeiro ato se passa na casa do doutor, onde está reunido com o pessoal da Voz do povo, do qual ele também é articulista. O prefeito mostra a preocupação com o irmão, com relação às opiniões que emite em seus artigos. No momento estas preocupações dizem respeito a pesquisas sobre a questão das águas contaminadas do balneário pelos curtumes das proximidades. Os jornalistas consideram o doutor digno de homenagens e como uma espécie de salvador do balneário.
O segundo ato se desenvolve no mesmo cenário e, inicialmente, no mesmo clima festivo. Esse clima muda com a chegada do dono do curtume e sogro do doutor, que começa a fazer algumas insinuações, insinuações essas que ficam bem claras com a chegada do irmão, o prefeito da cidade. As preocupações com a contaminação das águas arruinariam os planos econômicos do balneário. As mudanças que seriam exigidas com relação ao tratamento da água, além dos custos elevados, retardariam o projeto em, no mínimo, dois anos. Se trava uma luta, como a que estamos assistindo no Brasil, neste ano da pandemia de 2020. A luta entre o CPF e o CNPJ. As questões de saúde se confrontando com os interesses econômicos. As primeiras ameaças complementam o ato.
No terceiro ato o cenário muda para a redação do jornal A voz do povo. Ali os preparativos para a impressão do artigo do doutor Stockmann são interrompidos pela chegada do prefeito e a sua argumentação das implicações econômicas das denúncias contidas no artigo. A mudança de opinião dos jornalistas é rápida e, em vez da publicação do artigo, publicam uma nota de esclarecimento ditada pelo prefeito. O doutor sob protestos afirma que usará a sua voz, numa assembleia com o povo.
Essa assembleia é foco do quarto ato, realizada na casa de Horster, já que outros espaços haviam sido negados. Para dominar a reunião o prefeito faz eleger um presidente para a sessão, na pessoa de Aslasken, o impressor do jornal, o homem da "moderação". Ele impedirá que o doutor faça as denúncias contidas no artigo.Então o doutor, em vez de falar da contaminação das fontes da água passa a falar da contaminação das fontes da moral. Acusa os poderes da cidade na manipulação da maioria, transformada em massa amorfa a ser desenhada pela vontade dos poderosos. As vaias são generalizadas e, por meio de uma votação, Stockmann é declarado inimigo do povo, por unanimidade, com a exceção de um único voto, o voto de um bêbado, que já incomodara várias vezes ao longo da assembleia.
A parte mais sórdida da peça ocorrerá no quinto e último ato. Stockmann vê a sua casa apedrejada, desalojado e demitido de suas funções, assim como Petra, a filha. O prefeito lhe oferece reconciliação se ele se retratar e lhe fala do testamento de Morten Kiil em favor de seus filhos, mas adverte de que ele poderá ser modificado. Por fim chega o senhor Morten, anunciando a compra das ações da Estação Balneária, trama na qual acusaria o doutor de participação. O doutor Stockmann vendo-se só faz a sua proclamação final: "O homem mais poderoso do mundo é o que está mais só".
Vamos as necessárias contextualizações da peça. Ibsen nasceu em Skien, na Noruega em 1828, filho de prósperos comerciantes mas, a família ficou reduzida à pobreza depois do fechamentos da destilaria da família e o menino foi obrigado a trabalhar como assistente farmacêutico. A vida de escritor o acompanhou desde cedo, alçando-o ao mundo da fama. Irá morrer em 1906, na mesma Noruega, em Oslo, após uma série de derrames.
