quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Viagem a Paraty. 5. - Reflexões para um Momento de Ócio

Enquanto a escuna parava na bela praia da Lula, o ócio me trouxe à tona algumas reflexões. Antes, na parada do aquário natural, observei os tripulantes do barco, amarrando-o na ponta de uma pedra. Mal o nosso saiu, já veio outro, aproveitando a mesma ponta da pedra. Como já falei em outro post, a praia da Lula, é uma praia litorânea, somente atingida de barco e é particular. É vigiada por um guardião, nada amistoso, mesmo trabalhando num pequeno paraíso.
Vista da praia da Lula, uma praia privada.

Olhando as diferentes placas procurei juntá-las, num exercício de reflexão. Como o tempo de espera  demorava, fui pensando. Era o meu tempo de culto ao ócio. A palavra escola, skholé em grego, remete para a palavra ócio. Escola significa, literalmente, o local onde se pratica o ócio. E o que se faz com o tempo de ócio? Talvez a gente nem esteja mais acostumado com isso, nos agitados tempos de hoje. Ócio é a palavra que se opõe a uma outra, o negócio, ou seja, o oposto do ócio. Negócio significa portanto, a negação do ócio, o tempo dedicado ao trabalho, o tempo necessário para ganhar a vida.

Assim, entre os gregos, o local do ócio era frequentado, isto é, a escola era frequentada por aqueles que dispunham de tempo livre, por aqueles que não precisavam empenhá-lo com o trabalho, com as coisas ligadas ao sustento material da vida. Tempo, portanto, de pessoas absolutamente privilegiadas. Esta situação provocou a formação da primeira grande doutrina pedagógica, a dos sofistas, que aproveitando-se do tempo livre, para a partir dele, estabelecer relações de poder, numa sociedade democrática. Argumentação e oratória passaram a ser a ocupação deste tempo livre, agora já transformado num tempo útil, um tempo de elaboração de poder. Por isso o tempo livre é tão temido. Na Idade média o sino... Na Revolução Industrial o relógio ponto...

Nos tempos modernos, nos anos quarenta do século XX, Adorno e Horkheimer escreveram um dos textos mais estudados nos cursos sérios de pós-graduação, que envolvem a formação humana e a comunicação. O texto se chama: - Indústria Cultural: O Esclarecimento como mistificação das massas -, contido no livro Dialética do Esclarecimento (Jorge Zahar). Nele aparece o conceito, já emitido no título, de indústria cultural. Numa interpretação mais ou menos livre, eu diria que o termo significa o sequestro do tempo livre, em tempos em que a comunicação virou sinônimo de entretenimento, usando os meios de comunicação de massa, que estavam surgindo. Adorno diz que esta indústria cultural veio substituir o papel que a religião exercia em tempos anteriores. Isso me lembra muito a minha mãe, a rezar o terço em qualquer minuto livre que ela tinha. A esta reza, existem hoje ocupações para o tempo livre bem mais interessantes, como as novelas e o futebol. Além de tomarem o tempo do momento do entretenimento, também ocupam  tempo de leituras (revistas) e de conversas. Por falar em indústria cultural, tivemos ontem, o reinício de um de seus maiores lixos.

Não posso deixar de citar o filme Fahrenheit, 451 de François Truffaut, baseado no livro homônimo de Ray Bradbury. Nele existe uma personagem, chamada Mildred, que é uma encarnação perfeita do que é a indústria cultura, pois é uma vítima dela. Tanto o livro, quanto o filme são ótimos.

 Não imaginei que eu fosse tão longe nessa elaboração. Mas vamos ao proposto. Não é dever de casa, não vale nota e nem haverá premiações. Apenas um exercício para o uso do tempo livre. Vejamos então as três fotografias com as suas placas:
Observem o escrito nesta placa: Propriedade Particular. 
Observem o escrito nesta placa: Deus abençoe este lar.
Vejam agora a terceira das placas: É proibido amarrar cabo na praia.

Junte as três placas e veja no que dá. Amanhã voltarei com um assunto mais ameno. O ranking das cachaças, onde entram cachaças de Paraty, mas predominantemente elas são mineiras.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Viagem a Paraty - RJ. - 4. Sim! Tem Cachaça no Paraíso.

Se Dante Alighieri não estivesse tão perturbado e se tivesse conhecido o sítio Santo Antônio, certamente o teria incluído na terceira parte de sua A Divina Comédia, em suas visões de paraíso. Ali, literalmente, existe um alambique na beira do mar, na praia e num cenário para lá de maravilhoso.
Vista do sítio Santo Antônio, onde é produzida a cachaça Maria Izabel. Cenário de Paraíso.

Maria Izabel é a proprietária do sítio e a produtora da famosa cachaça. Ela é famosa. Tem até vídeo produzido pela TV Folha. Em contato telefônico ela avisou que só atenderia depois das 11:00 horas e, lá fomos nós. O sítio fica na BR 101, na direção Rio de Janeiro, logo depois dos primeiros pardais. As indicações da internet não funcionam. Elas indicam os Km. da rodovia, mas esses indicadores simplesmente não existem. Tivemos que pedir informações por duas vezes. A estradinha que leva ao sítio é íngreme. Na rodovia não tem qualquer sinalização. "É uma forma de me preservar", diz  Maria Izabel.

Quando chegamos, ela estava tomando café com a família e gentilmente nos convidou para dele fazer parte. Agradecemos e aproveitamos para olhar o sítio. Tem uma piscina natural formada pelas águas que descem da serra e a vista para o mar é simplesmente encantadora, paradisíaca, como já afirmamos. Depois do café ela prontamente nos atendeu. Falei que já a conhecia pelo vídeo e ela me falou que ainda não o tinha visto. No alambique fiz a degustação. O meu filho, na condição de motorista, dela não pode participar. Passei vergonha, pois nada entendo de cachaça.
Vista do alambique onde é produzida a cachaça Maria Izabel.

A própria visita já tem um sabor todo especial. O lugar é histórico e a família tem tradição na cachaça. Ela conta que, já nos idos do 1700, tinha no local antepassados seus lidando com o produto. Ela exibe documentos históricos que remetem aos anos de 1860, envolvendo questões legais do engenho e acusando recebimentos de cargas do produto, cargas em lombo de burro.
Documentos históricos, datados nos anos da década de 1860, envolvendo o sítio, são ali exibidos.

Quanto a qualidade da cachaça, ela a atribui especialmente à questão geográfica, a proximidade do mar e o seu impacto na qualidade da cana, além, evidentemente, dos cuidados especiais na sua produção. O corte, a moagem no mesmo dia da colheita, para evitar acidez, e os outros cuidados com o aproveitamento da cana, a sua melhor parte e aqueles cuidados que os produtores bem conhecem. 
A degustação e as conversas com Maria Izabel sobre o sítio e sobre a cachaça.

A produção do alambique é relativamente pequena, segundo ela. Entre sete mil e sete mil e quinhentos litros por ano. A sua explicação para isso é muito bonita: "Se desse para fazer uma poupança para usar lá do outro lado, aí eu aumentaria a produção", conta ela. Mas os verdadeiros motivos estão ligados à qualidade do produto. "Se fosse para aumentar, eu teria que trabalhar muito. Eu acompanho tudo muito de perto. Eu prefiro a qualidade ao marketing e, eu fiz a escolha pela qualidade", confidencia ela Ela vende praticamente toda a produção no próprio sítio ou para os comerciantes de Paraty, por isso, não é uma cachaça fácil de ser encontrada no mercado.
Os tonéis em que a cachaça é envelhecida, de jequitibá ou de carvalho.

Toda a cachaça Maria Izabel é envelhecida, ou em tonéis de jequitibá, que produz a cachaça clara, a prata, ou em tonéis de carvalho, que dá a cor amarela, a ouro. Esta sempre é mais cara. O tempo de envelhecimento agrega bom valor ao produto. Também produz uma cachaça azulada, destilada com folhas de tangerina. A visita só poderia terminar em compras. Só para dar uma ideia sobre o valor da cachaça: a ouro, envelhecida por dois anos, tem um custo de R$ 60,00.

Foi uma das visitas mais agradáveis feitas em Paraty. Recomendo demais. Creio ser interessante agendar a visita antes, por telefone, mesmo por que assim ela te dá as explicações sobre o acesso a este pequeno paraíso. Seguramente, pela questão histórica e cultural e pela pessoa maravilhosamente simples que é Maria Izabel, o passeio merece a melhor qualificação, um passeio cinco estrelas.
 Como no post anterior, repetimos um coquetel com os produtos da marca Maria Izabel. Tem até uma charmosa canequinha para tomá-lo.

