segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

"Aqui se misturou tudo que é nação, para formar a nação brasileira". Jorge Amado. Tereza Batista.

Quando as diversidades são tão valorizadas e ao mesmo tempo provocam tantos preconceitos, deixo aqui um belo texto de Jorge Amado, de exaltação da mesma. O texto é retirado de Tereza Batista - cansada de guerra. Quase ao final do livro, Jorge, pela voz de Dona Lalu, sua mãe, anuncia que Tereza Batista é o povo brasileiro. Ao mesmo tempo tão sofrida e tão alegre e esperançosa. Vejamos Dona Lalu, na voz geral da benquerença, em sua proclamação: "...lhe digo, meu senhor, que Tereza Batista se parece com o povo, e com mais ninguém. Com o povo brasileiro, tão sofrido, nunca derrotado. Quando o pensam morto, ele se levanta do caixão". A exaltação à diversidade vem em forma de literatura de cordel, possivelmente a mais brasileira , a mais característica das literaturas.
Neste livro de Jorge Amado encontramos esta bela exaltação à diversidade, na formação do povo brasileiro

"Da nação de Tereza Batista, meu egrégio, não posso lhe render contas. Tem uns sabidos por aí, alguns letrados de faculdade, outros com bolsas de estudo, que lidam com tais assuntos, destrinchando com ciência e ousadia os avós de cada um, obtendo resultados positivos, não sei se exatos mas de certo favoráveis aos netos; e até conheço um topetudo que se apresenta como descendente de Ogum - imagine que pesquisador mais porreta lhe pesquisou a família, certamente foi ele próprio e com muita galhardia, não se devendo confiar a terceiros fundamento tão melindroso.

Como sabe o nobre patrício, aqui se misturou tudo que é nação para formar a nação brasileira. Num traço do rosto, num meneio do corpo, na feição do olhar, na maneira de ser, quem tem olho e conhece do assunto encontra um rastro e partindo daí esclarece parentesco remoto ou como a mistura se deu. Vai se ver e o garganteiro é mesmo primo de Ogum, nem que seja bastardo, pois se conta que tanto Ogum como Oxóssi frequentavam, com fins de descaração, umas filhas-de-santo na Barroquinha. Se lhe parece invenção, cobre o dito ao pintor Carybé, é ele quem espalha essas histórias de encantados, pondo na frente Oxóssi, como aliás é justo e certo fazer.
A primeira edição de Tereza Batista. 1972.

Falando de Tereza Batista, por quem o ilustre tanto se interessa, muita coisa se diz e há pleno desacordo, total; opiniões diferentes, discussão prolongada na cachaça e no prazer da conversa. por malê, muçurunim e hauçá houve quem a tomasse e lhe dissesse em achegos de frete. Alguns a enxergaram cigana, ledora de mão, ladrona de cavalo e de criança pequena, com brincos de moeda nas orelhas, pulseiras de ouro, dançando. Segundo outros, cabo-verde, pelos rasgos de índia, certa reserva quando menos se espera, os negros cabelos escorridos. Nagô, angola, jejê, ijejá, cabinda, pela esbeltez congolesa, de onde veio seu sangue de cobre a tantos outros sangues se misturar?Com a nação portuguesa se melou, todos aqui se melaram. Não me vê negro assim?Pois quem primeiro se deitou na cama de minha avó foi um militar português.

Nas brenhas dão de barato um mascate nas amizades de Miquelina, bisavó de Tereza; quando digo mascate espero não ser preciso esclarecer tratar-se de árabe, sírio ou libanês, na voz geral tudo é turco. No sertão onde Tereza nasceu passa a divisa, ficando por isso difícil saber quem é da Bahia, quem de Sergipe, quanto mais se o mascate chamou aos peitos a roceira apetitosa. Até onde a memória alcança, as mulheres da família eram de encher o olho e de levantar cacete de morto e foram se aprimorando até chegar a Tereza, embora eu já tenha ouvido dizer por mais de um fofoqueiro ser ela feia e malfeita, cativando os homens no feitiço, na mandinga, no ebó ou por gostosa e sabida de cama, não por bonita. Veja o preclaro patrício quanta contradição; e depois querem que se acredite em testemunha de vista e nos calhamaços de história.
Histórias de Tereza Batista em literatura de cordel.

Não há muito eu estava bem do meu, comendo uns beijus molhados, na minha barraca, quando um presepeiro começou a contar a uns senhores paulistas e a uma paulistinha rosada, quindim para boca de rico, toda em sorrisos, ai se eu não fosse um homem bem casado... Como ia lhe dizendo antes que me interrompesse a mimosa flor de São Paulo, o gabola, menino moderno sem traquejo na mentira, querendo fazer média com os visitantes, garantiu que Tereza era loira, brancarrona e gorducha, da verdadeira só lhe deixando a valentia e assim mesmo com o fim de bancar o machão e acabar com a fama de Tereza à força de gritos - disse que estando Tereza a fazer arruaça, ele a chamou à ordem, com um carão de dois berros - e durma-se com um barulho desses. Aqui, no Mercado Modelo, meu eminente, a gente ouve cada coisa de estarrecer, mentiras de se pregar na parede com martelo russo e prego caibral.

Se eu fosse o nobre patrício deixava de parte esse negócio de nação; que vantagem lhe rende saber se nas veias de Tereza corre sangue malê ou angola, se o árabe teve a ver com o assunto ou se foram os ciganos acampados na roça. Me contou um moço de lá ter uma certa dona Magda Moraes, em depoimento na polícia, apoiado pelas irmãs, classificado Tereza de negrinha de raça ruim, estupor. De loira a negrinha, de formosa sem igual a feiona e malfeita, nesses pátios do Mercado, Tereza anda de boca em boca; em minha barraca, ouço e me calo; quem dela sabe mais do que eu, não me tomou de compadre?
As histórias de Tereza Batista contadas pelo mundo, nas mais diferentes línguas.

Sobre a nação de Tereza outras referências não posso lhe adiantar, não me consta fosse ela a própria Iansã; mabaça ou prima possa ser, seguindo nas águas do parente Ogum. Quanto à vossa própria nação, meu graúdo, sem ir longe nem faltar à verdade, posso de logo enxergar a mistura principal: escuto sob a brancura da pele um ronco surdo de atabaques - o lorde é de nação de primeiríssima lhe digo eu, Camafeu de Oxóssi, obá de Xangô, estabelecido no Mercado Modelo, com a Barraca São Jorge, na cidade da Bahia, umbigo do mundo".

De todas as mulheres de Jorge Amado, apesar de aproximações, de flertes e namoricos com Gabriela e Tieta, confesso que, por quem eu me apaixonei mesmo, foi por Tereza Batista. Tereza Batista, ou o povo brasileiro.



   

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