quinta-feira, 8 de maio de 2025

LEÃO XIV. Robert Prevost. O primeiro papa Estadunidense.

A eleição de um novo papa me afeta profundamente. Mexe muito com as minhas memórias e com a minha formação. O tema não me é novo. Já passei pelas escolhas de João XXIII (outubro de 1958), Paulo VI (1963), João Paulo I (1978), João Paulo II (1978), Bento XVI (2005), Francisco (2013) e agora, em 2025, Leão XIV. Creio que a indicação mais distante é a que me traz a mais viva de todas as memórias e, também a que, seguramente, mais profundamente marcou a minha formação.

Leão XIV. Foto divulgação CNBB - Sul.

Era outubro de 1958. Eu me encontrava no seminário São João Maria Vianney, na cidade gaúcha, mais alemã do que gaúcha, de Bom Princípio. Tinha 12 anos e cursava o meu primeiro ano do ginásio. Sem entender de muita coisa, recebíamos as informações através dos padres do seminário. Chorei e rezei com toda a devoção possível. Do mesmo ano, alguns meses antes, ouvi distantes informações sobre Pelé e sobre a primeira conquista brasileira no futebol mundial. Era na Suécia.

Reconstituindo um pouco a história, nomino os papas que antecederam a João XXIII, para logo a seguir entrar nos feitos de João XXIII e também entender um dos fatores, se não o mais importante, que levou o cardeal Robert Prevost, à escolha do nome de Leão XIV. Então vamos lá. Leão XIII teve um longo pontificado de 25 anos (1878-1903). Foi sucedido por Pio X (1903-1914), Bento XV (1914-1922), Pio XI (1922-1939) e Pio XII (1939-1958). Então o escolhido foi João XXIII. Os Pios, talvez não tão pios assim, ou talvez pios demais, centravam suas preocupações mais com os aspectos doutrinários da Igreja. Foram papas que viveram os tormentosos cinquenta primeiros anos do século XX. Duas Guerras mundiais, entremeadas por crises econômicas e políticas, como a ascensão dos regimes autoritários do fascismo e do nazismo e do comunismo na União Soviética.

Leão XIII foi marcado pela publicação da Encíclica Rerum Novarum, a primeira manifestação da Igreja católica sobre os problemas surgidos com o mundo moderno, especialmente pelo surgimento da industrialização e os conflitos decorrentes no mundo do trabalho. Luta ou conciliação de classes. De que lado se posicionar. Me lembro bem, - foi uma das disciplinas que estudei, - agora já no seminário São José de Gravataí, onde terminei os meus anos de ginásio e onde fiz também o meu ensino médio. A disciplina - Doutrina Social Cristã, retornou depois no curso de filosofia, feito na Faculdade de Filosofia N.S. da Imaculada Conceição, em Viamão. 

Depois, já no exercício de professor, em Umuarama, retomei o tema em algumas aulas do ensino médio, numa disciplina chamada - estudos sociais. Guardo comigo, até hoje um livro, um livro monumental, que tomei como referências. - Cristianismo, sociedade e revolução, do padre Paul-Eugène Charbonneau. O livro é da Editora Herder. Charbonneau já examinava mais de perto as encíclicas posteriores como a Gaudium et Spes e a Populorum Progressio, ambas de Paulo VI, sem deixar de focar nos documentos originários.

Voltando às memórias. João XXIII foi Revolução Pura. Aggiornamento era a palavra de ordem. Atualizar a Igreja aos novos tempos, às grandes transformações do mundo moderno. Para não assumir sozinho tão grande responsabilidade, convocou os bispos e os reuniu em concílio, em assembleia, para deliberar, para modernizar, para aggiornar. Coisas simples, - uso de língua vernácula, missa de frente para os fieis, abertura para leigos, ecumenismo. As aberturas não pararam mais. Novas inovações foram feitas e continuarão a ser feitas. Visões abertas para a pluralidade do mundo e seus anseios.

Pelo Concílio Vaticano II o olhar também se voltou mais para a América Latina e para as suas peculiaridades, para os seus problemas. Em Puebla os bispos definiram sua opção preferencial pelos pobres, na França surgiram os padres operários. Também na América Latina surge e se afirma a Teologia da Libertação. Tudo isso me marcou profundamente em meus anos de formação inicial.