Gostei do tema da cachaça. Voltarei a ele com a publicação de, ao menos, dois dos rankings sobre as melhores marcas: o da revista Playboy e o da universidade da cachaça. Sobre Paraty ainda vou fazer um post, propondo uma reflexão para um dia de ócio.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Viagem a Paraty - RJ. 3. As Cachaçarias.

A cachaça tem toda uma história. Na língua portuguesa é a palavra que tem o maior número de sinônimos. Só com eles daria para, praticamente, encher um dicionário inteiro. Ela é designada por mais de duas mil diferentes palavras. As mais conhecidas são: cachaça, canha, pinga e aguardente. O seu principal derivado é a brasileiríssima caipirinha.

Sua origem remete aos primórdios dos tempos. É fácil compreender o seu enorme significado cultural. Vapores e aromas lhe conferem um poder místico e poderes de cura. A água que arde ou a água que pega fogo se revestiu de um enorme poder cultural. Egípcios e gregos já a conheciam. Quanto a palavra cachaça, na cultura ibérica, ela teria duas possíveis origens: na primeira ela seria uma derivação de cachaza, um vinho de borra, de qualidade inferior e na segunda, a sua origem estaria ligada ao cachaço, ou mais precisamente à cachaça, o feminino da palavra. Como os cachaços em seu estado natural, os caitutus, tinham carne muito dura eram amolecidos com a borra, ficando assim esse líquido conhecido como cachaça.
Um canavial em Paraty.

Na história brasileira a cachaça possui importância histórica, econômica, social e cultural. e está diretamente relacionada com a colonização e a atividade canavieira. Socialmente, sempre foi uma bebida vinculada ao povão e apenas recentemente ganhou a posição de uma bebida de status. Em Paraty não foi diferente. Lá chegaram a se concentrar mais de trinta engenhos. Os alambiques ganharam o belíssimo nome de "casas de cozer méis". 

As estatísticas nos dizem que existem hoje no Brasil, mais de quarenta mil produtores, dos quais apenas cinco mil estariam registrados. A produção passa de 1,3 bilhões de litros/ano. O consumo anual  per capita  atinge sete litros. Calcula-se que diariamente são servidas mais de setenta milhões de doses. O seu consumo é superado apenas pelo da cerveja. Ultimamente a sua exportação vem crescendo e a meta é atingir cem milhões de dólares por ano. "Não existe crise, o que produzir vende", me afirmou um produtor de Paraty.

A primeira cachaçaria que visitamos foi a Coqueiro, a mais antiga cachaçaria ainda em atividade no Brasil. A sua localização é fácil de ser encontrada. Fica a um quilômetro da BR 101, na direção de Ubatuba. O local é muito bonito. Tem um pequeno museu ligado à cachaça, a céu aberto. Tem um pequeno parque de aves, onde pode ser vista uma avestruz e o orgulhoso pavão. Tem uma roda de moinho (monjolo) e até uma capela. A sua principal marca é a Coqueiro, uma cachaça artesanal "do plantio da cana até o seu engarrafamento", diz o seu site. Por ser um final de expediente de sábado, as atendentes estavam um tanto sonolentas.
A casa de cozer méis e em consequência os méis da Coqueiro. Tem da azulada e da amarela, entre outras.

A segunda cachaçaria que visitamos foi a Maria Izabel, mas esta vai ganhar um post especial. Já de saída, entramos para a estrada que leva a Cunha. É a região que mais concentra alambiques. Visitamos dois deles. O Engenho D'Ouro e o Pedra Branca. O Engenho d'Ouro é apresentado em seu site como um sítio gastronômico, ecológico e cultural. É formado pelo alambique, por um restaurante, especializado em servir galinha caipira com os temperos da região, por um bar, pela casa da farinha, a tafona gaúcha, por um monjolo e por um marco da estrada real.
O alambique Engenho d'Ouro. Um sítio gastronômico, ecológico e cultural.

A sua localização é privilegiada. Tem um marco da estrada real, do caminho do ouro. Este caminho está relativamente bem conservado, devido aos engenhos da engenharia e da drenagem da época. O atendimento é fora de série, feito pelo próprio proprietário, em pleno domingo a tarde. "Aqui conheço muita gente interessante", nos confidenciava ele.
 Os méis do Engenho d'Ouro.

O último engenho visitado foi o da Pedra Branca. O seu cartão de visita é o canavial da primeira foto. Também está localizado às margens do antigo caminho do ouro, na vale da Pedra Branca, que lhe empresta o nome. É todo um complexo familiar que está envolvido com a produção da cachaça, em vários alambiques e com várias marcas, entre elas a premiadíssima Paratyana. A premiada cachaça Corisco é produzida num local mais distante e a sua visita está incluída no roteiro do jeep.

Produtos e o alambique da cachaça Pedra Branca.

A hora nos obrigou a seguir viagem. Campinas seria o nosso destino. Lá passaríamos as festividades de natal. Seguimos pela Br. 101 até Caraguatatuba e subimos a serra pela rodovia dos Tamoios. Depois a D. Pedro nos deixaria em Campinas. Outros passeios dessa vez não puderam ser feitos. Senti que meu filho gostaria de ter feito o passeio de Jeep e eu pessoalmente fiquei muito interessado no city tour pelo centro histórico visitando, com guia, as igrejas, os casarões e procurando entender os muitos símbolos maçônicos em suas casas.
Como aperitivo final, um coquetel com cachaças de Paraty.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Viagem a Paraty - RJ. 2. Passeio de Escuna.

As grandes atrações turísticas naturais de Paraty são: o passeio de escuna pela baía de Paraty; o passeio de jeep, que compreende cachoeiras e cachaçarias; o trekking por praias desertas; o city tour pelo centro histórico e a ida às praias de Trindade, um distrito de Paraty, com população dominantemente caiçara, nativa.

Resolvemos fazer o passeio de escuna. A atração pelo mar e pela água é um apelo muito forte. Os passeios de escuna duram em média seis horas. Saem do porto entre as 10:30 e 11:00 horas e voltam entre 16:30 e 15:00 horas. Fazem quatro paradas. Como ocupam a hora do almoço, estão equipados com cozinha e vendem almoços em pratos feitos. É meio desajeitado, mas a comida é boa, acima de tudo, porque o teu estado de espírito está bem. O passeio custa R$30,00 e a refeição em torno de R$ 25,00.
Ilhas e praias da baía de Paraty. São 65 ilhas e mais de 300 praias.

A primeira vista que se tem é obviamente a da cidade, da qual a gente vai se afastando. Mas esta vista é mais bonita, quando da volta. A primeira vista do passeio é a ilha da Bexiga. Tem este nome em função dos tempos da varíola, que enchia o corpo de pequenas bexigas. Para esta ilha eram enviados os seus portadores, para evitar a contaminação. Hoje a ilha é propriedade do navegador e aventureiro Amir Klink.
Vista da ilha da Bexiga, para onde onde eram remetidos os portadores de varíola, para evitar contaminação.

A primeira parada é feita num aquário natural, com direito a banho e bicadas de pequenos peixinhos. A tripulação do barco normalmente alimenta os peixes para que apareçam em maior quantidade. O cenário se complementa com inúmeros barcos e iates.
Os peixinhos em seu aquário natural.

A segunda parada é feita na praia da Lula, uma praia litorânea que é atingida apenas de barco. É uma praia particular e sobre ela vou propor, num próximo post, algumas reflexões, para tempos de ócio. A praia é muito bonita e nela está uma bela casa antiga. Ela tem um guardião nada gentil. Tentei puxar conversa, mas não deu liga. Depois um dos tripulantes da escuna nos falou que ele é dado a bravatas e gosta de puxar o facão, sem qualquer motivo maior. Incorporou realmente a função de guardião."É um jagunço", nos dizia o tripulante.
Vista da bela praia da Lula e da casa de veraneio de uma das famílias tradicionais de Paraty.

A terceira parada foi na Lagoa Azul, que não é a Gruta Azul da ilha de Capri, mesmo porque as águas são um tanto esverdeadas. Sereias também não as vi, não devem ter uma moradia nessas plagas. Ou seria o imaginário que estava um tanto fraco. Nesse local paradisíaco foi servido o almoço.
Vista das águas do Lago Azul.

A última parada foi na praia Vermelha, Vermelha em função da cor de suas areias. É apontada como uma das praias preferidas de todos.
Olhem a maravilha que é esta praia, a praia Vermelha.

