quinta-feira, 28 de março de 2013

O Enfrentamento de Mundos. Choques Culturais.

A primeira grande cena de um choque cultural que eu presenciei foi por ocasião de uma viagem para a Bolívia e para o Peru. Depois de termos visitado Tiwanaku, ainda na Bolívia, local onde se desenvolveu a cultura ancestral dos incas, e de Puno, com as suas monumentais islas flutuantes, visitamos um cemitério inca. O local do cemitério era um desses verdadeiros paraísos terrestres, pela beleza da paisagem, entre lagos e montanhas. O guia que nos acompanhava era culto e sabia do que estava falando. Deu-nos uma aula sobre a cultura inca.
Junto ao lago Titikaka se desenvolveu a cultura Tiwanaku, ancestral da cultura inca. 

O que mais impressionou em suas explicações foi a questão de como os incas tratavam a morte e a vida posterior, o que se justifica, pois, estávamos num cemitério. A bela paisagem não era um acaso. Como os incas piamente acreditavam na reencarnação, o local escolhido para reencarnar, teria que ser realmente maravilhoso. Na noite seguinte, já hospedado em Cusco, não consegui dormir, assimilando e metabolizando os fatos do dia.

Mas o que eu quero relatar é o depoimento de um dos turistas presentes na excursão. Era um católico que não tinha dúvidas em suas certezas. Era para lá de convicto. Diante da maravilhosa explicação para a morte e para a vida no além, ele não se conteve e exclamou: "Nossa! que explicações bonitas para a vida, mas que pena que estavam errados"! A sua cultura, ou a sua visão de mundo entrou em contato com uma outra visão e, lhe brotou a sua magnífica exclamação: um choque cultural, um encontro de diferentes visões de mundo. Uma abertura para a dúvida. Uma abertura para a elaboração própria de uma visão de mundo.

Lendo o magnífico livro de Darcy Ribeiro, O Povo Brasileiro, quando ele examina a visão de mundo do índio e o estranhamento diante dela dos colonizadores ele traz um diálogo maravilhoso entre um dos recém-chegados e um nativo. Diálogo sem entendimento, é claro. A distância entre estas diferentes visões era infinita e inalcançável para se entenderem. Vejamos a narrativa de Darcy, que a toma de Léry (LÉRY, Jean de. 1960. Viagem à Terra do Brasil. São Paulo. Martins. Biblioteca Histórica Brasileira. Vol. 7):

O livro de Darcy Ribeiro O Povo Brasileiro - A formação e o sentido do Brasil, donde retiramos este monumental diálogo.

"Os nossos Tupinambás muito se admiram dos franceses e outros estrangeiros se darem ao trabalho de ir buscar os seus arabutan. Uma vez um velho perguntou-me: Por que vindes vós outros, maírs e perôs (franceses e portugueses) buscar lenha tão longe para vos aquecer? Não tendes madeira em vossa terra? Respondi que tínhamos muita, mas não daquela qualidade, e que não a queimávamos, como ele o supunha, mas dela extraíamos tinta para tingir, tal qual o faziam eles com os seus cordões de algodão e suas plumas.

Retrucou o velho imediatamente: e porventura precisais de muito? - Sim, respondi-lhe, pois no nosso país existem negociantes que possuem mais panos, facas, tesouras, espelhos e outras mercadorias do que podeis imaginar e um só deles compra todo o pau-brasil com que muitos navios voltam carregados. - Ah! retrucou o selvagem, tu me contas maravilhas, acrescentando depois de bem compreender o que eu lhe dissera: Mas esse homem tão rico de que me falas não morre? Sim, disse eu, morre como os outros.

Mas os selvagens são grandes discursadores e costumam ir em qualquer assunto até o fim, por isso perguntou-me de novo: e quando morrem para quem fica o que deixam? Para seus filhos se os têm, respondi; na falta destes para os irmãos ou parentes mais próximos. - Na verdade, continuou o velho, que, como vereis, não era nenhum tolo, agora vejo que vós outros maírs sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes incômodos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais tanto para amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem! Não será a terra que vos nutriu suficiente para alimentá-los também? temos pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que depois da nossa morte a terra que nos nutriu também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores cuidados".
Estatueta da Pachamama, da mãe terra. Ah se entendêssemos melhor a relação homem natureza, a Pachamama receberia mais louveres. 

Querer interpretar este diálogo seria professoral demais, porque ele é absolutamente autoexplicativo. Mas não resisto em oferecer mais umas poucas linhas, também tiradas de O Povo Brasileiro. É sobre o caráter antropofágico dos índios e o seu significado. Darcy Ribeiro nos conta a história de Hans Staden, que por três vezes se defrontou com a realidade concreta de ser antropofogiado e nas três vezes escapou ileso. Vejamos a narrativa de Darcy: "[...] Comprova essa dinâmica o texto de Hans Staden, que por três vezes foi levado a cerimônias de antropofagia e três vezes os índios se recusaram a comê-lo, porque chorava e se sujava, pedindo clemência. Não se comia um covarde".

A transcrição deste diálogo me foi inspirado pela escolha franciscana do jesuíta Francisco, por sua simplicidade, humildade e humanidade até aqui demonstrada e com a certeza de que as coisas e a sua acumulação não humaniza ninguém, somente as relações humanas são capazes desta tarefa.



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