quarta-feira, 3 de maio de 2023

Um enigma chamado Brasil. 29 intérpretes e um país. 14. Gilberto Freyre.

Continuo hoje mais um trabalho referente aos intérpretes do Brasil. Desta vez o livro referência é Um enigma chamado Brasil - 29 intérpretes e um país. O livro é organizado por André Botelho e Lilia Moritz Schwarcz. É um lançamento da Companhia das Letras do ano de 2009. A edição que usarei é de 2013. Quem são os personagem trabalhados? Os organizadores respondem: "Os teóricos do racismo científico e seus críticos na Primeira República; modernistas de 1920 e ensaístas clássicos dos anos 1930; a geração pioneira dos cientistas sociais profissionais e seus primeiros discípulos". A abordagem sempre será feita por algum especialista. O livro tem uma frase em epígrafe/advertência. O Brasil não é para principiantes, de Antônio Carlos Jobim.

 Um enigma chamado Brasil - 29 intérpretes e um país.

A décima quarta análise do presente trabalho remete ao sociólogo pernambucano Gilberto Freyre. Ele é estudado por Ricardo Benzaquen de Araújo, num trabalho intitulado de Chuvas de verão. "Antagonismos em equilíbrio" em Casa-Grande & Senzala em Gilberto Freyre. Antagonismos em equilíbrio, por óbvio, é uma referência ao encontro e a fusão das culturas e raças em nossa formação. Araújo é professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - (Iuperj/Ucam) e da PUC/Rio de Janeiro. Vejamos alguns dados biográficos.

"Nasce em 1900 no Recife, Pernambuco. Conclui estudo secundário no Colégio Americano Gilreath. Nos Estados Unidos, gradua-se na Universidade Baylor (1920) e defende mestrado pela Universidade de Colúmbia (1922). [...] Em 1949, representa o Brasil na Assembleia Geral das Nações Unidas. Em diversos países, faz conferências, recebe prêmios e homenagens, como a de Doutor Honoris Causa de Columbia (1954) e a da Sorbonne (1965). É autor, dentre outros, de Casa-Grande & Senzala (1933), Sobrados e mucambos (1936) e Nordeste (1937). Morre em sua cidade natal em 1987".

A resenha tem foco em Casa-Grande & Senzala, com destaque para a sua importância até os dias de hoje. Em seu tempo se discutia muito a questão da mestiçagem, nem sempre vista como positiva, mas sim, como um problema. Vejamos o resenhista: "Ora implicava esterilidade - biológica e cultural -, inviabilizando assim o desenvolvimento nacional, ora retardava o completo domínio da raça branca, dificultando o acesso do Brasil aos valores da civilização ocidental". Que tempos!

Em favor da mestiçagem já se haviam levantado vozes como as de Lima Barreto e Manoel Bomfim. A presença indígena e negra em nossa formação passou a ser valorizada. Essa visão, em Freyre, só se tornou possível pela influência que recebeu de Franz Boas, em seus estudos nos Estados Unidos. Era o tempo em que as influências culturais começaram a se sobrepor às de raça na formação das identidades nacionais. E assim, a ideia da mestiçagem passou por uma redefinição. 

Em favor da mestiçagem, Freyre lembra a própria origem do português, um produto híbrido. A costa portuguesa era uma passagem natural entre a África e a Europa. Por ali passavam árabes, judeus e romanos. Formou-se um sincretismo, que ele considerou como um "luxo de antagonismos". Já seriam os "antagonismos em equilíbrio"? Considera esta noção como fundamental para se estudar a nossa história colonial. Eram antagonismos em que não havia adversários, nem eliminações. Assim, inclusive se formou a língua portuguesa, um doce idioma. Vejamos uma ilustração: Temos "no Brasil dois modos de colocar pronomes, enquanto o português só admite um - 'o modo duro e imperativo': diga-me, faça-me, espere-me. Sem desprezar o modo português, criamos um novo, [...] caracteristicamente brasileiro: me diga, me faça, me espere. Modo bom, doce, de pedido".

Esse hibridismo, da fusão cultural, é o primeiro destaque de Casa-Grande & Senzala. O segundo é o trato dado à questão da sexualidade, de relações forjadas na convivência. Embora condene os excessos, também não os reprova. Aprova o resultado - o da miscigenação. A condenação vem da relação com a escravidão. A tratou como um "erotismo patriarcal". Também condenava os abusos decorrentes, como a bestialidade, o estupro das mucamas, a relação com jovens, animais, sodomia e incestos. A considerava como a obscenidade luso brasileira, como um rude naturalismo, havendo nele o vulgar e o sublime, o pecado e a virtude, a morte e a ressurreição. O que degrada também regenera, considerava ele. Vejamos o resenhista:

"Dotado de um duplo sentido, acentuando - até com requintes de perversidade - as diferenças, mas também promovendo alguma fecundidade e confraternização, o domínio das paixões vai por conseguinte permitir que a afirmação daqueles polos opostos conviva perfeitamente com um grau quase inusitado de proximidade, recobrindo de um ethos a experiência da casa-grande. Antagonismos em equilíbrio, mais uma vez".

Esse também é um momento em que o Brasil passa por um processo de ocidentalização que irá perpassar todas as esferas de influência. São os valores da modernidade, da razão e da ciência. Esse modelo chega por imposições, inflexível e excludente. Freyre se posiciona contrariamente a essa forma. Ele busca preservar o passado, ao menos em partes, temperando-a com elementos da modernidade. Isso pode ser visto pela forma oral de sua escrita, muito mais uma conversa informal do que um tratado científico. Além disso, discute ao longo de 517 páginas (edição original) sem estabelecer uma conclusão. Há grande força em seu primeiro capítulo, sempre presente nos outros quatro, com a tese fundamental dos "antagonismos em equilíbrio". A oralidade e a informalidade são apontadas como as grandes virtudes que asseguram a permanência da obra.

Vejamos ainda o resenhista, já na parte conclusiva da resenha: "Autor e livro demonstram, portanto, a mais perfeita sintonia, ambos autenticando a validade do que um escreve no outro. É precisamente por essa razão, aliás, que a postura de Gilberto em Casa-grande & Senzala, sempre à beira de assumir um tom de celebração ou de lamento nostálgico - ou melhor, sentimental -, acaba por se aproximar do que podemos chamar de uma segunda ingenuidade. É como se ele experimentasse com toda naturalidade, ao escrever, sensações idênticas ou ao menos prefiguradas pelos seus antepassados coloniais, sensações que não precisam ser obrigatoriamente preservadas em uma tradição contínua, ininterrupta, mas que se conservem como uma alternativa cultural".

A minha experiência com a leitura do autor me indica que ele é, entre os autores brasileiros, um dos mais agradáveis de ser lido. Que forma bonita de escrever! Também sempre tive muitos cuidados ao me referir a ele, em sala de aula, em virtude das inúmeras críticas que ele recebe por ser a sua visão da escravidão, uma visão extremamente branda. Mas é preciso destacar que ele reverteu as teorias que apontavam, na questão racial brasileira, uma impossibilidade para o nosso desenvolvimento. 

Apresento também um trabalho sobre Casa-grande & Senzala, do livro Um banquete no trópico.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/07/um-banquete-no-tropico-10-casa-grande.html

E também o último texto do presente trabalho sobre Roger Bastide.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/05/um-enigma-chamado-brasil-29-interpretes.html


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