Depois desse passeio maravilhoso o  nosso tempo estava se esgotando e era hora de voltar. Na volta você ainda é agraciado com a vista da bela cidade, que vai ganhando volume na medida em que você se aproxima dela. A vista é encantadora. Como já eram 17:00 horas, só deu mais tempo para a visita a uma das cachaçarias e fazer um belo e excelente jantar. Mas sobre cachaça falaremos amanhã.
Olha aí a beleza desta histórica cidade, ao se aproximar do seu porto.

sábado, 5 de janeiro de 2013

Viagem a Paraty RJ. - 1. A Cidade.

Há muito tempo eu alimentava a vontade de conhecer a cidade de Paraty, no Rio de Janeiro. Me seduzia a sua condição de cidade histórica e especialmente a FLIP, a sua grande festa literária. Como esta sempre se realiza na primeira semana de julho, quando ainda estava em aula, eu não podia ir. Agora, antes do natal, combinei com o meu filho Alexis, que trabalha no Rio, mais precisamente na construção da refinaria da Petrobrás em Itaboraí, de nos encontrarmos nesta cidade e aí passarmos ao menos uns dois dias. Foi o que fizemos.

Eu parti para São Paulo. Revivi a estação do Tietê, que tão familiar me fora na época do mestrado. Fui comprar a passagem para Paraty, mas não tinha mais. Mas o atendente me remeteu para outra empresa e fui para Ubatuba e depois para Paraty. Tudo deu muito certo. Uma bela viagem: São José dos Campos, rodovia dos Tamoios e a descida da serra, Caraguatatuba e Ubatuba.

Em Ubatuba um pequeno atrapalho. A cidade tem duas rodoviárias, uma mais feia que a outra. Imaginei que fosse um terminal de ônibus urbano, mas que nada. São duas rodoviárias mesmo. Ao chegar nesta segunda rodoviária, o ônibus para Paraty já estava de saída e, em pouco mais de uma hora, eu chegava ao meu destino. De novo, uma rodoviária muito feia. Poderia haver um pouco mais de capricho nisso. Eu adoro viajar de ônibus.

Me acomodei numa pousada, uma indicação de um taxista. Não faziam reservas por internet por menos de dez dias. Coisas de pacote. Tive sorte. Ela estava muito bem localizada, com um bom conforto e um ótimo restaurante. Piscina com cascata e tudo mais. Depois de um banho, uma primeira incursão pela cidade, pela sua parte histórica.
Uma vista típica da cidade histórica, com suas ruas calçadas com pedras pés-de-moleque e suas casinhas azuis e brancas.

Quem quiser realmente conhecer algo totalmente diferente de tudo que já viu, deve conhecer esta cidade. As suas pequenas ruas e as suas casas azuis e brancas formam algo muito peculiar. As suas ruas são calçadas com pedras, chamadas pés-de-moleque, que lhe dão uma característica muito particular, mas que dificultam o caminhar. A cidade histórica não é grande. Eu já havia feito antes uma incursão pela história da cidade.
A igreja em torno da qual se formou a cidade.

Oficialmente ela foi fundada em 1667, em torno da igreja de Nossa Senhora dos Remédios. Mas a sua povoação já teria começado entre 1540-1560. A sua primeira riqueza veio com a cana de açúcar e os engenhos e especialmente com a extração do ouro nas Minas Gerais. Chegou a condição de segundo porto brasileiro. É famosa pela estrada do ouro, o Caminho do Ouro da Piedade, que aproveitou trilhas indígenas e que levava de Paraty para Cunha, Guaratinguetá, Lorena e para as Minas Gerais.
Um marco da estrada real, do caminho do ouro de Paraty, na rodovia que liga Paraty a Cunha.

O auge do progresso da cidade ocorreu em 1851, quando chegou a ter 16.000 habitantes. Pouco tempo depois, especialmente em função do esgotamento do ouro e do isolamento da região, passou a contar com apenas 600 moradores. Deste isolamento lhe veio a preservação. Paraty é relativamente isolada até hoje. Exemplo disso é o distrito de Trindade, um rústico e primitivo povoado, com uma população ainda dominantemente caiçara. Já em seu tempo histórico, Trindade servia de refúgio para os piratas, o que também favoreceu o declínio da região. Aí se faz o turismo de aventura, com passeios de Jeep, o trekking e as trilhas.

O renascer da cidade se deve especialmente a sua ligação por estradas aos grandes centros, com a abertura da estrada Rio/Santos, nos anos 80. Por ela você chega às praias do litoral norte de São Paulo e ao Rio de Janeiro, numa distância de 242 quilômetros. O hoje sucesso de Paraty se deve, como já falamos, ao binômio isolamento/preservação e muita ousadia e imaginação. A cidade abriga , salvo engano, a terceira maior festa literária do mundo e o festival da cachaça. Nestas ocasiões a cidade fica inteiramente tomada. O festival de jazz e blues está em fase de afirmação.

Sua população gira em torno de 40.000 habitantes e a cidade é considerada patrimônio estadual, desde 1945, patrimônio histórico e artístico nacional, desde 1958 e Monumento nacional a partir de 1966. É dominada pela Mata Atlântica, com o Parque estadual da Serra do Mar, uma importante área de preservação ambiental. Tem matas preservadas, populações nativas, 65 ilhas e mais de 300 praias, muitas delas só acessíveis pelo mar. As ruas típicas formam 33 quarteirões.
Olha o charme da pousada que nos hospedou, Número 001 na rua.

Turismo, pesca e cachaça formam a sua riqueza atual. Não há redes de hotéis, o que faz as pousadas serem um tanto caras, especialmente na temporada e por ocasião dos grandes eventos. Para a FLIP, as reservas nas melhores pousadas estão esgotadas pelos próximos dois anos. A comida é farta, de boa qualidade e relativamente barata.
Vista maravilhosa da cidade, a partir do mar, no passeio de barco.

Ao final da tarde o meu filho veio e já de carro pudemos nos locomover mais facilmente, conhecendo assim melhor esta maravilhosa cidade, seus lugares mais distantes e os seus alambiques. Amanhã faremos o passeio de barco.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Niemeyer - A Catedral de Brasília.

Em seu livro de memórias Niemeyer deixa as últimas páginas para falar de sua arquitetura (265 a 276). Ele cita duas frases que certamente foram fundamentais para a sua arte. A primeira é de Heidegger: "A razão é inimiga da imaginação" e a segunda é de Baudelaire: "O inesperado, a irregularidade, a surpresa e o espanto são uma parte essencial e uma característica da beleza". Niemeyer divide a sua arquitetura em cinco grandes momentos: "Em cinco momentos divido a minha arquitetura: primeiro, Pampulha; depois, de Pampulha a Brasília; depois, Brasília; depois ainda, minha atuação no exterior; e, finalmente, os últimos projetos que realizei.

Tendo essas frases por guia e em Le Corbusier o mestre, ele próprio define a sua arquitetura: "E tudo começou quando iniciei os estudos de Pampulha - minha primeira fase - desprezando deliberadamente o ângulo reto tão louvado e a arquitetura racionalista feita de régua e esquadro, para penetrar corajosamente nesse mundo de curvas e formas novas que o concreto armado oferece".

Mesmo após a sua morte o arquiteto é alvo de pesadas críticas. Mesmo na proclamada era do pós- comunismo  e do pós-tudo, a indústria do anti-comunismo ainda anda a pleno vapor. O ódio alimenta muitas mentes. Quem quiser ler algo exemplar neste sentido, leia o artigo de Demétrio Magnoli, publicado no Estadão no dia 20.12.2012. Ele fala em arquitetura da destruição e em possibilidades de superfaturamento pelo uso de muito concreto. Que mentes empedernidas. Como devem ser felizes essas pessoas e doce o seu mundo... Deixa para lá..., pois não se dá voz...

Quero me ocupar hoje com o ateu construtor de igrejas, ou melhor, com o arquiteto da catedral de Brasília, por muitos considerada a sua obra mais bela. Entre eles está o nosso conhecido escritor Cristovão Tezza, que em sua coluna semanal na Gazeta do Povo (18.12.2012) assim se manifestou:

"Eu votaria em primeiríssimo plano na catedral de Brasília - visitá-la, anos atrás, foi uma experiência de impacto para mim. Não apenas pelo desenho em si do prédio, de uma leveza feita a lápis, absurdamente simples, que parece encher o espaço sem ocupá-lo; [...] O que impressiona é que tais arte e engenho recriem radicalmente uma catedral - e a catedral é um dos signos mais conservadores da imagística ocidental, como se o peso de uma forma anterior à imaginação determinasse, por princípio, todos os limites do prédio antes mesmo que ele se erga. Pois a catedral de Niemeyer, em sua tranquila leveza, sem nenhuma arrogância, parece recomeçar a ideia do zero pressupondo também uma concepção de homem e de espiritualidade que rompe com a tradição a partir do espaço circular em que nos movemos".

