terça-feira, 18 de abril de 2017

Ainda estou aqui. Marcelo Rubens Paiva.

Conheci Marcelo Rubens Paiva pelo seu livro Feliz Ano Velho. O li, assim que foi publicado. O foco do livro foi o seu acidente, que o deixou tetraplégico. Conhecia razoavelmente a história do seu pai, o bravo deputado do PTB, Rubens Beyrodt Paiva, cassado pela ditadura militar, ainda em 1964, e dado como desaparecido em 1971. Na verdade, morreu sob forte tortura, que lhe provocou hemorragias internas. Nada sabia de Eunice Paiva, a mãe de Marcelo Rubens.
A partir da mãe, Eunice Paiva, as memórias da família.

Esta semana tive com ele um reencontro através do Ainda estou aqui, o seu mais recente livro, lançado em 2015. Ganhei o livro de presente do meu filho Iuri, que entrou em contato com ele através de um clube de leitura que ele tem com seus colegas de trabalho. Foi um reencontro muito agradável, pois Marcelo Rubens é efetivamente um grande escritor. Foi também um reencontro triste, pela realidade retratada. Também sempre manifesto a minha preferência por biografias e livros de memória.

Em Ainda estou aqui, Marcelo Rubens privilegia dois temas que são o fio condutor do livro. O seu pai e a sua mãe. Do pai conta tudo sobre o seu desaparecimento e a longa luta pela obtenção do atestado de óbito. De sua mãe nos conta como Eunice Paiva refez a sua pacata vida de dona de casa de classe média alta, que aos 41 anos se tornou viúva de um marido dado como desaparecido. Corajosamente tomou a frente da família, formando-se em direito, tornou se advogada de prestígio, com dedicação especial à causa da defesa indígena. Com a vida refeita, lhe sobrevém o mal de Alzheimer.

O livro está dividido em três partes, tendo a primeira cinco capítulos e a segunda e a terceira, seis. Os capítulos recebem títulos. Os capítulos da primeira parte tem os seguintes títulos: 1. Onde é aqui. Fala de sua mãe, advogada e a sua interdição, aos 77 anos, pela doença de Alzheimer. 2. A água que não era mais do mar. Aqui são relatadas as memórias de sua infância e os episódios de 1971, o ano do desaparecimento de seu pai e, ainda, a obtenção do seu atestado de óbito em 1995. 3. Blá-blá-blá. Continua relatando as memórias de infância e sobre o encontro das famílias de seus pais. Moravam em uma fazenda na cidade de Eldorado, em São Paulo. Toca na questão da doença da mãe, quando para ela, as conversas se transformaram em blá-blá-blá. 4. Cometas da memória. Se dedica especialmente à memória da família, uma família tipicamente burguesa, de alta classe média. Fala da mudança para o Rio de Janeiro, da morte do pai e, a mãe refazendo a sua vida, em Santos, a cidade de origem. 5. Mãe protocolo. Este capítulo é dedicado à mãe, agora já em São Paulo, concluindo o curso de direito e se dedicando ao ofício da advocacia. Conta ainda de seus tempos de vida estudantil e relembra o seu triste acidente de 1979.

A segunda parte tem seis capítulos. 1. Merda de ditadura. Busca as memórias do golpe militar, a cassação do mandato de seu pai, a fuga para o exílio e a sua volta, para então ocorrer o seu desaparecimento em 1971. 2. É a peste, Augustin - Perdão, tenho que morrer. O capítulo versa sobre a tortura dos militares e torturas policiais, com foco, obviamente, em seu pai. 3. O telefone tocou. No feriado de 20 de janeiro o exército vem prender o seu pai. 4. Doze dias. Relata a espera da volta do pai, que nunca chega e também a prisão da mãe e da irmã. A mãe ficou presa por 12 dias, a irmã foi solta no dia seguinte. 5. Ou, ou, ou, ou, ou. É sobre o assassinato do pai e a versão oficial da fuga. A morte "em guerra". 6. O sacrifício. Aqui são relatados os motivos da prisão, sendo o principal a interceptação de uma carta vinda do Chile, para onde tinham ido as pessoas trocadas pelo embaixador suíço.

A terceira parte tem mais seis capítulos. 1. Depois do luto. Conta sobre a mãe que assume as tarefas do comando da família, a sua ida para Santos e São Paulo e o exercício da profissão de advogada. Fala ainda de sua vida estudantil, e das dificuldades na escolha da profissão. 2. Você lembra de mim? Dois temas principais são abordados, os desaparecimentos após prisões e tortura e a luta da mãe por justiça. A chegada  da doença de Alzheimer também recebe uma abordagem. 3. Já falei do suflê? Todo o foco deste capítulo é a mãe. A sua dedicação ao direito e a nobre questão da defesa dos povos indígenas e, a sua especialidade na cozinha, o suflê. 4. O choro final. Este capítulo é especial, dedicado ao desvendamento dos mistérios que envolveram a morte do pai, o nome dos assassinos, a obtenção do óbito e o seu mestrado com foco em seu pai. 5. O alemão impronunciável. O foco está no alemão impronunciável, ou seja, o mal de Alzheimer. A aposentadoria da mãe aos 70 anos também é relatada, assim como a chegada da doença, em sua primeira fase. 6. O que estou fazendo aqui. É sobre o avanço da doença, aos seus estágios dois e três e a brava resistência. Por ocasião da conclusão do livro, em 2015, contava com 85 anos de brava resistência.

Em suma, um grande livro. Evidentemente que o foco principal é a luta da mãe para por a limpo a história do seu marido. Uma luta sem tréguas. Tudo foi desvendado, o nome dos assassinos, a causa da prisão, a falsidade da versão oficial e o fato de ter conseguido o tão sonhado atestado de óbito. É também um triste retrato do que foi a ditadura militar, das atrocidades cometidas. Leitura obrigatória para que histórias de desaparecimentos não se repitam, que ditaduras não se repitam. O tema do Alzheimer é tratado com profunda dignidade. Que doença!

Eu particularmente gostei de uma cartinha do pai, explicando para o filho e para as filhas, as razões de seu exílio. Uma explicação, ao mesmo tempo simples e bem profunda. Mas sobre isto farei um post especial. A sua volta do exílio foi também notável e inusitada. Em um voo de Paris para Montevidéu, com escala no Rio de Janeiro, simplesmente desceu do avião. Como não o incomodaram, ficou. Se tivesse ido para Montevidéu, a sua história certamente teria sido outra. O livro também me fez sentir um carinho todo especial pelo Marcelo Rubens, pela forma carinhosa com que retratou pai e mãe neste magnífico livro. E, ao Iuri, meus agradecimentos pelo belo presente.

2 comentários:

  1. Marcela, agradeço o seu elogioso comentário. Eu conformo que o livro realmente é muito bom. Ele descreve uma realidade muito triste, mas o faz com um carinho e ternura sem par.

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