Uma palavra sobre Francisco. Apenas uma. Um atributo que lhe foi dado por Umberto Eco. "Francisco é um jesuíta paraguaio". O que isso quer dizer? Que o papa Francisco é um papa missioneiro. Quem conhece a fantástica experiência das Missões sabe da força dessa atribuição. Um papa missioneiro.

Vendo o cerimonial magnífico desses dias entre a morte de Francisco e a eleição de Leão XIV, me lembro de um dos últimos fatos de minha vida no seminário. Isso já ao fim da filosofia, em Viamão. Nos dizia o padre reitor, posteriormente também bispo e cardeal. -"Vocês pertencem a maior instituição do mundo e é ela que pensa por vocês". Tudo dentro da perfeita lógica da hierarquia, da hieros - archei. Da ordem ou do governo sagrado. Me familiarizei com uma linguagem mais leiga. Mas aos padres devo a minha formação. Luto pela preservação do humano. Só trago comigo agradecimentos.

Quanto a Leão XIV, assim como Francisco, o simples nome já é um indicativo de caminhos. Meu filho me apontou para um postagem de direita, referente ao tema, nas redes sociais. Ela dizia. "Duas coisas me preocupam. A TL e a proximidade com Francisco". Já para mim - afirmo bem alto. - É o que me anima, é a utopia que me faz andar, e andar em transcendência - de trans - scandere, de travessia em escalada. Em ascensão. Da leveza. Na preservação do humano e da humanidade, ao lado de Francisco, dos dois Franciscos, de Leão, dos dois Leões - dos abridores de caminhos.

E, uma pequena lembrança de sua primeira mensagem; "Permitam-me dar sequência àquela mesma bênção (De Francisco): Deus nos quer bem, Deus nos ama a todos. O mal não prevalecerá. Estamos todos nas mãos de Deus. Portanto, sem medo, unidos, mão na mão com Deus e entre nós, sigamos adiante. Somos discípulos de Cristo. Cristo nos precede"... "SEM Medo". "A todos".

terça-feira, 6 de maio de 2025

BABBITT. Harry Sinclair Lewis. 1922. Nobel de Literatura - 1930.

 A cultura dos Estados Unidos no divã. Isso é Babbitt, o romance de Harry Sinclair Lewis, datado do ano de 1922. Babbitt é o sobrenome do comerciante George Babbitt, da fictícia cidade de Zenith. Ele é do ramo imobiliário. H.S. Lewis foi o primeiro Nobel de Literatura das Américas, laureado no ano de 1930. É ele e a sua família que estão no divã da psicanálise. Hipocrisia, falsidade, mentiras e camuflagens, humor ácido e ironia são os seus grandes ingredientes. Creio que o primeiro dado importante a observar é o ano de sua publicação, o ano de 1922. Depois da Primeira Guerra Mundial, serão os Estados Unidos que estarão no rumo da construção da maior potência mundial, ao mesmo tempo em que se prenunciam graves crises.

Babbitt. Sinclair Lewis. Abril Cultural. 1972. Tradução: Leonel Vallandro.

Observemos também os principais personagens. Em primeiro lugar os de sua família: Myra, ou a senhora Babbitt e os filhos Verona, Ted e Tinka.  Seguem-se os amigos, especialmente os do tempo de escola, com grande destaque para Paul Riesling e a esposa Zilla, os vizinhos e as instituições. Ah! As instituições! As instituições e os seus valores. O conservadorismo. O Partido Republicano e a Igreja Presbiteriana. Para além dos diversos clubes, que tem nos "cidadãos de bem" os seus sócios.

O tema é fascinante. Sempre me aguçou muita curiosidade. Dou os livros de maior destaque: O de um dos meus primeiros contatos com o tema -  Bandeirantes e Pioneiros - Paralelo entre duas culturas, de Vianna Moog, o clássico Da democracia na América, de Alexis de Tocqueville, o extraordinário Antiintelectualismo nos Estados Unidos, de Richard Hofstadter, o necessário A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber e, já que entramos no campo religioso, os muitos livros que analisam a cultura americana e a sua visão de celebração de uma Nova Aliança e suas implicações, que resultaram nas tais - teologias da prosperidade. Não poderia deixar de citar aqui a fantástica e incomparável obra de Philip Roth.