Vista externa da catedral de Brasília. Fonte Google.

Que beleza e que compreensão do espírito do artista. Catedral e conservadorismo andam juntos na cultura ocidental. E, com certeza, não nos dão uma imagem de leveza. Só um gênio e um ateu poderiam assim concebê-la. Mas vejamos o próprio artista a falar de sua obra:

"A procura da solução diferente me dominava. Na catedral, por exemplo, evitei as soluções usuais, as velhas catedrais escuras, lembrando o pecado. E, ao contrário, fiz escura a galeria de acesso à nave e esta, toda iluminada, toda colorida, voltada com seus belos vitrais transparentes para os espaços infinitos". Olha que coisa fantástica. O libertar-se da ideia de pecado que tão fortemente impregna a cultura ocidental, que, já mesmo antes de nascermos, já pecamos o suficiente para os mais terríveis castigos. É preciso iluminar essa escuridão. Isso é fabuloso. E Niemeyer está feliz com o reconhecimento que recebeu de sua obra pelos próprios padres e em especial do Núncio Apostólico:

"Dos padres sempre tive compreensão e apoio, inclusive do Núncio Apostólico, que, ao visitá-la, não conteve seu entusiasmo: 'Esse arquiteto deve ser um santo para imaginar tão bem essa ligação esplêndida da nave com os céus e o Senhor'".
A nave central, a iluminada, da catedral de Brasília. Fonte Google.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Niemeyer recomenda leituras.

A Gazeta do Povo publicou em 21.12.2012 interessante matéria, assinada pelo jornalista Breno Baldrati, um aluno do qual todo o professor sente orgulho, sobre as leituras que empresários curitibanos vem fazendo. Vou citar aqui os empresários entrevistados e as suas indicações:

Artur Grynbaum - do grupo Boticário. A estratégia do Oceano Azul. Ed. Campus. A palavra estratégia indica o espírito do livro. Estratégia é uma palavra de origem militar que foi transportada para as teorias de administração, em referência ao mundo competitivo em que vivemos.

Karlis Krulis - do grupo Ouro Verde. Endurance - A Lendária Expedição de Shakleton à Antártida. A maior recomendação do livro é ser ele editado pela Companhia das Letras, seguramente a mais criteriosa das editoras brasileiras, na escolha dos títulos que publica.

Fábio Araújo - da Brain Consultoria. O Mundo em queda livre, do economista Joseph Stiglitz. Simplesmente um Nobel de economia. O livro também é editado pela Companhia das Letras. O sub-título do livro é muito interessante: Os Estados Unidos, o mercado livre e o naufrágio da economia mundial. Stiglitz é um economista liberal, porém,. não neoliberal.

Luiz Alberto Lenz César - do World Trade Center Curitiba. O verdadeiro Poder. A autoria é de um professor de Teorias da Administração, Vicente Falconi. É editado por indg. Tecnologia e Serviços (Fonte Google), da qual nunca ouvi falar.

Leonardo Frade Maciel - da Endeavor. O andar do bêbado. A publicação é da Jorge Zahar, a minha editora preferida para livros relacionados à filosofia.

Se fosse para escolher um entre esses livros, sem dúvida nenhuma, eu escolheria o livro de Stiglitz. Uma observação a fazer é a de que os livros indicados são livros relacionados à área de atuação dos empresários. Nenhum deles avança para a área da literatura em geral. Não critico isso, mesmo porque só foi solicitado pela reportagem a indicação de um único livro.

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E por falar em leitura...

O que eu quero fazer e aproveitando o momento histórico da morte de Niemeyer é mostrar o que efetivamente o tornou um ser humano imortal. Em seu livro de memórias As Curvas do Tempo ele nos traça um roteiro completo de leituras, que foi o seu guia e que o tornou, além de um dos maiores e mais renomados arquitetos do mundo, um pensador humanista de primeira grandeza. Vamos às recomendações dadas. Aliás, as recomendações foram dadas por um amigo seu, Rodrigo M. F. de Andrade, crítico, historiador de arte e escritor mineiro, e seguidas por Niemeyer.
O livro de Oscar Niemeyer As Curvas do Tempo - Memórias. Editora Revan. 318 páginas. R$ 52,00. Suas reflexões sobre a leitura estão nas páginas 61 e 62.

"Oscar, leia os gregos e os clássicos portugueses", lhe recomendava o amigo. "E li. Li muito. Li como quem nada sabe e tudo quer aprender. Li com a devoção com que lera, anos antes, a obra de Le Corbusier", lhe responde Niemeyer. Uma observação interessante a fazer. Eis uma concepção de formação, de educação, quando se junta a formação profissional (Le Corbusier) com a formação humanista, cidadã (os gregos e os clássicos portugueses).

Niemeyer prossegue no seu relato de leituras, sempre seguindo a orientação do mestre. Comecei pelos gregos (Sócrates e Platão) e continuei com os clássicos portugueses (Diogo do Couto, Fernão Lopes, Padre Vieira, Herculano e Eça de Queiroz). De Machado de Assis, já na literatura brasileira, faz a seguinte observação: "Machado de Assis, a fazer ironias, o invadir a alma de seus personagens" e nos relata o objetivo de suas leituras: " Não tinha pretensões literárias. Queria apenas poder explicar meus projetos de forma clara e simples". Olha de novo a questão da formação, pela incorporação do não pragmático e  utilitário e a utilização da literatura a agir e impactar o imaginário e a criação.

E Niemeyer continua o seu relatório de leituras e seus impactos sobre sua formação: "E li, de Machado aos novos escritores dos dois países, entusiasmado com a simplicidade de alguns, com a imaginação e espontaneidade de outros, com a preocupação política e social dos que trazem a miséria dentro do peito". Vejam aí a formação do pensador marxista, que foi ao longo de toda a sua longa existência. E o arquiteto prossegue:

"E passei aos estrangeiros, surpreso com a unidade literária de Camus; a inteligência e cultura de André Malraux, a invasão do ser humano de Freud, Kafka e Graciliano; a pureza de Gide e Tchekhov, o realismo de Henry Miller, a agilidade e o talento de Proust; a grandeza dos escritores russos como Tolstoi, Tchekhov, Dostoiévski e Gorki" e ainda não satisfeito ele fala: "Mas sempre pela rama, sentia que a literatura não me bastava, que precisava conhecer melhor o mundo em que vivemos, o porquê da nossa presença neste velho planeta".

E ainda insatisfeito, ele buscava mais: "E os ensaios sobre a vida, a genética e o cosmo me atraíram. Muito aprendi ao ler Jacob e Monod, a obra de Sartre a nos induzir que toda a vida é um fracasso, a nos explicar seu existencialismo: 'A precedência da existência da criatura sobre a essência' " e conclui: Nas horas vagas, lia os livros didáticos de Celso Cunha - e os grandes mestres da poesia, Baudelaire a falar de amor, Neruda a cantar a revolução".

Li nestes meus dias de ócio este livro maravilhoso das memórias de Niemeyer As curvas do tempo e tomei a decisão de retomar o meu blog com este roteiro de leitura traçado pelo amigo e seguido pelo aluno gênio, que se formou e se reformou com as suas leituras. Enquanto embelezava o mundo com a sua obra fantástica da arquitetura, embelezava também a si mesmo, com as suas leituras, incorporando em si aquilo que a humanidade produzira de melhor.

Com este ânimo e este otimismo é que retomo este meu blog no ano novo que se inicia e desejando a todos que este espírito, ou este estado de espírito acompanhe a todos nas lutas a serem empreendidas ao longo deste ano de 2013. Um ano pleno de alegrias plenas a todos.



quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Por um Ano Novo Mais Moleque.

Pensando numa mensagem de fim de ano, lembrei-me de uma aula de abertura de um ano letivo. Revirando minhas agendas a localizei. A agenda é de 1994. É a seguinte:

"Se pudesse viver novamente minha vida, na próxima trataria de cometer mais erros. Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais... correria mais riscos, faria mais viagens, contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas, nadaria mais rios"

"Eu era um desses que nunca ia a parte alguma sem ter um termômetro, uma bolsa de água quente, um guarda chuva e um para quedas. Se voltasse a viver, viajaria mais leve. Começaria a andar descalço, no começo da primavera e continuaria assim até o fim do outono".