Na contracapa do livro, na edição da L&PM, lemos: "Um inimigo do povo foi publicado em Copenhague em 1882 e estreou no Teatro Nacional em Oslo em 13 de janeiro de 1883. Imediatamente foi traduzido para dezenas de línguas e encenado e publicado em quase toda a Europa, numa repercussão digna dos grandes autores franceses que monopolizavam a dramaturgia da época. A estreia em Paris foi marcada por grandes manifestações no teatro de apoio às ideias anarquistas. A enorme repercussão da peça motivou longos e apaixonados artigos do deputado socialista Jean Jaurès e do deputado esquerdista e grande intelectual de seu tempo Georges Clemenceau. Em 1898, voltou a ser apresentada em Paris em meio ao célebre processo Dreyfus, quando as sessões da peça eram seguidamente interrompidas com aclamações de protesto contra o Estado e de apoio a Ibsen e Zola, que pontificava na época com seu célebre J'accuse em favor de Alfred Dreyfus.
Um inimigo do povo é uma obra-prima sobre as contradições humanas e a falência do indivíduo frente à unanimidade. Mesmo diante da vontade de praticar o bem comum, o dr. Stockmann entra em choque com os interesses mesquinhos da cidade. Vítima da maioria e da unanimidade, o homem que queria salvar a cidade torna-se o inimigo do povo. Estas ideias de Ibsen aproximavam-se muito das ideias anarquistas que tinham amplo apoio de importantes segmentos intelectuais e políticos da sociedade da época. A peça é uma impiedosa crítica às elites, aos governos, aos partidos e ao pensamento único".
Na contracapa do livro, na edição da L&PM, lemos: "Um inimigo do povo foi publicado em Copenhague em 1882 e estreou no Teatro Nacional em Oslo em 13 de janeiro de 1883. Imediatamente foi traduzido para dezenas de línguas e encenado e publicado em quase toda a Europa, numa repercussão digna dos grandes autores franceses que monopolizavam a dramaturgia da época. A estreia em Paris foi marcada por grandes manifestações no teatro de apoio às ideias anarquistas. A enorme repercussão da peça motivou longos e apaixonados artigos do deputado socialista Jean Jaurès e do deputado esquerdista e grande intelectual de seu tempo Georges Clemenceau. Em 1898, voltou a ser apresentada em Paris em meio ao célebre processo Dreyfus, quando as sessões da peça eram seguidamente interrompidas com aclamações de protesto contra o Estado e de apoio a Ibsen e Zola, que pontificava na época com seu célebre J'accuse em favor de Alfred Dreyfus.
Um inimigo do povo é uma obra-prima sobre as contradições humanas e a falência do indivíduo frente à unanimidade. Mesmo diante da vontade de praticar o bem comum, o dr. Stockmann entra em choque com os interesses mesquinhos da cidade. Vítima da maioria e da unanimidade, o homem que queria salvar a cidade torna-se o inimigo do povo. Estas ideias de Ibsen aproximavam-se muito das ideias anarquistas que tinham amplo apoio de importantes segmentos intelectuais e políticos da sociedade da época. A peça é uma impiedosa crítica às elites, aos governos, aos partidos e ao pensamento único".
Importante retorno a Ibsen, reativando a nossa memória quanto ao atualíssimo texto.
ResponderExcluirLeni, mais atual é impossível. O lucro é o DNA do capitalismo. Agradeço a sua manifestação, Leni.
ExcluirVivi isso! Fui contra um falso condomínio que utiliza a Escola Pública da rua como salão de festas e cobrando pela permissão de utilizar um prédio público e se dizendo moradores da Elite tem a permissão. E assim o fazendo até os dias de hoje. Qto a mim, leiloaram a minha casa com tudo dentro sem permissão de entrar iria e nem em minha casa. Mesmo p Procurador do Município enviando documentos que proíbe a utilização da rua e afirmando não ser condomínio e sim uma rua pública!
ResponderExcluirÉ bem verdade! Os fatos da história do Autor, repete-se até os dias atuais. Enfim, a Elite gozando do direito público transformando em privado e nada, nada aconteceu.
Mas uma Mulher, transformou-se na inimiga da rua!
Dignidade, nasce de berço!
Levar vantagem. Uma máxima do capitalismo, mesmo às custas de muitas injustiças. Agradeço a sua manifestação.
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