Mas, a obra em análise é Babbitt, de H. S. Lewis (1885-1951). Após as primeiras manifestações vamos a estrutura da obra. O livro que eu li é a da coleção Os Imortais da Literatura Universal. A obra tem 441 páginas, divididas entre 34 capítulos, todos eles divididos em pequenos tópicos, sem títulos. Já vimos que o tempo do livro é dos antecedentes da década de 1920 e o cenário é o da cidade de Zenith, uma fictícia cidade média dos Estados Unidos, com uma população média em torno de 350.000 habitantes, rumo a um progresso sem par, aspirando a figurar entre as maiores cidades do país. Babbitt é um comerciante do ramo imobiliário, lidando com seguros, aluguéis e compra e venda. Ele vive confortavelmente, com um padrão de vida de classe média alta. A sua rotina é atordoante e agradar a pessoas intoleráveis é o seu ofício. Já que nada produz, ele praticamente vive de relações públicas das quais busca tirar proveito. Isso o obriga a transgressões alheias à sua vontade. E, lembrando, é tempo de Lei Seca. Bebidas obrigam a mais e novas transgressões. 

Babbitt é absolutamente conservador e fervoroso combatente do comunismo. Pertence ao casmurro Partido Republicano e à puritana igreja presbiteriana. Este conservadorismo emoldura sua vida, seus hábitos e práticas diárias. Enquanto frequenta regularmente as instituições e pratica a ética prescrita pelas mesmas, ele obtém clientes preferenciais e avança em seus negócios. O seu combate ao comunismo, por óbvio, o opõe, a todas as lutas dos trabalhadores pelos direitos mais fundamentais. Por óbvio, também prega a conciliação de classes.

A convivência e os dramas vividos pelo seu amigo Paul afetam profundamente a sua vida. O casal vive uma grave crise conjugal, que termina em tiros e prisão. E Babbitt passa a viver também ele a sua crise, a crise da monotonia do casamente monogâmico. Começa a duvidar de seus valores e relaxa na sua prática. A economia passa a preceder a ética. Frequenta a casa de uma amiga, Tanis e frequenta um novo clube, denominado de A Turma. Ali se sente bem, ao contrário do que ocorria em casa e no escritório. Até "teve horror à obrigação de lhe mostrar afeto", referindo-se à sua esposa, a senhora Babbitt. A presença dos rigores da ética ou da moral em que fora educado o levam a arrependimentos e promessas, sempre descumpridas quinze minutos depois de feitas. A sua vida passa a ser observada e a sua presença ou companhia, evitada. Até os negócios que exigiam influência de indicações começaram a minguar.

A vida, ou os negócios da vida passaram pela exigência de uma volta e de reconciliações. Volta a sua antiga vida de conformidades.  Após um internamento e cirurgia da esposa, o antigo George estará de volta à cena da vida de Zenith. Passa a frequentar a Liga dos Bons Cidadãos, uma liga daquilo que hoje conhecemos sob o nome de "Cidadãos de Bem", ao menos assim autodenominados. Volta a ser um ardoroso combatente do comunismo. Volta a sua vida de hipocrisia plena. Vejamos o parágrafo final em que o vemos num diálogo com Ted, o filho:

"Bem... - Babbitt atravessou a sala devagar, pesadamente, com o caminhar um tanto envelhecido. - Sempre quis ver-te formado. - Tornou a cruzar a peça meditativamente. - Mas eu nunca... Pelo amor de Deus, não vás repetir isto à tua mãe., porque é capaz de me arrancar o pouco de cabelo que ainda me resta, mas o fato é que em toda a minha vida nunca fiz nada do que desejava fazer! Fui simplesmente vivendo como me permitiam. Calculo que, de cem quilômetros que podia ter andado, não avancei mais que meio centímetro. Bem, talvez tu vás mais longe.  Não sei. Mas sinto uma espécie de satisfação furtiva por ver que tu sabias o que querias, e o fizeste. Essa gente vai procurar intimidar-te. Manda-os para o inferno! Eu te apoiarei. Aceita o emprego na fábrica, se quiseres. Não tenhas medo da família. Não, nem de toda Zenith. Nem de ti mesmo, como eu tive. Avante meu filho! O mundo é teu!

Os dois Babbitt, pai e filho, entraram abraçados na sala e fizeram frente à família ameaçadora". Uma confissão da prisão em que vivera, prisão das inúmeras convenções às quais sempre se submetera. Um grito em busca de um pouco de autonomia.

Mas vamos a outras considerações. Tomo como guia o livro de notas biográficas que acompanha a coleção. Vejamos a referência a Babbitt: "Utilizando-se de uma cidadezinha, Lewis denuncia o modo de vida de um lugarejo de classe média da América provinciana. A sátira presente no romance rompe com a ficção americana anterior, que sempre procurou descrever a vida de uma pequena cidade como boa e inocente, se comparada às grande metrópoles, além de supervalorizar o papel da classe média.