Tenho anotado na agenda que isso é de Jorge Luís Borges, citado por Clóvis Rossi. Por um ano novo mais moleque, era o título. Na mesma agenda encontrei anotado o seguinte:

"Abrirmos a cabeça
Para que afinal floresça
O mais que humano em nós
Então está tudo dito
E é tão bonito
E eu acredito num claro futuro
De música - ternura e aventura".

Tá combinado - de Caetano Veloso. Vai mais um aperitivo. Esse é de Niemeyer, das Curvas do Tempo. É sabido que ele não gostava de andar de avião. Daí vem o seguinte:

"Fiz muitas viagens entre o Brasil, a Europa e os Estados Unidos. Não gostava de andar de avião. De navio, eram 10 dias de férias no mar imenso, sem telefone, inteiramente livre.
Gostava de olhar o mar, cada dia diferente. Mar imenso a lembrar a eternidade. Gostava daqueles dias de ócio, sem fazer nada, a ler, conversar, estirado nas cadeiras de bordo".

Vou viajar, vou contemplar entardeceres, vou ver o mar. Vou ver as cachaçarias de Paraty. Vou me entregar ao ócio, sem ter medo de que ele seja a oficina de satanás. A todos desejo um ano novo repleto de ócio, de tempo livre e, absolutamente sem culpa.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

LIBERDADE - Jonathan Franzen.

Um livro surpreendente. Ele se move um duas direções: uma que se fecha, representada pelo isolamento e pelo remoer de fantasmas interiores e a outra que se abre e que é marcada pelo encontro ou pelo reencontro com o outro e os caminhos que são abertos por essa perspectiva. Se o livro é surpreendente, o seu final o é ainda mais.
Ficha do livro: FRANZEN, Jonathan. Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras. 2011. 605 páginas. R$ 46,50.

O núcleo central do livro gira em torno do casal Walter e Patty Berglund e seus filhos Joey e Jéssica, e se estende para o amigo do casal (amigo e mui amigo), o roqueiro Richard Katz e para Connie, a namorada e depois esposa de Joey. Também Lalitha, uma bela indiana e assistente de Walter ganha um bom espaço no livro. O cenário em que o romance se desenvolve é o dos Estados Unidos, em sua primeira década do século XXI. Com certeza que tem assunto interessante e suficiente para o preenchimento de suas mais de seiscentas páginas.

Um dos temas preferidos de Franzen é o casamento. Mas o próprio casamento de Walter e de Patty se dá em circunstâncias complicadas, mas aparentemente está tudo correto. O Berglund de Walter denuncia a sua origem sueca e existem páginas e páginas no livro que descrevem o que é ser um sueco. Não deixa de ser um homem correto mas, seguramente, é um homem muito chato e sem nenhum tempero. Patty é ex jogadora de basquete e que se recolhe junto com o seu casamento. Se retira do mundo profissional. A vida segue normal e vem os filhos. Richard Katz é o contraponto nesse casamento. É o único amigo de Walter e a grande paixão de Patty.

O livro avança por vinte anos e os problemas se multiplicam. Aparece a típica família americana de classe média. Além dos problemas familiares aparecem os problemas ético morais e um mundo competitivo. Walter vira um ecologista que protege a sobrevivência de passarinhos mas trabalha na legitimação da exploração de minas de carvão a céu aberto, encontrando nelas justificativas de racionalidade. Mas, acima de tudo, ainda tem pretensões de ser um paradigma de moralidade. Joey entra no mundo dos negócios, passa a ganhar milhões, atuando junto a grupos que tiram proveito da guerra do Iraque. Pede conselhos ao pai. Este não sabe o que lhe dizer e vai adiando a sua resposta, adiando os seus desencontros.

Walter se envolve em um caso amoroso que não tem coragem de assumir. Patty recai em sua paixão por Richard. Os filhos já estão mais do que afastados. A solidão passa a corroer os indivíduos livres. Quando eles olham ao seu redor, para os seus irmãos e familiares a situação fica ainda pior. Walter se decide por Lalitha, mas essa morre num acidente de carro e ele fica cada dia mais rabugento na exata medida em que se refugia no seu isolamento. Os vizinhos só existem para serem confrontados. Mas ainda pior que um casamento desastrado é um casamento desfeito e não ter com quem brigar. Aí você briga consigo mesmo e vai ficando cada dia pior.

Se você quiser ter um diagnóstico, uma radiografia, uma tomografia ou uma ultrassonografia da sociedade e da cultura americana não deixe de ler esse livro. Você se envolverá com a instituição da família e do casamento, com os valores de uma sociedade altamente competitiva, com a crise de uma geração jovem e com a alta corrupção da política, que não tem escrúpulos em fazer guerras, para delas tirar proveitos financeiros individuais. O indivíduo num mundo de liberdades tem que garantir a realização de sua felicidade, em meio a uma cultura, que seguramente lhe faz mal. Freud que o diga.

Se você se dispuser a ler este livro, você não estará sozinho nessa empreitada. Mais de um milhão de americanos já fizeram isso e ele foi assim classificado pelo The New York Times: O romance mais comovente de Franzen - um romance que se revela ao mesmo tempo uma envolvente biografia de uma família problemática e um retrato incisivo do nosso tempo.

Para terminar, um aperitivo sobre o significado de namorado ou namorada nos tempos de hoje. A cena envolve Joey e a sua namorada Connie, de quem por sinal gosta muito e acaba mesmo se casando. "Os jovens viam uma namorada como um empecilho insensato no caminho dos prazeres a que pretendiam dedicar os dez anos seguintes". É ou não um quadro da realidade?

Por fim, qual será o significado da palavra liberdade, que dá título ao livro? Não vou aqui entrar em detalhes. Vamos apenas afirmar que a palavra liberdade, ou a sua variável livre arbítrio, é um dos pilares de sustentação da cultura americana. Ela aparece em inúmeras discussões e geralmente ganha o seu significado político e econômico da livre iniciativa e a consequente abominação das intervenções do estado, a não ser em seus negócios com ele, em proveito pessoal. Walter tem uma discussão com o seu irmão Mitch, um alcoólatra reconhecido. Acompanhem a discussão. O dia estava ensolarado e ele só estava fazendo o de sempre. Bebia o tempo todo, mas sem pressa; a tarde ia ser longa.
"De onde você está tirando dinheiro?", quis saber Walter. "Está trabalhando?"
Mitch debruçou-se um pouco vacilante e abriu uma caixa de apetrechos de pesca que continha uma pequena pilha de notas e talvez uns cinquenta dólares em moedas. "Meu banco", disse ele. "E isso aí deve durar até o tempo esfriar de novo. Trabalhei de vigia noturno em Aitkim no inverno passado".
"Eo que você vai fazer quando acabar esse dinheiro acabar?" 
"encontro alguma coisa. Eu sei tomar conta de mim".
"Você não se preocupa com os seus filhos?"
"É, às vezes eu me preocupo. Mas eles têm boas mães que sabem cuidar deles, e eu não presto para isso. Acabei entendendo que só assim sei tomar conta de mim mesmo."
"Um homem livre."
"É o que sou."
E se calaram...

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Intocáveis. A sensibilidade do humano.


Fazia tempo que eu queria assistir este filme. Confesso que não fiz um esforço maior para assisti-lo antes, em função, talvez, de preconceitos com relação ao que eu preconcebia do filme: mais um melodrama. Ontem eu fui. Confesso que sinto dificuldades em descrevê-lo. É um filme, não para descrever, é um filme para sentir.O mais que eu posso dizer, é que ele é simplesmente maravilhoso. É maravilhoso não pela sua história mas, por aquilo que ele realmente nos oferece de melhor. Algo que é intocável. A sensibilidade humana.

O filme é francês, dirigido por Eric Toledano e Oliver Nakache e é um grande sucesso de público. Na França está batendo recordes de público e no Brasil já passou da casa de um milhão de espectadores. A história é simples: um homem muito rico e de fino trato (Philippe) sofre um acidente e fica tetraplégico. Precisa de assistência em tempo integral para suprir as suas deficiências, os seus novos limites. A procura por essa pessoa que o acompanhe é interminável. Ninguém se adapta à função.

Alguém se inscreve (Driss), não para o exercício da função mas, para obter mais um carimbo nos seus papéis, para receber o auxílio desemprego. E o impossível acontece. Driss não tinha o mínimo perfil, ou qualidades requeridas para ser este assistente de Philippe e, no entanto... tudo deu certo. Philippe não é tratado como um pobre coitado e será tocá-lo naquilo que o incomoda mais do que a sua própria situação. A sua solidão. Os seus limites físicos tinham sido atingidos, mas não a sua sensibilidade e o seu desejo de viver e  este desejo de viver, ampliado pelo sentimento, pela emoção e pela sensibilidade. Driss, pelas coisas mais simples, lhe restaura o desejo de viver.

Por pragmatismo, que era o fio condutor de todas as entrevistas para o preenchimento da função, o único que jamais seria aprovado, seria exatamente o Driss. O imponderável o levou ao exercício da função. E a exerceu não como uma função, isto é, não a exerceu burocraticamente. A exerceu vitalmente e isso restaurou em Philippe o desejo de viver. Essa é a grande lição do filme. Em minha vida de professor esse dado sempre esteve muito presente. Exercer uma função que nunca fosse meramente burocrática, mas uma função vital. Belas reflexões sobre o pragmatismo.

Outra questão importante que eu vi no filme. O encontro das diferenças. O mundo aristocrático e sofisticado de Philippe e o popular de Driss. Os dois se complementam e se enriquecem. Existe o momento para cada um. Existe o momento do sublime e existe o momento para a festa.

Adorei a cena em que Driss volta a atender Philippe e o encontra desanimado e com barba para fazer. Ao fazê-la lhe imprime diversas figuras. A cena provoca a repulsa ao assemelhá-lo a Hitler e o hilário ao torná-lo semelhante ao ativista José Bové.

Saí do cinema pisando leve, me sentindo bem. Não por uma história fantástica ou recursos ao show, tão próprios do entretenimento. Saí pisando leve por aquilo que é meio intocado pelos valores culturais hoje em dia, que é o retorno às coisas simples, ao humano e especialmente ao desejo de viver a vida em toda a sua intensidade, mediado exatamente pela sensibilidade, pelas emoções ou simplesmente pelo humano e pela sua extensão e multiplicação. Acima de tudo uma bela lição de vida.

domingo, 9 de dezembro de 2012

"A Terra é Azul" - Tributo ao Grêmio.

"A Terra é Azul". Esta frase foi dita por quem viu a terra, pela primeira vez, a partir do espaço. Era o dia 12 de abril de 1961 e foi dita pelo cosmonauta russo Iuri Gagarin, a bordo da nave Vostok I. Essa façanha russa mexeu com os brios americanos. Houve reformas educacionais e enormes verbas foram destinadas para a pesquisa científica. A resposta veio com a Apolo 11, em 20 de julho de 1969, com a chegada à lua.

Não consta que a data de 12 de abril tivesse algo de especial para que o cosmonauta proferisse a sua famosa frase "a terra é azul". Só fico imaginando se Iuri Gagarin, em vez do 12 de abril de 1961, tivesse subido ao espaço no dia 11 de dezembro de 1983, no dia em que o Grêmio foi campeão do mundo, ou mesmo no dia de ontem, 8 de dezembro de 2012. O que diria então, ao ver este mundo de bandeiras azuis sendo desfraldadas. Certamente teria dito: "A Terra é azul, azul, azul".

Rendo hoje a minha homenagem ao Grêmio, pela inauguração do mais moderno estádio brasileiro e por ter dado esse passo para frente no futebol brasileiro, antes que qualquer outro time. É impressionante o que foi feito. 192.000 m² de construção, altura equivalente a um prédio de 19 andares e com 60.540 lugares. O impressionante é o tempo de construção. Tudo isso foi construído em pouco mais de dois anos.

E não é que o Grêmio não tivesse estádio.O seu grande palco de festas, o Olímpico Monumental, foi e é um grande exemplo do que é uma construção coletiva. A primeira construção foi obra de Saturnino Vanzelotti, nos anos 50. Vanzelotti está enterrado no cemitério João XXIII, numa pequena distância do estádio e voltado de frente para ele, para que, de seu lugar definitivo, não perdesse um único jogo do time do seu coração. Agora terá que fazer algumas acomodações e lançar o seu olhar para um pouco mais longe.

A outra construção do Estádio Olímpico foi feita por Hélio Dourado, no final dos anos 70 e que o transformou no Olímpico Monumental. Merece destaque a forma como ele foi, primeiro construído e, depois reformado. Foi uma construção e reconstrução absolutamente coletiva. Campanhas de doação de tijolos e de sacos de cimento deram aos gremistas um sentimento de pertencimento do seu estádio. E por isso existe hoje, embora a alegria diante do gigantismo da nova obra, a nostalgia e o sentimentalismo da despedida. Hélio Dourado diz que jamais pisará na Arena Grêmio.

A construção dessa Arena não tem nenhum apelo ao coletivo gremista e também, e é muito importante dizer, não tem nenhum dinheiro público na sua execução. Ele é algo absolutamente moderno, numa parceria entre o Grêmio e a OAS., num empreendimento que alcança as gigantescas cifras de quase 600 milhões de reais. O lamentável nessa história será a implosão do Olímpico Monumental. Um pedaço de história que se vai, junto com a sua implosão.

A inauguração foi maravilhosa. Um show em nível internacional. A força da cultura regional gaúcha foi mais uma vez levada e afirmada perante o mundo inteiro."Sirvam nossas façanhas, de modelo à toda terra". Emocionante e, muito importante. Simbolicamente foi assinado, em 8 de dezembro de 2012 um decreto, em que definitivamente o choro foi eliminado como um instrumento de tristeza e transformado num símbolo maior de alegria. 

O Grêmio é também conhecido como "o imortal tricolor". Esse imortal, constantemente prova a fé dos gremistas e, quando tudo parece estar perdido, esta força imortal aparece. Em momentos em que a fé gremista parece fraquejar é que vem uma força não se sabe de onde e, tudo recomeça. Exemplo maior disso foi "a Batalha dos Aflitos". Os anjos que vieram do infinito, onde certamente mora essa força do imortal, trazendo a tesoura para o corte da fita inaugural, foi sensacional.

O espetáculo foi grandioso. Não faltou nada. Artistas da cultura regional ainda não sertanejada, sendo valorizada, ex atletas, eternos ídolos, desfilando e Lupicínio sempre consagrado e reconsagrado. Não é qualquer time que tem um hino composto por um gremista como Lupicínio Rodrigues. É o mais popular dos hinos de times de futebol. "Até a pé nós iremos". Mas o que mais me alegra é ver crianças com os uniformes do Grêmio. Não tive uma educação jesuíta, mas com eles aprendi, que se você quiser ter resultados por um longo tempo, invista nas crianças. Gosto de dar de presente camisetas do Grêmio para crianças, mesmo porque, ao optarem por serem gremistas, terão enormes alegrias ao longo de suas vidas.

Sim, uma última coisa. Esta verdade é só minha, mas mesmo assim eu acredito que ela seja uma verdade absoluta e universal. É sabido que Niemeyer não tem nenhum grande projeto para estádios. Mas ele tinha, em sua mente projetado o novo estádio para o Grêmio. Só não o fez, porque o estádio tinha que obedecer os padrões da FIFA., e isso limitaria a sua força criativa. Se não fosse isso, Niemeyer também teria deixado a marca de sua beleza na concepção de um estádio de futebol.

Quanto ao jogo, foi relembrar 1983. Lembro perfeitamente daquela madrugada maravilhosa. Acho que aquela forma esquisita como o André Lima comemorou o primeiro gol da história da Arena Grêmio foi só para lembrar que no Rio Grande do Sul também existe um outro time de futebol.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

TRIBUTO A NIEMEYER

Sempre aprendi que adjetivos são desnecessários e que por isso devem ser evitados. E são desnecessários, exatamente, por não serem substantivos. No entanto, o que se vê com relação a Niemeyer, parece que eles faltam no mundo inteiro, para bem qualificá-lo.
A autobiografia de Niemeyer. Memórias.

Creio que um dos primeiros momentos de real grandeza profissional em Niemeyer ocorreu com as obras da Pampulha, em Belo Horizonte. Também foi ali que se deu o encontro e a parceria com Juscelino Kubitschek, que mais tarde o levaria para a construção de Brasília. Da construção da Pampulha me lembro de duas coisas muito interessantes, contadas na biografia de JK - JK o artista do impossível, de Cláudio Bojunga.