Lewis costumava citar o ensaísta Thoreau (1817-1862) como influência permanente em toda a sua obra. [...] Assim ele fez para escrever seu próximo romance. Viveu algum tempo em Cincinnati, Ohio, onde pode observar o comportamento dos habitantes, suas expressões mais comuns e sua gíria. Todo esse trabalho de 'laboratório' resultou em Babbitt, cuja ação se passa na cidade fictícia de Zenith. Em Babbitt, exceto os primeiros sete capítulos, onde ele descreve vinte e quatro horas - 'de toque de despertador a toque de despertador' - da vida de sua personagem, todos os outros restantes constituem uma sociologia da classe média americana. Cada um desses capítulos trata de um assunto específico, como política, prazeres, vida em clubes, a barbearia, o botequim. (Também uma greve).

Babbitt retrata o mundo do pequeno homem de negócios. Sendo comerciante, ele não é um produtor; portanto, seu sucesso financeiro depende de um bom trabalho de relações públicas. O livro é uma sátira ao grupo dos mesquinhos e ridículos pequenos comerciantes. O protagonista não consegue romper o círculo que o envolve, porque não consegue imaginar uma vida diferente do seu mundo corrupto e competitivo. Quando Babbitt denuncia contradições ou divergências do grupo, faz isso apenas para continuar nele. Na verdade, ele age em função das relações públicas, e não das relações humanas.

Publicado em 1922, Babbitt despertou uma onda de polêmicas que o escritor não poderia ter imaginado. Em algumas regiões, Lewis era visto como um 'deformador da vida americana'. Todos os jornais reservavam espaço para comentar o livro. O New York Times aprovava Babbitt, ao mesmo tempo que tentava confortar os habitantes do meio-oeste, dizendo que os Babbitts poderiam ser encontrados em qualquer lugar, e que o escritor apenas se teria inspirado no meio-oeste porque essa região lhe eram bem mais familiar.

As críticas variavam muito e iam de extremo a extemo. Afinal, por suas origens, Lewis era também um Babbitt. E, assim, o sucesso do romance poderia ser atribuído ao fato de que grande parte do público via no escritor um aliado e não um inimigo. Inclusive, muitos dos ótimos comentários que a obra recebeu partiram de jornais de pequenas cidades - semelhantes a Zenith do romance - que se sentiam orgulhosas de terem servido de modelo a um livro.

Lewis divertia-se com todas as controvérsias. As suas mãos chegavam cartas de conteúdos diversos. Numa delas, o escritor Somerset Maugham (1874-1965) dizia: 'Nunca um certo tipo ou uma certa classe tinham sido delineados com tanto êxito; a objetividade tão fria e impiedosa com a qual você escreveu causa uma sensação muito estranha; a não ser que as pessoas não se reconheçam nele, devo dizer que você será um dos homens mais desamados da América. Li Babbitt com as mãos tensas, com o pensamento de que eu me sentiria muito intimidado se as encontrasse na vida real.

No entanto, a maioria dos europeus passou a julgar a nação americana composta somente por Babbitts. Revoltados, os americanos diziam que o escritor não apresentava um panorama mas uma caricatura da América. Além do mais, ele não era um sociólogo, e sim um jornalista malicioso.

Mas nada adiantava agora: Babbitt havia-se transformado num arquétipo, tal como acontecera com Dom Quixote, Hamlet ou Fausto, e iria permanecer como o tipo representativo não só de uma classe, mas também de uma nação e de uma época". Vejam toda a importância deste livro.

E ainda, uma observação perspicaz. Estou a reler Bandeirantes e pioneiros, de Viana Moog. Quando ele fala dos Estados Unidos, dos Estados Unidos após a Primeira Guerra Mundial, ele fala das mudanças ocorridas no país: "A América de Wilson cede lugar à América de Coolidge, Calvin Coolidge. Agora a América não está particularmente interessada nos que pensam construir melhores mundos, mas nos que anunciam a possibilidade de dois carros na garagem e outros confortos consideráveis que suas linhas de montagem vieram possibilitar. O símbolo da América já não é o Tio Sam. O símbolo da América é Babbitt, um novo tipo engendrado pelo ianque para substituir o símbolo do pioneiro". Página 224.