A Pampulha é todo um bairro novo, construído em Belo Horizonte, quando dela J. K. era prefeito, nos anos quarenta. As obras do arquiteto nesse complexo são quatro: o Iate Clube, o Cassino, a Casa de Baile e a Capela de São Francisco. As duas coisas que eu gostaria de destacar, a partir da lembrança de Bojunga é, em primeiro lugar, a sua obsessão com a alegria e a diversão. Disso nasceu a Casa de Baile, um local para o lazer dos trabalhadores. A segunda questão é relativa a belíssima capela de São Francisco, a conhecida igreja da Pampulha. Ela ficou anos esperando por uma missa, uma vez que o bispo se recusava a rezar missa, numa obra concebida por um comunista. Coisas do tempo.

Em Brasília Niemeyer possivelmente tenha tido as suas maiores alegrias e glórias e, contraditoriamente, também os seus maiores contratempos e dissabores. Uma crítica constante que lhe é feita diz respeito ao monumento em homenagem a JK., em seu memorial. Muitos vêem nele a foice e o martelo, símbolos de trabalho de uma época e símbolo maior do comunismo. Mas os problemas maiores ocorreriam com a construção do aeroporto. Já estávamos em períodos de intransigência. Vivíamos a ditadura militar. Foi acusado até de ter plagiado a obra de um de seus inspiradores, Le Corbusier. "Lugar de arquiteto comunista é em Moscou", lhe diziam os militares.

Os atritos com a ditadura o afastaram da Universidade de Brasília, junto com outros duzentos professores, e também de Brasília. Paris ficou muito honrada em receber tão ilustre exilado. Já a cidade do México recebeu o seu original projeto de aeroporto. O maior inimigo da truculenta ditadura militar, sem dúvida, foi sempre a ousadia da inteligência.

Não vou aqui me deter na vasta biografia do arquiteto. Para isso existe o seu livro de memórias - Curvas do Tempo (Ed. Revan. R$ 52,00).

Tive o prazer de assistir a uma palestra de Niemeyer na Universidade Positivo. Ele falava com a habilidade de suas mãos, isso é, ele não falava sem desenhar. lembro bem do engenheiro que o acompanhava. Ele desenha, dizia ele, e nós temos que nos virar. Que desafio não deveria ser trabalhar com ele. Lembro também de sua figura humana maravilhosa, que transpirava bondade.

Parece que as curvas o perturbavam. As curvas lhe inspiravam a beleza. As curvas das montanhas e as curvas dos belos corpos das meninas de Copacabana o levaram para o desenho de sua arquitetura e para a consagração mundial. Espalhou belas curvas que deixaram marcas no mundo inteiro. E nos deixa também as curvas de suas memórias, para nos fazer bem.

Termino citando duas obras suas aqui em Curitiba. Uma - o popular Museu do Olho - que representa toda a beleza de sua obra e, a outra - o Monumento ao Sem Terra - morto pela repressão policial, na BR 277 entre Curitiba e Campo Largo e que representa toda a beleza do seu pensamento e de suas atitudes em relação à vida e à sociedade. Um monumento que perpetua o seu pensamento e as suas atitudes de vida, sempre vinculadas com a justiça e com a dignidade do ser humano, na luta pela afirmação de seus direitos.

Niemeyer quase interrompeu as intermitências da morte, para mais tempo permanecer conosco, para nos agraciar com a beleza de sua obra e com a magnitude de sua vida e ação. Obra, vida e ação sempre substantivas.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

De Novo. Paulo Freire e a Gazeta do Povo.

A Gazeta do Povo de novo voltou ao tema Paulo Freire. Na página 2, página voltada para opiniões, aparece o tema: Sínteses - O legado de Paulo Freire. A favor escreve um conhecido educador, professor da USP., que exalta o caráter de Paulo Freire como Patrono da Educação Brasileira (lei 12.612/2012) e contra escreve alguém que é apresentado como jornalista e mestre em sociologia. Reduz o legado do educador a uma autoajuda marxista.
O primeiro grande livro de Paulo Freire. Vejam a beleza do título.

Desconheço as razões pelas quais a Gazeta do Povo levanta este debate. Simplesmente apresenta o tema, como o legado de Paulo Freire. Jornalisticamente, no entanto, desta vez  está tudo correto. Há espaço para o a favor e para o contra. Não como da outra vez, em que um de seus colunistas o destratou, sem o espaço para o contraditório. A indignação me levou ao cancelamento da assinatura do jornal. Mas ainda o continuo recebendo. Vou dar uma conferida para ver o que está acontecendo.

Não vou entrar no mérito do texto a favor, mas não consigo calar diante do que foi dito pelo jornalista, naquilo que ele julga ser uma autoajuda marxista. Não conhecia a existência de uma autoajuda marxista, pois, pelo que eu sei, é bem mais cômodo não ser marxista. Sê-lo, sempre foi motivo de muita incompreensão e sofrimento. Que a história de torturas o diga.

Confesso que muito poucas vezes ouço falar mal de Paulo Freire depois da redemocratização do Brasil. Eu imaginava que o anátema a ele e a sua doutrina tinha acabado junto com a ditadura militar. Mas a percepção que eu tenho hoje, é a de que, quanto mais as pessoas falam mal do educador, mais me dá a impressão de que essas pessoas não conhecem Paulo Freire, não lêem Paulo Freire.

Dizer que Pedagogia do Oprimido é menos um tratado que um panfleto, me dá a impressão de que leram Paulo Freire por uma cartilha, ou por um panfleto bem vagabundo, produzida por certos intelectuais ou escolas orgânicas, ligadas a teorias de perpetuação da opressão. Me parece que essas pessoas conseguem ler Paulo Freire ao contrário, pelo oposto do que ele realmente é.

Paulo Freire, se fosse panfletário não teria escrito Pedagogia do Oprimido com mais de duzentas páginas e com tantas citações de teóricos que o fundamentaram. Enumero alguns desses autores: São Gregório de Nissa, em seu sermão contra os usurários, Erich Fromm e Herbert Marcuse, entre os frankfurtianos, Sartre, Simone de Beauvoir, Karl Jaspers, Edmund Husserl, Wright Mills, Reinold Niebhur e os brasileiros Álvaro Vieira Pinto e José Luís Fiori. São citados também Marx, Engels, Lênin e também existem referências ao Chê, a Fidel e a Mao, enquanto lutaram contra sistemas opressores. O livro é em defesa dos oprimidos e jamais um elogio aos opressores.

Não foram Marx e Engels que inventaram a opressão e a lutas de classes. Eles apenas constataram a sua existência. Não me parece que Paulo Freire fosse tão pouco inteligente, que se fosse elaborar panfletos, os faria tão longos e tão recheados de teoria, inclusive, de difícil metabolização, como dá para perceber.

É sabido também que, misturar a teoria de um autor com procedimentos de sua vida particular não é um bom procedimento acadêmico. O Rousseau que entregou os seus filhos a orfanatos foi sepultado junto com o seu corpo, mas o teórico e Patrono da Revolução Francesa não morreu e muito menos o Rousseau do Discurso sobre as ciências e as artes, do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens e o Rousseau do Contrato Social e do Emílio.

Rousseau pôs a roda da história a rodar. E uma das dimensões da história é a perspectiva de futuro. Paulo Freire fala muito da tridimensionalidade do tempo e não de sua unidimensionalidade, em que o futuro seria apenas um prolongar do tempo presente. Ninguém conseguirá deter as transformações e a história. O futuro e as suas utopias sempre brotarão qual água nova.

Além de não ser um bom procedimento acadêmico, creio que também esconde muita maldade. Julgar um teórico pelo seu comportamento é uma atitude de moralistas. Creio não ser necessário citar aqui, Nelson Rodrigues sobre os moralistas. Certa vez ouvi alguém desmerecer as teorias marxistas, por ele ter tido relações sexuais com a sua empregada. Posso assegurar a todos, que se Marx teve esta relação, isso em nada emporralhou a sua teoria.

Ser comparado a Rousseau no plano teórico só pode ser considerado um elogio a essa pessoa. É cobri-la de méritos. Se é para comparar Rousseau a Paulo Freire no combate às injustiças do seu tempo, creio que a comparação é muito feliz.

Mas o auge da não compreensão de Paulo Freire está relacionada aos temas geradores. Com Paulo Freire aprendi que pelo local, pelo regional se chega ao universal. Conheço uma pessoa com uns trinta anos de idade e que sofre muito com a falta de leitura. Não é propriamente um analfabeto. Creio que agora sim, ele irá aprender a ler. Sabem adivinhar a causa disso? É muito fácil. Ele quer ler as mensagens que ele recebe de suas namoradas pelo celular.

É a isso que se chama de foco de interesse e é esse foco de interesses que produz as chamadas palavras geradoras. Arriscaria algumas dessas palavras para o caso das mensagens no celular:  meu amor, meu bem, te espero, vamos nos encontrar, você é maravilhosa, entre outras. Agora pasmem! Se ele efetivamente se letrar, ele ficará imobilizado por essas palavras, ou essas palavras serão uma ponte que o lançará a um outro mundo.

No caso de Machado de Assis, todos podem ter a certeza de que ele tartamudeou muito sobre o morro, sobre o seu bairro, sobre a sua cidade. Esse foi o seu mundo local, o seu mundo regional. E pelo domínio desse seu mundo ele alcançou o universal. Paulo Freire fala muito de limites e os apresenta como uma qualidade, pois só pela percepção de nossos limites alcançamos a superação e a transcendência. A doutrina de Paulo Freire não tem pontos estanques, imobilizações. Ela é puro movimento, ela é ascensão, ela é transcendência.

Outra coisa comum aos atuais detratores de Paulo Freire é considerá-lo como a causa dos males da educação brasileira. O educador esmiuça a fundo a história desta nossa educação e lhe busca as raízes de sua má qualidade. Esta educação sofreu uma passagem de boa para má. Quando ela era para poucos, apenas para uma elite ela era de ótima qualidade. Quando é que ela se transformou? Quando ela foi aberta para as camadas populares. Aí se descuidou da sua estrutura, se descuidou da formação de professores, dados qualitativos foram substituídos por dados quantitativos e assim por diante. A má qualidade da educação brasileira jamais poderá ser atribuída a uma única pessoa, por mais má que ela seja e, isso não vem a ser o caso de Paulo Freire. É muito reducionismo. Existem causas estruturais e conjunturais.

Recorro ao humor para concluir. Ao barão de Itararé. Dizia ele que aspirava um mundo em que os conceitos de bem e de mal fossem substituídos pelos conceitos de ignorância e conhecimento. Recorro ainda a uma nova companhia, que encontrei essa semana. Valter Hugo Mãe. Li o seu O Filho de Mil Homens. Nesse livro as pessoas sozinhas são apresentadas como pessoas pela metade. Quando se encontram, as pessoas passam a ser inteiras e quando buscam ainda mais encontros elas se expandem, elas dobram. Vejam bem, elas dobram. Não está escrito que elas se dobram. A riqueza do mundo está no mundo das relações. As relações são a beleza da descoberta dos outros, em relações de igualdade e jamais de opressão. Do contrário, nos fala o escritor, as pessoas caem para dentro.

A pedagogia de Paulo Freire é um grito de libertação, de autonomia e de transcendência. O legado de Paulo Freire sempre será esse e dele só poderemos abrir mão no dia em que não houver mais, nem oprimidos, nem opressores. E isso é um legado de difícil aprendizado. Invoco a todas as forças superiores para que sejamos tocados por esta alta ajuda.

   

O Filho de Mil Homens. - Valter Hugo Mãe.

Sabes, pai, gosto de pensar que nunca mais vou ficar sozinho e que alguém há de ficar comigo para sempre sem me abandonar.

O Crisóstomo disse ao Camilo: todos nascemos filhos de mil pais e de mais de mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. Como se os nossos mil pais e mais as nossas mil mães coincidissem em parte, como se fôssemos por aí irmãos, irmãs uns dos outros. Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa em pessoa, que nunca estaremos sós (pág.188).
Ficha do livro: Valter Hugo Mãe. O Filho de Mil Homens. São Paulo: Cosac Naify. 2012. R$ 39,00.

Creio que esses dois parágrafos representam o ápice e a explicação para o título do romance do escritor angolano, radicado em Portugal, desde a sua infância. O nome do livro é O filho de mil homens. Recebeu de José Saramago o elogio de que com ele estamos a "assistir a um novo parto da língua portuguesa". Em 2007 recebeu o Prêmio Literário José Saramago e neste ano de 2012 o Portugal Telecom com o livro A Máquina de fazer espanhóis. Antes de romancista fora poeta. É também artista plástico e vocalista de banda de rock.

O seu nome original é Valter Hugo Lemos mas trocou o Lemos por Mãe, para lembrar, na figura da mãe, o amor incondicional. É formado em direito e pós graduado em língua portuguesa. Nasceu em 1971, estando portanto, com 41 anos, a mesma idade de Crisóstomo, o personagem principal do seu O filho de mil homens. O livro é um tributo à vida, em que nas suas diferentes passagens, sempre melhoramos. O filho de mil homens é o tributo a todos os que nos precederam

O livro se constitui numa hábil história de pessoas que não se encontraram na vida. O desencontro com a vida é representado pela solidão, pela infelicidade. São pessoas pela metade, que buscam se completar com o encontro com o outro. A dificuldade de encontrar esse outro reside nos inúmeros preconceitos, com os quais convivemos em sociedade. As pessoas pela metade, ou as pessoas sozinhas vão, no entanto, encontrando os outros, se completando e  ainda mais, transcendendo e assim encontrando a felicidade. O ápice desses encontros se dá no capítulo XV - O Crisóstomo amava por grandeza.

Mas vamos aos personagens centrais. Crisóstomo é um pescador que encontrou e identificou a sua solidão ao perceber que não tem um filho. Se sentia pela metade. Queria se sentir inteiro, ao ter um filho e ainda queria dobrar, se arranjasse uma mulher. O filho ele encontra em Camilo, um menino abandonado, filho de uma anã e que nascera, não fruto do amor, mas da solidão e da pouca resistência. Crisóstomo encontra Camilo quando ele tem 14 anos e representou uma festa para dentro de ambos.

A mulher é encontrada em Isaura, que buscara a liberdade no casamento e no que tinha entre as pernas, mas o moço nada sentia por ela. Era exclusivamente por ele. Isaura se tornou infeliz e rejeitada por pai e mãe por não ter encontrado casamento. Por ser infeliz era uma mulher que diminuía, que caía para dentro de si. Para remediar a sua situação casa-se com Antonino, um maricas, filho de Matilde. Antonino e Matilde são infelizes. Sofrem com os preconceitos. Ele por ser maricas e ela por não ter sabido educar o filho. O casamento é só fachada, consentida até pelo padre. Até Crisóstomo educa o filho Camilo no ódio ao Maricas.

Crisóstomo gosta de Isaura mas não gosta da presença de Antonino. A história vai se encompridando com novos personagens. Matilde tem em Rosinha uma espécie de ajudante, que por sua vez tem uma filha, Emília ou Miminha. Rosinha casa com o velho Gemúndio que quer companhia, mas muito interesseira, Rosinha morre no dia do casamento. Resultado: Matilde cuida de Gemúndio e também de Miminha.

Após encontros e desencontros, de destilar preconceitos e acima de tudo de superar preconceitos, Crisóstomo faz de sua casa um palácio e resolvem misturar as famílias num grande banquete e celebrar a felicidade, a felicidade de não ficarem sozinhos e de cada um assumir a sua condição. Naquele instante, nenhum dos convidados quereria ser outra pessoa. O Crisóstomo pensava nisso, em como acontece a qualquer um, num certo instante, não querer trocar de lugar com rei ou rainha nenhum de reino nenhum do planeta (pág. 169).

De aperitivo mais uma descrição mostrando a felicidade das pessas pelo encontro: Assim se fizera da casa de Crisóstomo um palácio. E, sorrateiramente, no coração do reticente Camilo também um lustre se ia pendurando e acendendo. Ao deitar-se, naquela noite, pensou que a família era um organismo todo complexo e variado. Era feita de tudo. Se era feita de tudo, o Antonino não seria coisa nenhuma de tão rara ou disparatada, seria antes o Antonino, a fazer a parte do Antonino no coletivo. Pensou que a ideia da Isaura de verem a casa como um palácio era de uma beleza humana que se impunha sobre a matéria, como uma ideia para cura de colesterol e melhoria de tetos. Se assim fossem todas as ideias, seriam todas as pessoas como príncipes e reis e viveriam agigantados pelas emoções. As emoções dão tamanhos. Porque, se intensificadas, passam as pessoas nos caminhos mais estreitos como se alassem de plumas e perfumes e pasmassem com elas até as pedras do chão (pag. 172-3).

Com a leitura de um livro desses dá até para acreditar numa das ideias do livro, que está enunciada na frase acima, de que a leitura cura o colesterol e de que os médicos deveriam pedir de seus pacientes, além dos exames clínicos, cobrança de leituras para que assim melhorassem a sua saúde.